O ENCARCERADO

Menina-de-12-anos-esta-presa-em-cadeia-publica-em-MSMinha mente é um verdadeiro turbilhão, do bem, registre-se, conquanto admita que, como qualquer mortal, algumas vezes me pego tomado por pensamentos malsãos. Todavia, procuro – tento, pelo menos – não perder tempo pensando bobagens, na certeza de que, povoando a mente com coisas boas, tende-se a fazer o bem, tendemos a ser melhores.
Pode até soar estranho dizer o que parece óbvio, mas não é tão óbvio assim. Há pessoas, aparentemente bem resolvidas, cuja mente é um redemoinho de maldades, sendo que algumas delas parecem ter o juízo totalmente voltado para o mal. E embora seja lamentável admitir essa realidade, cada um de nós conhece pelo menos um ser humano que, preponderantemente, pensa e age para fazer o mal; inexplicavelmente, muitas vezes.
Pois bem. Dia desses, bem cedo ainda, quando passava a vista nos jornais do dia e nas revistas da semana, uma matéria me levou a revisitar Francesco Carnelutti, um dos expoentes da escola jurídica italiana, relendo uma obra que todo aluno do curso de direito, todo advogado, todo promotor de justiça e todo magistrado já leu ou pelo menos teve notícia: As Misérias do Processo Penal, obra na qual o autor descreve o drama da justiça penal.
Fui revisitando a obra como se fora a primeira vez, até que me deparei com um excerto que me fez fechar o livro – ou melhor, desligar o iPad, já que se trata de um e.book – e escrever essas reflexões.
Lembro que, em Vitorino Freire – minha terra amada de quem o destino me afastou fisicamente, mas que não sai da minha lembrança -, quando criança, a caminho do mercado municipal, passei, muitas vezes, em frente a um prédio que, depois, soube tratar-se da delegacia municipal.
Na passagem, intrigado com as grades que ornamentavam as janelas e as portas do prédio eu costumava questioná-las, como faria qualquer criança curiosa, vez que, àquela época, ainda não eram colocadas grades nas casas como fazemos nos dias presentes em face da violência,
Os adultos que me faziam companhia, em respeito à minha estupefação, me alertavam que aquele era um lugar destinado aos criminosos, pessoas más, as quais, de tão más que eram, tinham que ficar afastadas das pessoas de bem, pois costumavam atentar contra os semelhantes.
Passei a ter medo, pavor daquele lugar. Com esse sentimento, todas as vezes que passava próximo, virava o rosto, com receio de deparar-me com uma pessoa má, conquanto não fossem muitos os detidos à época, rarefeita que era a criminalidade.
Certo dia, entrementes, desatento, passei próximo à delegacia e deparei-me olhando, mais uma vez, para dentro do prédio. Mais grave ainda: vi uma pessoa “má” no seu interior. Foi a primeira vez que vi a tal pessoa “má” de que me falavam os adultos, de cujo rosto nunca mais me esqueci.
Assustado, quis saber dos adultos o que tinha feito aquele homem, que nunca mais saiu da minha memória, para que fosse tido como uma má pessoa e para merecer, de consequência, a prisão. Fui informado de que ele estava preso, para “pagar” pelo crime cometido, uma vez que tinha desferido várias facadas contra um semelhante. Foi a primeira notícia que tive na minha vida de que um homem fosse capaz de atentar contra a vida do semelhante, sem saber o que o destino reserva para a minha vida profissional.
Certo dia, para a minha surpresa, passando na famigerada Rua da Veada, onde eu morava – e não me pergunte a razão do nome, pois não sei -, vi o famigerado homem mau sentado na porta da casa de um vizinho, distante cerca de 100 metros da minha casa.
Voltei na mesma pisada, em desabalada carreira. Disse à minha mãe, estarrecido, que tinha visto o homem “mau” da delegacia, sentado na porta de um vizinho. Minha mãe, então, me informou que o homem mau era irmão do vizinho em cuja casa estava hospedado, e que o juiz tinha dado liberdade a ele, ou seja, a despeito do crime, ele estava em liberdade, o que, para mim, não era compreensível.
Essa foi a primeira vez que ouvi dizer que uma pessoa que matava o semelhante podia ficar em liberdade por decisão de um juiz. Depois, já como juiz, vi que o indivíduo que mata – ou lesiona, ou rouba, ou trafica drogas etc – nem sempre pode ser considerado uma pessoa má, e que a prisão, antes do julgamento, era uma excepcionalidade.
O excerto do livro de Carnelutti que me levou a voltar no tempo e me lembrar do primeiro preso com o qual me deparei, está vazado nos seguintes termos: “O homem encarcerado ou o homem trancado numa cela é a verdade do homem; o direito não faz mais que revelá-la. Cada um de nós está fechado em uma cela que não se vê. Nós não nos assemelhamos aos animais porque estamos na cela, e sim que estamos em uma cela porque nos assemelhamos aos animais. Ser homem não quer dizer não ser, e sim poder não ser animal. Esta capacidade é a capacidade de amar” (Francesco Carnelutti, in as Misérias do Processo Penal).

