Breves reflexões sobre o papel do juiz no Estado Constitucional de Direito
Em outros artigos, publicados no meu blog (www.joseluizalmeida.com), na imprensa local e em votos que apresentei no Tribunal de Justiça do Maranhão, já tive a oportunidade de consignar que, nos dias presentes, a função do magistrado vai muito além da de mero espectador, agente passivo ou figura inanimada e ascética que se limita – como ocorria no Estado Liberal Clássico – a pronunciar as palavras da lei ( visão montesquieuniana)
Tendo assumido a segunda instância, onde me deparei com questões constitucionais candentes, confesso que, inicialmente, senti um certo acanhamento, em face da preponderante formação jurídico-cultural ( própria dos países de tradição positivista) da maioria dos magistrados brasileiros, de assumir o papel de protagonista no enfrentamento de certas questões e na consequente criação judicial do direito, com receio de deixar transparecer, num juízo de valor precipitado, que, com essa atitude, pudesse pretender atentar contra o princípio da separação dos poderes.
É forçoso concluir, no entanto, que, no exame de determinadas questões, ainda que corramos o risco de ser incompreendidos, não se pode perder de vista que, lamentavelmente, em face da falta de sensibilidade e da omissão do legislador ordinário (que, de regra, legisla para uma minoria, e que, noutro giro, por falta de vontade política, não elabora as leis necessárias para que a Constituição cumpra, na sua inteireza, a sua finalidade), a nós, magistrados, muitas vezes , não nos resta outra alternativa que não criar o direito – ou, se for o caso, até, partir, sem receio, para o ativismo judicial -, sobretudo em face da estrutura normativo-material da Constituição de 1988, impregnada, como sabemos, de princípios e regras de grande plasticidade e abertura semântica, a permitir ao intérprete um singular espaço de conformação.
É de Mauro Cappelletti, a ensinança segundo a qual, “Nos países de tradição positivista, a doutrina, durante muito tempo, resistiu à idéia de criação do Direito pelo juiz. A atividade do juiz estava confinada à vontade clara da lei. Todavia, com a complexidade das relações na sociedade moderna e a multiplicidade das demandas judiciais, a própria vontade da lei não mais se mostrava clara. Ao contrário, vaga e ambígua, a lei passa a suscitar variadas interpretações”(Juízes Legisladores?, p. 24-25)
Nesse ambiente, é forçoso reafirmar que é o próprio ordenamento jurídico, de regras obscuras e imprecisas, fruto da falta de desvelo do legislador, quem oferece as condições para a criação judicial do direito, e, até, para o ativismo judicial, pois que, nesse cenário, desde a minha percepção, o juiz não pode se limitar apenas a declarar o direito existente, sendo, muitas vezes, compelido a, também, criar direito novo, sem que isso o autorize, assim posso entender, a ir além dos limites impostos pelo ordenamento jurídico, ou seja, dos limites normativos substanciais do papel que deve desempenhar num sistema de separação de poderes.
Nos últimos anos, no Brasil, temos assistido – inicialmente, surpresos, mas, agora, com naturalidade –, sobretudo depois da Carta Política de 1988, a expansão do Poder Judiciário, que tem promovido uma verdadeira revolução, em detrimento do formalismo de inspiração liberal, época que, como sabido, a atividade do juiz era o de declarar, mecanicamente, o direito, valendo-se, tão somente, da lógica dedutiva de interpretação, convindo anotar, só para ilustrar, que, até a Segunda Guerra Mundial, prevalecia uma cultura jurídica essencialmente legicêntrica, segundo a qual a lei editada pelo parlamento era a fonte principal – quase exclusiva – do Direito, desconsiderando, no mesmo passo, a força normativa das constituições.
