O ENCARCERADO

Menina-de-12-anos-esta-presa-em-cadeia-publica-em-MSMinha mente é um verdadeiro turbilhão, do bem, registre-se, conquanto admita que, como qualquer mortal, algumas vezes me pego tomado por pensamentos malsãos. Todavia, procuro – tento, pelo menos – não perder tempo pensando bobagens, na certeza de que, povoando a mente com coisas boas, tende-se a fazer o bem, tendemos a ser melhores.
Pode até soar estranho dizer o que parece óbvio, mas não é tão óbvio assim. Há pessoas, aparentemente bem resolvidas, cuja mente é um redemoinho de maldades, sendo que algumas delas parecem ter o juízo totalmente voltado para o mal. E embora seja lamentável admitir essa realidade, cada um de nós conhece pelo menos um ser humano que, preponderantemente, pensa e age para fazer o mal; inexplicavelmente, muitas vezes.
Pois bem. Dia desses, bem cedo ainda, quando passava a vista nos jornais do dia e nas revistas da semana, uma matéria me levou a revisitar Francesco Carnelutti, um dos expoentes da escola jurídica italiana, relendo uma obra que todo aluno do curso de direito, todo advogado, todo promotor de justiça e todo magistrado já leu ou pelo menos teve notícia: As Misérias do Processo Penal, obra na qual o autor descreve o drama da justiça penal.
Fui revisitando a obra como se fora a primeira vez, até que me deparei com um excerto que me fez fechar o livro – ou melhor, desligar o iPad, já que se trata de um e.book – e escrever essas reflexões.
Lembro que, em Vitorino Freire – minha terra amada de quem o destino me afastou fisicamente, mas que não sai da minha lembrança -, quando criança, a caminho do mercado municipal, passei, muitas vezes, em frente a um prédio que, depois, soube tratar-se da delegacia municipal.
Na passagem, intrigado com as grades que ornamentavam as janelas e as portas do prédio eu costumava questioná-las, como faria qualquer criança curiosa, vez que, àquela época, ainda não eram colocadas grades nas casas como fazemos nos dias presentes em face da violência,
Os adultos que me faziam companhia, em respeito à minha estupefação, me alertavam que aquele era um lugar destinado aos criminosos, pessoas más, as quais, de tão más que eram, tinham que ficar afastadas das pessoas de bem, pois costumavam atentar contra os semelhantes.
Passei a ter medo, pavor daquele lugar. Com esse sentimento, todas as vezes que passava próximo, virava o rosto, com receio de deparar-me com uma pessoa má, conquanto não fossem muitos os detidos à época, rarefeita que era a criminalidade.
Certo dia, entrementes, desatento, passei próximo à delegacia e deparei-me olhando, mais uma vez, para dentro do prédio. Mais grave ainda: vi uma pessoa “má” no seu interior. Foi a primeira vez que vi a tal pessoa “má” de que me falavam os adultos, de cujo rosto nunca mais me esqueci.
Assustado, quis saber dos adultos o que tinha feito aquele homem, que nunca mais saiu da minha memória, para que fosse tido como uma má pessoa e para merecer, de consequência, a prisão. Fui informado de que ele estava preso, para “pagar” pelo crime cometido, uma vez que tinha desferido várias facadas contra um semelhante. Foi a primeira notícia que tive na minha vida de que um homem fosse capaz de atentar contra a vida do semelhante, sem saber o que o destino reserva para a minha vida profissional.
Certo dia, para a minha surpresa, passando na famigerada Rua da Veada, onde eu morava – e não me pergunte a razão do nome, pois não sei -, vi o famigerado homem mau sentado na porta da casa de um vizinho, distante cerca de 100 metros da minha casa.
Voltei na mesma pisada, em desabalada carreira. Disse à minha mãe, estarrecido, que tinha visto o homem “mau” da delegacia, sentado na porta de um vizinho. Minha mãe, então, me informou que o homem mau era irmão do vizinho em cuja casa estava hospedado, e que o juiz tinha dado liberdade a ele, ou seja, a despeito do crime, ele estava em liberdade, o que, para mim, não era compreensível.
Essa foi a primeira vez que ouvi dizer que uma pessoa que matava o semelhante podia ficar em liberdade por decisão de um juiz. Depois, já como juiz, vi que o indivíduo que mata – ou lesiona, ou rouba, ou trafica drogas etc – nem sempre pode ser considerado uma pessoa má, e que a prisão, antes do julgamento, era uma excepcionalidade.
O excerto do livro de Carnelutti que me levou a voltar no tempo e me lembrar do primeiro preso com o qual me deparei, está vazado nos seguintes termos: “O homem encarcerado ou o homem trancado numa cela é a verdade do homem; o direito não faz mais que revelá-la. Cada um de nós está fechado em uma cela que não se vê. Nós não nos assemelhamos aos animais porque estamos na cela, e sim que estamos em uma cela porque nos assemelhamos aos animais. Ser homem não quer dizer não ser, e sim poder não ser animal. Esta capacidade é a capacidade de amar” (Francesco Carnelutti, in as Misérias do Processo Penal).

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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