MARGINAIS E ESTATÍSTICAS

 

tjmaNão lembro exatamente quando, mas recordo, todavia, que tendo estado em Fortaleza num desses feriados longos, vi coincidir a minha ida com a publicação de estatísticas que indicavam os índices de criminalidade naquela capital.
Hospedado na Avenida Beira Mar, saí com a minha mulher, num final de tarde, para caminhar no calçadão, como, aliás, costumam fazer os turistas que visitam aquela cidade.
Ao sair do hotel, uma senhora, muito simpática por sinal, veio ao nosso encontro e nos aconselhou a deixar objeto de valor no hotel, advertindo-nos dos índices de violência e do perigo de andar pelas ruas, fazendo uso de bens materiais.
Despojados de bolsa, carteira porta cédulas, celulares, cordões, bijuterias e outras coisas mais, saímos pelo calçadão, apavorados, olhando para todos os lados, com a sensação de que a qualquer momento pudéssemos ser vitimas de um assalto.
Curioso e preocupado, fiquei observando o comportamento das pessoas. Vi várias comprando presentes na tradicional “Feirinha”; outras comprando sorvete, exibindo a carteira porta cédulas, celulares…, vivendo naturalmente, como se estivessem numa cidade de primeiro mundo.
Decerto é que o quadro não parecia tão feio como pintaram. Contudo, encafifado com a advertência, achei melhor procurar um lugar mais seguro. E assim, peguei um táxi e fui ao shopping, na certeza de estar, pelo menos mais confortável psicologicamente, embora nem tão seguro.
Ao entrar no táxi, iniciei conversa com o motorista, cearense de Sobral, morando em Fortaleza há vinte anos, quinze deles dedicados ao serviço de táxi. E como quem não quer nada, fui puxando assunto. Percebi logo que o “coleguinha” era do tipo falante, do tipo que tem a maior facilidade para dar informações.
Comecei falando de futebol e depois sobre política. No futebol, fomos bem. Sem revolta, só alguma frustração. Inobstante, quando passamos a falar de política… Bem, imaginem o que ele disse dos nossos representantes. Mas eu não queria falar de política, nem de futebol. Queria mesmo era saber da violência.
Travei com ele o seguinte diálogo, a propósito:
– Li as últimas estatísticas dando conta de que Fortaleza é uma das capitais mais violentas do mundo. O que o amigo acha dessa informação?
Ele, sem titubeio, respondeu:
-Tudo mentira. Essas estatísticas não condizem com a realidade. Aqui não tem violência coisa nenhuma. A violência daqui não é diferente das demais capitais.
Percebi que ele não gostou. Ficou exaltado com a minha indagação. Pensei: meu Deus, esse assunto não é do agrado do companheiro. Fiquei preocupado e silenciei.
Depois de uma pausa, ele perguntou de onde eu vinha. Respondi que era de São Luis do Maranhão. Ele, galhofeiro, com um sorriso maroto, como uma vingança, disse:
-Terra de fulano, hein?
Como eu já esperava pela provocação, reagi.
