Apesar de tudo que já vivi e vivenciei, eu ainda me agasto com a falta de solidariedade das pessoas.
E. Mougenot diz, com acerto, que o homem, nos dias presentes, é mais solitário que solidário, é mais sozinho que vizinho.
A verdade é que, nos dias de hoje, o homem vive a obsessão de si mesmo, ou, em outras palavras, vivemos tempos do mais puro e repugnante egonarcisismo. É cada um por si, na esparança de que Deus seja por todos nós. Para que tem fé, ela é a última esperança.
Os dias presentes são regidos pelas máximas do tipo “cada macaco no seu galho”, “quem pariu Mateus que embale” ou “farinha pouca meu pirão primeiro”.
Hodiernamente, em face da falta de solidariedade entre as pessoas, posso afirmar, sem medo de errar, que a sociedade está doente.
A enfermidade de uma sociedade, todos sabem, pode ser medida, dentre outros parâmetros, pela fúria do legislador.
No Brasil, só para ser ter uma ideia do quão doente está a sociedade, foi necessário a edição de leis para, por exemplo, dizer ao homem que não deve maltratar a mulher do seu lar, que deve tratar com carinho, respeito e prioridade os idosos, e dispensar tratamento especial às crianças.
Essas leis são, sim, o sintoma mais eloquente de que a sociedade está doente, a necessitar, cada dia mais, de formas alternativas de controle social.
Vou contar, a seguir, um fato do qual eu fui um dos principais protagonistas. Narro-o porque entendo que é exemplar, convindo anotar, com sinceridade, que há dias que procedo de maneira diametralmente oposta do que fiz no episódio que vou narrar. É dizer: eu não sou sempre bonzinho e solidário. Mas quero ser, faço esforço para ser. Eu não quero que meu coração deixe de pulsar pelos que precisam da minha solidariedade.
Pois bem. No sábado, pela manhã, dia ensolarado, saí de casa para comprar remédio, o que, aliás, tem sido uma rotina, por conta da idade – e a tendência, não tenho dúvidas, é piorar, afinal, sigo, com inquietante rapidez, na direção da terceira idade.
Mas retomemos o curso das reflexões. Eu dizia que, no sábado passado fui a uma farmácia, no bairro São Francisco. Parei o carro e vi se aproximar de mim um flanelinha. Já agastado com muitos deles, decidi, comigo mesmo, que sairia da farmácia e não lhe daria um centavo.
Aviada a compra, deixei a minha mulher pagando o remédio e dirigi-me ao carro, na esperança de fazer o flanelinha compreender que eu não tinha nenhuma disposição para ajudá-lo.
Fiquei, do interior do carro, observando o “trabalho” do flanelinha.
Vi, com frequência, as pessoas viram-lhes as costas, sem nenhuma gorjeta. Mas ele não desistia. Corria para um lado e para o outro, sempre esperando a recompensa que não vinha.
Apesar do insucesso, ele mantinha a lucidez. O cidadão virava as costas, depois de negar-lhe a gorjeta, e ele, ainda assim, se limitava a dizer ” Deus lhe acompanhe”, demonstrando com isso que, apesar dos pesares, parecia não ter ódio no coração.
Não é necessário dizer que esse quadro mudou o meu preconceito contra o flanelinha.
O quadro me consumia aos poucos. Ante a indiferença de muitos, passei a introjetar dentro de mim um forte sentimento de solidariedade, e uma enorme vontade de ajudar o flanelinha.
Já se aproximava do meio-dia. Eu já estava com fome. Queria ir logo para casa, na certeza de que me defrontaria com um bom prato, afinal 0 sábado é o dia que escolhi para quebrar a dieta.
Um forte sentimento de culpa tomou conta de mim. Coloquei-me, então, no lugar do flanelinha que, ao que tudo estava a indicar, ainda não tinha arrecadado o suficiente para um bom lanche.
Coração partido, mudei de opinião, diante uma forte emoção que me consumia. Passei a cogitar, aliás, decidi que ajudaria o flanelinha.
Quando a minha mulher entrou no carro, vindo da farmácia, eu pedi a ela determinada importância e entreguei ao flanelinha, que, sob um sol causticante, nu da cintura para cima, com a camisa enrolada na cabeça, limitou-se a me dizer: Deus lhe recompense. E saiu em desabalada carreira na direção de outro motorista, para ver se conseguia mais algum dinheiro.
Segui viagem na direção da minha casa!
Nunca mais vi o flanelinha! Se deparar-me na rua com ele, certamente não o identificarei.
Mas seus olhos de quase súplica ficarão na minha retina.
Voltei para minha casa com a consciência em paz.
Almocei um pouco; não tive coragem de quebrar a dieta.
Mas, de toda sorte, estava feliz pelo flanelinha a quem – com muito pouco, é verdade – ajudei.
Muitas vezes sou solitário; outras tantas sou solidário.
Eu sou assim: um pouco de cada coisa. Sem radicalizar. Sem chegar ao extremo. Comedido, às vezes; incontido, outras tantas. E assim vou vivendo. Sou igualzinho a todo mundo – sem tirar nem pôr.
E assim, com uma boa ação aqui e outra acolá, vou, como dito acima, escrevendo a minha história, procurando justificar a minha passagem pela terra.
Não sou melhor nem pior do que ninguém. Eu sou apenas o que sou. Antes um jovem intrépido, que achava bonito afirmar que não levava desafora para casa; hoje, na maioria das vezes, sou apenas um velhinho solidário, uma quase ancião que, já tendo vivido tanto, ainda se surpreende com certas lições que a vida ensina.