Tenho a inabalável convicção – todos temos, ou deveríamos ter, afinal – de que juiz não pode agir movido, motivado por questões pessoais ou por um sentimento perigoso chamado paixão.
Compreendo que todo magistrado deve ter a capacidade de, não estando com espírito desarmado, não estando em paz com a vida, evitar julgar os atos do semelhante. Isso é ser digno. Isso é ser nobre. Isso se chama altivez. Isso é cautela, precaução, prudência, comedimento, moderação, sobriedade. Isso é o que se espera, enfim, de um magistrado.
O juiz, para bem decidir, tem que estar em paz, tem que estar feliz. Juiz infeliz, juiz sem paz, juiz impregnado de sentimentos menores, juiz ambicioso, juiz excessivamente vaidoso, juiz presunçoso, juiz que se sente superior ao próprio jurisdicionado, que pensa que tem um rei na barrica, que se julga acima do bem e do mal, não é, de rigor, magistrado, na verdadeira acepção do termo; não passa, desde meu olhar, de um oportunista travestido, fantasiado de magistrado, que se aproveita do poder que tem para fazer mal ao semelhante.
Eu tenho ido para as sessões do Tribunal com o espírito absolutamente desarmado, como o fiz ao tempo em que fui juiz de primeiro grau.
Eu já disse, nas conversas informais, que jamais reagirei a uma agressão verbal, se ela eventualmente ocorrer. Para o meu conforto, tenho recebido, da absoluta maioria dos meus colegas de confraria, tratamento absolutamente cortês – e tenho respondido na mesma medida. Algumas divergências que houve, envolvendo a minha pessoa, foram pontuais, sem nenhuma consequência prática, decorrentes apenas da excitação propiciada pelos debates, o que é mais do que natural.
O dia que eu sentir, que me der conta que estou contaminado por um sentimento menor, não participarei da sessão. Fico em casa. Assumo o risco da minha omissão. Assim o fazendo, creio, estarei me despindo da toga de pano, para me vestir com a toga da dignidade, indumentária dos homens de bem.
O dia que não tiver a capacidade de discutir as questões submetidas à minha apreciação com altivez, com espírito público – sem raiva, sem rancor, sem baixaria, sem pequeneza -, não participarei da sessão. Vou além: se me der conta que esse tipo de sentimento pode me tornar um homem injusto, aí, não tem apelo, volto pra casa, pendura a toga, saio da ribalta, afinal, não se julga bem com uma faca entre dentes, não se pode julgar com o fel escorrendo pelos cantos da boca. Quem julga nessas condições, pode ter certeza, julga mal. Devia, sim, ter a coragem de pendurar a toga.
Para julgar os atos dos semelhantes, repito, é preciso estar em paz. Digo mais, vou além: é preciso estar – e ser, se possível – feliz. Não precisa ser tão feliz quanto eu sou. Basta estar feliz. O homem feliz não faz mal ao semelhante. O homem feliz só irradia sentimentos benfazejos. O homem feliz é quase um super-homem. É quase inquebrantável. É altruísta, sereno, ponderado, equilibrado…
Eu vivo em paz. Eu vou além: sou feliz. Eu durmo e acordo feliz. A vida, para mim, é uma dádiva. Eu não vou desperdiçar o tempo que tenho de vida com questiúnculas, com amargura, com rancor, mágoa ou ódio.
Nessas condições, acho que estou em preparado para julgar, conquanto tenha que admitir que, ainda assim, como ser humano que sou, erro e posso não ser, posso não ter sido, justo.
Mas um dado é inquestionável: não julgo com espírito atormentado, não julgo para me exibir, não elaboro meus votos para impressionar, não aproveito o ato de julgar para exteriorizar as minhas fraquezas, as minhas inquietações, os meus conflitos com o mundo. Eu julgo porque esse é meu oficio. E o faço com a alma em estado de graça. E, por isso, também, sou feliz.