-Verdade. Mas prefiro dizer tratar-se da terra de Josué Montelo, Gonçalves Dias, Humberto de Campos, Aluisio de Azevedo, Agostinho Marques, Ferreira Gullar, Joãsinho Trinta, Lourival Serejo, Milson Coutinho, Nauro Machado, Viriato Correa, Turíbio Santos e Zeca Baleiro, dentre outros maranhenses ilustres.
Daí em diante, ele passou a falar de política, como se pretendesse fugir do tema violência. Disse o diabo de todos. Do Ceará não escapou ninguém. Disse horrores de Lula e Dilma. Parecia odiá-los.
Diante de mais essa reação, dei um refresco, falei mal de alguns políticos e elogiei outros. Fiz ver a ele que há, sim, pessoas de bem no mundo da política e que não é justo a generalização.
Dei um tempo, o shopping se aproximando, e voltei ao tema que me preocupava: violência.
-Sim, amigo, e a violência?! Fortaleza é ou não uma cidade violenta?
Ele me olhou com a cara de quem não gostou da minha insistência, e disparou:
-O senhor quer saber de uma cosia? Essa violência de que falam tem uma explicação. É que nessas estatísticas fajutas, entram as mortes de marginais. E a morte de bandido não conta, doutor.
E prosseguiu:
– O camarada está praticando um assalto ou acaba de praticar, a polícia chega, e ele afronta a policia…tem de morrer. Agora, levar isso em conta para dizer que Fortaleza é violenta, aí, meu amigo, já é demais.
Foi adiante.
– O senhor pode observar: são poucas as pessoas de bem nessa história. Só morre bandido. E bandido, repito, não conta. Bandido é feito pra morrer mesmo.
Retruquei, mas confesso que o fiz temendo a reação dele:
-Sem julgamento? Na marra mesmo? Sem direito à defesa?
Ele me deu uma olhada de esguelha, e disparou:
– Defesa pra bandido, doutor? E quem é que vai esperar julgamento, doutor? Doutor, esses caras vão presos hoje e amanhã estão de volta à rua. Tem é que morrer mesmo. E não tem nada que contar essas mortes para efeito de estatísticas. Estatística é pra gente de bem. Bandido não conta, doutor, disse, elevando a voz.
– Esses caras, doutor – prosseguiu –, ou morrem em confronto com a polícia, ou são eles mesmos se matando por causa de droga. E tudo isso é coisa de periferia. Tem é que morrer mesmo, insistiu. São (sic) um bando de marginal que só faz mal à sociedade. Tirando esses bandidos das estatísticas, concluiu, o senhor pode crer que aqui não tem violência.
Estupefato, calei. Depois, pensei: Deus meu, a que ponto nós chegamos! Em que mundo estamos vivendo?! O ser humano não vale mais nada mesmo.
Segundo o nosso “analista urbano”, pessoas da periferia, os pobres, os ditos bandidos, esses devem mesmo morrer, e não servem nem mesmo para fins de estatística; não têm direito a um julgamento justo, ademais.
O que se deve lamentar, em face dessa visão enviesada, é que não são poucos os que pensam da mesma forma. Nas instâncias de controle, o que é lamentável, testemunhamos, com clareza, essa discriminação.