No Estado Democrático e Constitucional , todos sabemos, o direito já não se aperfeiçoa, não evolui e nem alcança a sua real finalidade que não seja em face da ação criativa dos membros do Poder Judiciário, que, todos testemunhamos, rompeu, definitivamente – pese a timidez de alguns dos seus agentes, em face, sobretudo do ( leviatânico) Poder Executivo – , com o monopólio legislativo na formulação do Direito, assumindo, de vez, a sua condição de corresponsável pela transformação do Estado, enfrentando, sem acanhamento, o grande desafio de controlar os outros Poderes, trazendo para o centro do debate político a força axiológica dos textos constitucionais.
Sobreleva anotar, na linha de pensamento mais consentânea com o Estado Constitucional, que, seja qual for a inspiração do legislador (pense ele nas minorias ou legisle para uma maioria, atitude cada vez mais rara, vez que, de regra, em face das ações dos lobistas, decide, quase sempre, para atender aos interesses de uma minoria, exatamente aquela minoria que contribui com o caixa de campanha ), toda lei precisa de consistência judicial, pois que, na minha visão – e de muitos que pensam como eu – , os juízes são, sim, os únicos criadores do direito, embora deles se exija a demonstração de que o direito por eles criado não provenha do nada, mas que resulte “extraído do texto constitucional, onde estão latentes e insinuantes à espera do momento de se mostrarem às claras” (Inocêncio Martíres Coelho , in Ativismo Judicial: o caso brasileiro, palestra proferida no Ministério Público do Estado do Pará).
A criação judicial do direito, afirmo, ainda, a guisa de reforço, inspirado nas lições de Inocêncio Mártires Coelho, “decorre do exercício regular do poder-dever que incumbe aos juízes, de transformar o direito legislado em direito interpretado/aplicado, caminhando do geral e abstrato da lei ao singular e concreto da prestação jurisdicional, a fim de realizar a justiça em sentido material, que nisto consiste o dar a cada um o que é seu”. (ibidem).
Registro, ademais, inspirado, agora, em Dirley da Cunha Júnior, Juiz Federal da Seção Judiciária da Bahia, a propósito da atuação das casas legislativas, a justificar a necessidade de validação do enunciado normativo pelo Poder Judiciário, que, efetivamente, “ longe de representar a sociedade, a ‘vontade geral’, a ‘vontade do povo’, o Legislativo e o Executivo são fiéis a interesses espúrios de lobistas e organizações que contribuíram para os ‘caixas de campanha’.” ( Interpretação Constitucional e Criação Judicial do Direito: Contributo para a Construção de uma Doutrina da Efetividade dos Direitos Fundamentais)
Mais adiante, complementando o pensamento, pondera o ilustrado magistrado: “Assim, é manifestamente ingênua a crença que ainda persiste no caráter representativo das corporações legislativas e dos órgãos executivos. O foro atual das deliberações políticas não são mais as sessões plenárias, e sim, as secretas reuniões realizadas nos gabinetes parlamentares. Tudo isso revela, atualmente, uma crise da representação política e, com ela, a crise da democracia representativa, de tal sorte que aquela lei concebida como ‘expressão da vontade geral do povo’ é hoje mera ficção, pois a lei há muito não representa o povo, ao revés, contraria a sua vontade, desrespeitando, com não rara frequência, as normas imperativamente alçadas a preceito constitucional e os direitos fundamentais, com o fim de favorecer a grupos poderosos” (ibidem)
Consigno, nada obstante, que o magistrado, nessa função criadora, na interpretação e validação dos enunciados normativos, como adverte o eminente magistrado, não pode agir por capricho ou por conta de suas idiossincrasias, sob pena de se igualar aos que, nos demais poderes, agem sem idealismo, mas impulsionados pelos seus interesses pessoais, ou de grupos de lobistas, sem compromisso com a comunidade.
O magistrado deve ter presente, como, aliás, bem pontuou o eminente professor Luis Roberto Barroso, por ocasião do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da questão envolvendo as uniões homoafetivas, que certas minorias, certos grupos sociais, religiosos ou econômicos, só encontram nos tribunais, e em nenhum outro lugar, a proteção que estão a merecer, sem a qual permaneceriam marginalizados da vida do Estado ao qual pertencem.