SOLIPSISMO JUDICIAL

 

Ferreira Gular, na Crônica intitulada “Dos três poderes sobrou um”, publicada na Folha de S. Paulo, dia 14 de fevereiro, sentencia: “Não há duvida alguma: o Executivo e o Legislativo perderam a autoridade que a Constituição lhes outorgou. Dos três poderes, o único que merece a confiança do povo – porque responde às suas expectativas e ante a sobrevivência do Estado brasileiro – é o Judiciário, que, aliás, assusta aos outros dois”.
Essa é a visão, portanto, do grande poeta maranhense sobre os três Poderes da República, que, de resto, tem sido a percepção da maioria dos brasileiros. E é, afinal, o mínimo que se deseja nos dias atuais, com as instituições em estado de quase putrefação.
“A exacerbação das individualidades, em detrimento da colegialidade, além de ampliar a instabilidade política, pode colocar em risco a própria autoridade da corte. E tudo o que não precisamos neste momento é de um tribunal vulnerável”. Oscar Vilhena, Colunista Folha de S. Paulo, edição de 06 de abril de 2016.
Essa é a síntese do artigo de Oscar Vilhena, a propósito da liminar do Ministro Marco Aurélio, determinando o processamento do pedido de impeachment do vice-presidente da República Michel Temer, pela Câmara dos Deputados, decisão muito combatida pela comunidade jurídica nacional. Mas também é tudo que não se deseja do Poder Judiciário, em sua instância colegiada, pois as condutas individualistas, solipsistas, egoístas e egocêntricas não contribuem para o fortalecimento da instituição; antes, a depreciam, a fragilizam, causando-lhe indesejável instabilidade.
Ferrreira Gular sintetiza tudo o que os magistrados de bem desejam para o Poder Judiciário: que ele seja mesmo respeitado pelos jurisdicionados, sobretudo nos dias atuais, donde exsurge, a olhos vistos, a descrença, quase generalizada, dos Poderes Executivo e Legislativo; Já Oscar Vilhena, de seu lado, resume tudo o que devemos abominar num colegiado, a propósito das ações individualistas, personalíssimas dos que, num sodalício, numa casa (que deveria ser) marcada pela pluralidade, parecem(?) não ter a exata noção da importância das decisões plurais.
As decisões marcadamente individualistas, com o consequente abespinhamento do sistema colegiado, como ocorre, por exemplo, com as decisões monocráticas, devem ser evitadas, tanto quanto possível, porque, além de expressar um labor solitário, deixam má impressão junto aos jurisdicionados e à própria comunidade, sobretudo se sem as cautelas legais.
Esse individualismo egoísta e malsã, em boa hora restringido no novo CPC, mostra a sua face mais aguda e mais danosa quando se cuidam de decisões liminares, inaudita altere partes, no segundo grau, gestadas durante o plantão, sem que, muitas vezes, se observe, como tem ocorrido, o pressuposto da urgência, com flagrante menoscabo, repito, do sistema colegiado.
A gravidade se avulta ainda mais grave e preocupante quando se constata que, em alguns casos, o recurso – ou ação, nas hipóteses de competência originária – já está em curso, inclusive com relator definido, a quem cabe, ex vi legis, examinar eventuais pleitos, a roborar, a fortiori, a inocorrência da urgência que pudesse justificar a ação de outro julgador que não o magistrado para quem o feito foi antes distribuído.
Não é possível a uma nação se conduzir, crescer, se fortalecer, desempenhar a contento o seu papel, corresponder às expectativas da população, nos campos econômico, político e social, se apenas um dos três Poderes tiver credibilidade. A fortiori, será muito mais difícil se o Poder que ainda detém alguma credibilidade vier a sucumbir em face da ação desavisada e nefasta de uns poucos.
Contudo, o que temos testemunhado, nos dias presentes, a fragilizar as nossas esperanças, é o esfacelamento dos Poderes Executivo e Legislativo: aquele em menor escala; este de forma mais acerba e preocupante.
Entrementes, não nos iludamos: o Poder Judiciário, persistindo a ação nefasta dos que atuam sem nenhuma preocupação com a sua credibilidade, mais cedo do que se imagina fará companhia aos demais poderes, cujas consequências é impossível avaliar.
Nesse cenário, é de bom alvitre que o Judiciário, por seus membros mais descuidados, se aperceba de que, a cada decisão heterodoxa, seja uma liminar, seja uma definitiva, ele se fragiliza ainda mais; e a sua fragilização é o que de pior pode ocorrer para uma nação, cujos poderes Executivo e Legislativo gozam de nenhuma, ou de diminuta credibilidade.

Eu, viciado

 

O pintor francês Jean-Baptiste Debret chegou ao Rio de Janeiro em 1816, a convite de D. João VI, para fazer registros oficiais da vida na então capital do reino português. Contudo, foi muito além e documentou, ademais, maus-tratos e humilhações aos escravos. Graças a Debret, portanto, foi registrado o triste cotidiano dos escravos, uma vez que são muitas as pinturas de Debret dando conta das idas e vindas do dia a dia escravo no Rio de Janeiro do século XIX.
As informações dão conta de que, graças à ação de Debret, tivemos notícias do que ocorria no cotidiano da então capital do império. Todavia, constam das mesmas informações que, pelo fato de Debret ser um só, muitas coisas importantes deixaram de ser registradas por ele.
Fico pensando, cá com os meus botões, o quanto saberíamos da história desse período, se Debret tivesse às mãos essa “praga” chamada smartphone, que flagra e registra nos dias presentes as situações mais inusitadas, como se deu recentemente com um senador da república, um boquirroto inconsequente, que se viu preso por conta de uma gravação feita num aparelho celular, quando exercia, imprudentemente, a prática da bravata, para dizer o mínimo.
A verdade é que, nos dias de hoje, em face do smarthphone e em vista da instantaneidade da internet, quase ninguém faz mais nada escondido, sendo recomendável, no mínimo, que redobre os cuidados com a bisbilhotice alheia, pois, afinal, ninguém nunca sabe quando o interlocutor tem um diabinho igual a esse ligado, captando uma conversa. E uma vez ocorrido o flagra, e este caindo nas redes, pronto: a desdita é para sempre, sem controle, sem peias e sem limites.
O aparelho celular existe hoje para o bem e para o mal. Às vezes, fico me perguntando como se vivia antes sem esse ele, que a muitos vicia, que a outros tantos entorpece; que tira o sono, que grava, que filma, que publica, que modifica o mundo exterior.
Não sou viciado (?) em celular e nem em internet. Mas confesso – olha que bela contradição! – que não sei como viveria sem saber que tenho à minha disposição um tablet e um aparelho celular, sobretudo para o envio de mensagens e para as minhas leituras diárias, já que praticamente aboli os livros e os jornais físicos.
Um episódio interessante, a propósito, que bem retrata a importância do celular nos dias atuais, ainda que o seja em face de um episódio incomum. Tenho um compadre e amigo que, quando ia ao shopping, antes da era do celular, curiosa e inusitadamente, localizava os filhos pequenos e a esposa com um apito, pouco se importando com as interpretações que pudessem ser dadas a essa modalidade curiosa de busca. Hoje, com o aparelhinho, tudo mudou. Um toque, uma mensagem, e pronto!
Outro episódio tão inusitado quanto. Um irmão meu de sangue, não usava apito, mas se comunicava com um estridente assovio. Era assoviar, no shopping ou na Rua Grande, e seus filhos apareciam em desabalada carreira.
Hoje, essas práticas estão obsoletas. Um clic no celular e pronto:
-Onde estás?
-Estou próximo do supermercado.
-Estou indo para aí.
Simples assim.
Mas o mesmo aparelhinho, cuja utilidade é indiscutível, é, muitas vezes, fonte de irritação. Fico agastado, sim, quando alguém esbarra em mim por conta da desatenção em face do aparelho celular. Fico estupefato quando vejo, numa academia, as pessoas correndo na esteira ou se exercitando no elíptico, fazendo a leitura concomitante das mensagens recebidas no viciante e, quase sempre, irritante aparelho.
E quando deixam o personal esperando enquanto respondem às mensagens? O personal olha para um lado, olha para o outro, coça a cabeça, dá uma olhada nos presentes, curte a morena que passa nas proximidades, cumprimenta um colega de academia, e nada: o aparelho hipnotizou a aluna. Pronto! O programa de treinos para aquele dia já está prejudicado.
Fico olhando, perscrutando, mas fazer o quê?
E quando os mesmos alunos param na frente do bebedouro ou na porta de entrada ou nas escadas, atrapalhando as pessoas, concentrados e perdidos em face da magia proporcionada pelo famigerado e irritante aparelho?
Você já viu coisa mais estranha que um grupo sentado numa mesa de bar ou de restaurante, todos conversando com quem não está lá, via whatsapp, como se o amigo – ou amigos – da mesa não existissem?
E quando a gente se depara, como ocorreu comigo, recentemente, no São Luis Shopping, com alguém andando com o celular nas mãos, esbarrando nas pessoas, lendo as mensagens e rindo sozinho?
A minha dúvida é se Debret tivesse vivido essa mesma experiência faria um bom ou mau uso do celular. Confesso que não tenho dúvidas. O aparelhinho vicia. Debret seria, nos dias atuais, apenas mais um viciado, mas certamente saberia fazer um melhor uso do instrumento, como fez com o pincel, dando a sua contribuição à construção da historia do nosso país.
Mas, convenhamos, apesar das muitas inconveniências proporcionadas por uso abusivo, a verdade é que nem eu saberia como viver nos dias presentes sem os meus dois aparelhos de celular e meus dois tablets.
Sim, tenho dois aparelhos de cada. É que tenho receio de que acabe a bateria de um, e eu fique sem comunicação, apesar de andar com um carregador de bateria para não correr nenhum risco.
Como assim? Eu, viciado?
Sei lá!

O TRIBUNAL MORAL DE CADA UM

batendo-o-marteloDando sequência às nossas realizações na direção do Núcleo Permanente de Conciliação, estivemos recentemente em Imperatriz para instalar o I Balcão de Renegociação de Dívida da Região Tocantina.
Instalados os trabalhos, apresentou-se um devedor ávido por renegociar a sua dívida, já que se sentia incomodado por ainda não tê-lo feito em face de suas dificuldades financeiras. Detalhe relevante: a dívida do cidadão era no importe – pasmem! – de R$ 26,17 (vinte e seis reais e dezessete centavos).
Pois bem. Sentados, civilizadamente, credor e devedor, numa mesa de (re)negociação – o que só foi possível em face da implementação do Balcão de Renegociação, projeto do Núcleo de Conciliação do Tribunal de Justiça -, chegaram a um acordo: o credor aceitou que o débito fosse quitado por cerca de R$ 6,00(seis reais), que era o que podia pagar o devedor.
Conquanto seja exemplar esse fato, não foi o valor da dívida nem o valor da quitação, que motivaram essas reflexões. A motivação decorre da reafirmação, definitiva, de que cada um de nós tem um tribunal moral interior que nos impulsiona para o bem e para o mal: o tribunal da consciência que, tenho certeza, impulsionou o devedor a buscar a quitação da dívida que o incomodava.
Eu tenho, tu tens, todos nós temos, sim, um tribunal moral ou de consciência, que guia, que conduz, que determina as nossas as ações, a nossa maneira de ser, a visão que temos do mundo e, de consequência, a maneira como devemos lidar com os nossos problemas.
Posso dizer, nesse sentido, que o que não é moralmente aceito por mim pode ser admitido como normal para o semelhante, de acordo, claro, com o seu tribunal moral. É por isso que há homens públicos honestos e desonestos, por exemplo.
Tudo está a depender, portanto, do tribunal moral ou de consciência de cada, ou seja, da forma como fomos criados, de como fomos preparados para as vicissitudes da vida, de como lidamos com os nossos problemas, que são resultantes, não tenho dúvidas, dos valores que incorporamos à nossa personalidade.
Nos dias presentes, é a frouxidão dos tribunais de consciência que nos leva a esse quadro de descalabro moral, de licenciosidade, de benevolência de muitos para com os desvios de condutas, convindo anotar, ainda que para desalento de muitos, que até mesmo nas instâncias de controle, há os que se predispõem a dar guarida ao malfeitor, sempre de acordo com o seu tribunal moral interior.
Muitos homens públicos estão aí a nos envergonhar, os quais, como eu já disse em outro artigo, nos fazem perder a esperança, não nos deixam sonhar. Por isso, estamos desalentados, contristados, acabrunhados, macambúzios, desesperançados, vendo, quase em estado de estupor, muitas vezes inertes e descrentes, o esfacelamento das instituições, decorrente dessa grave, gravíssima degradação moral pela qual passamos.
O cidadão de bem, revoltado, reage, vai às ruas, grita, esperneia, e depois percebe que tudo voltou a ser como antes. Desalentados, mas crédulos, todos nós clamamos aos céus, na quase certeza de que só nos resta mesmo aguardar por uma providência divina.
Diante desse quadro é que aparecem os heróis nacionais, os salvadores da pátria. Heróis que, no geral, apenas cumprem as suas obrigações. Contudo, em virtude de fazê-lo com destemor e sem distinção, se destacam como super-homens, super-heróis nos quais terminamos por depositar as nossas esperanças.
Devo admitir que, apesar de já ter visto muito, nunca havia testemunhado antes tamanha licenciosidade, tamanha falta de vergonha, tamanha falta de compostura, de pudor dos nossos homens públicos, os quais, triste ter que admitir, só visam mesmo à defesa dos seus próprios interesses.
Lê-se, ouve-se dizer que é assim mesmo, que sempre foi assim, desde que o país foi descoberto. É possível que sim. Isso, no entanto, não arrefece a minha, a nossa indignação, mesmo porque – para mim, pelo menos – esse é um argumento fajuto de quem deseja que tudo permaneça como está.
A verdade é que, aos olhos dos desinformados, os homens públicos do Brasil parecem ser rigorosamente iguais, uma vez que poucos são os que se destacam por uma postura compatível com o que se espera de um homem que esteja a serviço do interesse comum.
Por isso, reafirmo, parecemos todos iguais aos olhos do cidadão que, descrente de tudo, nos nivela por baixo; por isso, a sua intolerância em relação aos homens públicos.
É nesse ambiente de desesperança e de grave degradação moral que aparecem os farsantes, os que aproveitam as nossas fragilidades, para nos vender falsas promessas, nos fazendo acreditar que, doravante, tudo será diferente, para, depois, estarrecidos, constatarmos que nada mudou.
Num país em que as instâncias de controle são quase sempre lenientes e frouxas, o que nos resta mesmo é esperar que o tribunal moral de cada um cumpra o seu papel, pois, infelizmente, as ações tendentes a obstar as condutas daninhas dos homens públicos do nosso país ainda parecem ser uma exceção.

VIVENDO EM OUTRO MUNDO

 

 

Celso Antonio Bandeira de Melo, a propósito das manifestações a favor do impeachment, disse o seguinte: “O mais curioso é que são pessoas da alta classe média. Elas não trabalham, pois podem se dar ao luxo de fazer arruaça. Já os que trabalham não podem . Pode até parecer que eles são maioria, mas não são. É uma minoria de elite lutando contra os pobres”.

Em que mundo esse senhor vive?

Uma lixa de unhas

Essa crônica tem muitas probabilidades de surpreender alguns, sobretudo os que não me conhecem, os que construíram a minha imagem à luz de uma percepção equivocada da minha personalidade, definida a partir de um estereótipo, provavelmente construído em face de algumas posições por mim assumidas no passado, que eu próprio denominaria de heterodoxas, próprias da idade e da inexperiência.
Essa crônica, noutro giro, certamente que não surpreenderá os que me conhecem, os que convivem comigo mais amiúde, os que sabem quem eu sou, ou seja, a minha família e os funcionários que convivem comigo mais de perto.
Essa crônica, importa dizer, ademais, é como um retrato inacabado de mim mesmo, pois, como sói ocorrer, revela apenas uma parte da minha personalidade, da minha maneira de ser, das coisas simples que valorizo, e do que penso.
Feita essa breve linha introdutória, devo dizer que não sou uma pessoa sofisticada. Eu gosto, na verdade, das coisas simples. Meu carro, meu apartamento, meus ternos, meus sapatos, minha meias, tudo que tenho e consumo é marcado pela simplicidade.
Nasci e cresci nesse ambiente simples e dele não consigo me separar, resultando daí, quem sabe?, as dificuldades que tenho conviver com a ostentação, pela qual, importa anotar, tenho, até, certa aversão. Por isso, não sou muito simpático ao esnobe; esnobismo que, para mim, é pura bobagem.
Vivo como posso e não vou além, conquanto tenha lutado muito para não estar aquém, mas tudo dentro de certos limites. Só vou até onde é possível ir, pois não me apraz, repito, a magnificência, a pompa, a exibição vaidosa, razão pela qual não simpatizo com o exibicionista, para quem as coisas simples parecem não ter valor.
Além disso, não tenho ambição material; não tenho ambição de poder. Não me vejo, por exemplo, presidente do Tribunal de Justiça, pois acho o cargo muito grande para mim. Muito mais do que sempre sonhei, mesmo porque sou avesso às solenidades e não me julgo preparado para administrar um Poder, conquanto venha me preparando para a hipótese de a minha contribuição mostrar-se inevitável.
Aduzo que não me vejo presidente, dentre outros motivos, porque me agastam, sobremaneira, os discursos longos, formais e cansativos, sendo difícil, pois, suportá-los na condição de representante do Poder Judiciário. Da mesma forma, não sei encarar com naturalidade os cumprimentos desnecessariamente efusivos, os chamados elogios de ocasião, já que tudo isso me causa certo desconforto.
Ademais, não me vejo corregedor. Acho, igualmente, a responsabilidade muito grande. Tendo sido, como efetivamente sou, um crítico assaz da leniência dos órgãos de controle interno, é evidente que só seria corregedor se pudesse exercer, plenamente, o poder a mim conferido, o que, sei, não é possível, por óbvias razões
Sem grandes ambições materiais e funcionais, eu prefiro ser apenas o que sou. Se não posso trafegar num Posche Cayman, a mim me satisfaz, completamente, a direção do meu SUV médio, compatível com o meu modo de ser e com as minhas possibilidades materiais.
Mas como eu disse acima, gosto e dou valor às coisas simples, como uma lixa de unhas, por exemplo; serra de unhas que, afinal, foi o que me deu inspiração para essa crônica.
Explico. Estava lendo, nos dias de folia (carnaval), quando uma unha se partir e passou a me incomodar; incômodo que me agastou, principalmente, porque tirou a minha concentração da leitura. Nesse cenário, fiquei agastado e confesso que nunca desejei tanto uma serra de unhas como naquele momento.
Pensei, pensei, até que lembrei onde eu tinha visto uma. Levantei, rapidamente, deixei o livro de lado e saí, na expectativa de encontrar o meu objeto de desejo; encontrando-o, lixei as unhas, voltei ao sofá e ao livro.
Uma coisa simples, aparentemente banal, sem grande valor material, como uma serra de unhas, me devolveu a paz de espírito que eu precisava para continuar lendo.
Por isso – e muito mais – é que gosto, empresto valor às coisas simples. É nelas, definitivamente, que encontro o que preciso.

O QUE NÃO MUDA NA DECISÃO DO SUPREMO

supremo-tribunal-federal-claudio-marcio-2Na semana passada, o mundo jurídico foi surpreendido com a decisão do Supremo Tribunal Federal, mudando a sua orientação jurisprudencial, que vigorava desde 1999, para considerar a possibilidade de o réu condenado em segunda instância começar logo a cumprir a pena; antes, portanto, do trânsito em julgado da decisão condenatória.
A mudança de posição da Suprema Corte decorre, induvidosamente, da sensação de impunidade e dos efeitos danosos para sociedade dos incontáveis recursos manejados por hábeis advogados, no sentido de evitar que uma casta privilegiada pague pelos crimes que cometeu.
A razão de tamanho frisson – e muita indignação no andar de cima da criminalidade – no mundo do Direito condiz com o argumento de que, com a decisão, o Supremo solapou o princípio da presunção de inocência encartado em nossa Constituição, que prescreve ser inocente o acusado, até que sobrevenha uma decisão condenatória transitada em julgado, a obstar o cumprimento antecipado da pena infligida.
Nessa linha de pensamento, o ministro Celso de Melo, por exemplo, que votou com a minoria, argumentou, que o principio da presunção de inocência é um velho principio, detestado por regimes autocráticos, pois, segundo a sua linha argumentativa, esses regimes temem a liberdade, conquanto todos saibamos que na maior democracia do mundo, os Estados Unidos, os condenados não precisam aguardar o esgotamento das vias recursais para iniciarem o cumprimento da pena.
Há, nitidamente, duas correntes assumindo posições díspares em torno da questão tão comentada nos últimos dias. De um lado, a grande maioria de magistrados, representantes do Ministério Público, Delegados e população em geral, rendendo homenagens à decisão, ao argumento de que o STF, com ela, fechou, definitivamente, a janela da impunidade; do outro, assumindo posição diametralmente oposta, estão os advogados e defensores, os quais, por sua quase totalidade, assumiram posição crítica e contestatória, argumentando que o STF, com a decisão, solapou o principio da presunção de inocência e favoreceu o erro judiciário.
Entretanto, ninguém disse o que vou dizer agora. Para a absoluta maioria dos condenados, nada, rigorosamente nada mudou com a decisão do Supremo. Explico. É que a quase totalidade de condenados no Brasil, egressos das classes menos favorecidas, têm, desde sempre, como ultima instância, os Tribunais de Justiça dos Estados.
É dizer: para essa grande, quase totalidade de condenados pelo sistema, que são os desvalidos e miseráveis, para os quais o Estado nega quase tudo, recursos ao STJ e STF é um luxo ao qual só excepcionalmente têm acesso, significante que a grita que se verifica decorre exatamente do fato de que, com a decisão revolucionária, o STF fecha as portas da impunidade para uma minoria, que sempre se valeu dos recursos para se furtar de cumprir as penas, cujos exemplos saltam aos olhos, sendo despiciendo fazer qualquer citação nominal dos réus poderosos que, com esses expedientes, deixaram de pagar pelos crimes cometidos, beneficiando-se, como é pratica comum, da prescrição, que decorre exatamente em face do tempo fluido entre o crime e a data do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Do exposto resulta a elementar constatação de que essa revolta, em face da decisão do Supremo, esse argumento de que, com a decisão, o Supremo, rasgou a CF, só tem sentido mesmo para uma minoria, que tem condições de, por meio dos grandes escritórios de advocacia, levar os processos às últimas consequências, utilizando-se das vias recursais, prolongando-os em demasia, introduzindo na população uma sensação nefasta de impunidade.
A grande verdade é que, para a absoluta maioria, para a quase totalidade da clientela do Direito Penal, essa decisão do Supremo não tem nenhuma consequência prática, não muda nada em sua vida. Os miseráveis, os destinatários da persecução penal, com efeito, continuarão a ter, como de fato têm até hoje – e quando têm – como única instância recursal os Tribunais de Justiça, onde os processos costumam ter fim, pois é nessa instância que se verifica, como regra, o trânsito em julgado das sentenças condenatórias.
A verdade é que, em face dos inúmeros recursos que podem ser manejados ao longo da persecução criminal, os que têm “bala na agulha” – como se diz popularmente -, os que têm condições de manejar tantos recursos quantos cabíveis, conseguem adiar – até a prescrição, muitas vezes – o cumprimento das penas infligidas, o que, convenhamos, favorece uma certa revolta, que estimula o apotegma de todos conhecidos, segundo o qual prisão no Brasil se destina apenas a pobres, pretos e prostitutas.
Estima-se que, com a decisão do Supremo, processos que duravam 20 anos poderão estar concluídos em 5 anos, o que, convenhamos, fará um bem enorme à sociedade, que, certamente, cerra fileiras à afirmação do ministro Luis Fux, segundo o qual “A sociedade não aceita mais a presunção de inocência de uma pessoa condenada que não para de recorrer”.
A verdade é que, com essa decisão, o Supremo coloca o Brasil na direção da eficácia judicial, o que o coloca nos mesmos níveis dos países desenvolvidos, cujo sistema não compactua com a chicana e com o retardo ad eternum do cumprimento das decisões condenatórias, que, todos sentimos, alimenta a sensação de impunidade que de seu lado, todos vemos, alimenta a criminalidade.