É comezinho que não se condena com base apenas em provas administrativas, id est, em “provas” colhidas apenas na fase policial ( Amilton Bueno de Carvalho: “A única prova hábil a gerar certeza é aquela coletada perante autoridade equidistante, com sóbria fiscalização das partes, no espaço público. Aliás, o inverso, onde vigora o segredo e a busca da verdade máxima a qualquer preço, se situa na sistema inquisitorial vigorante na idade média”), porque, todos sabemos, produzida sem a observância do contraditório e da ampla defesa, corolários do devido processo legal.
O contraditório é, pois, indispensável para própria existência da estrutura dialética do processo.
A audição da parte mais frágil da relação processual em face da juntada de um laudo pericial aos autos e que tenha relevância para o deslinde da questão, por exemplo, é de suma relevância para que se possa fazer um julgamento constitucionalmente justo.
Nesse sentido, vislumbrando o magistrado que determinada prova, essencial à resolução do litígio, foi colacionada com afronta aos princípios do contraditório e da ampla defesa, deve, sim, sem titubeio, anular o processo, para que se repare a eiva, em tributo, também, à dignidade da pessoa submetida a julgamento, afinal, como ensina o sempre lembrado professor José Frederico Marques, o livre convencimento não significa liberdade de apreciação das provas em termos tais que atinja as fronteiras do mais puro arbítrio.
Mas quando eu afirmo que deve o magistrado, diante de uma eiva que macule a defesa do acusado, anular o processo, reporto-me ao magistrado garantista; não me refiro, portanto, aos que se travestem de justiceiros, aos que não hesitam em arrostar os direitos do mais débil, para parecer aos olhos dos incautos como arautos do combate à criminalidade.
Tenho dito, com Aury Lopes, que o objeto primordial da tutela no processo penal é a liberdade processual do imputado, o respeito a sua dignidade como pessoa, como efetivo sujeito no processo.
Tenho dito, ademais, que aquele que, sob a toga, se compraz em malferir os direitos de um acusado, por pior que seja a sua vida pregressa ( Amilton Bueno De Carvalho, mais uma vez: “o passado de um cidadão não pode gerar presunção de que tenha praticado o delito, sob pena da adoção do totalitário direito penal do autor que vigorou na Rússia de Stalin e na Alemanha de Hitler. Aqui não interessa o que o apelante tenha feito anteriormente, mas o que fez por agora”), é, da mesma forma, um marginal; com a agravante de que se trata de um marginal togado.
Não se pode, quando se trata de julgar um réu, esquecer da primazia da dignidade da pessoa humana na nossa arquitetura constitucional.
Tenho dito que não há juiz neutro. Mas tenho dito, no mesmo passo, que, conquanto não possa ser neutro (uma inviabilidade antropológica, segundo Zaffaroni), o juiz deve, além de imparcial, ser independente; e o juiz que não se liberta dos seu próprios preconceitos, na hora de julgar, não é independente.
Assim agindo, digo melhor, assim julgando, faz mal à sociedade, pois as suas decisões serão, sempre, marcadamente preconcebidas, preconceituosas – injustas, enfim.
O juiz, num Estado Democrático de Direito, tem que marcar a sua atuação pela correção de suas decisões. E decidir corretamente é decidir sem perder de vista a intangibilidade dos direitos fundamentais.
Independente não é o julgador que pensa que, em nome dessa independência, tudo pode. Independente é o magistrado que, seja qualquer for a repercussão de sua decisão, decide com esteio tão somente nas provas produzidas nos autos.
Lembro, com Ferrajoli, que a validade da sentença está calcada na verdade processualmente obtida. Ou, como preleciona Aury Lopes, no mesmo passo: a legitimação do poder do juiz decorre do vínculo estabelecido pela verdade processualmente obtida, a partir do caráter cognoscível da atividade jurisdicional.
A função do juiz no processo, tenho reiterado, é atuar como garantidor; mas garantidor, sim, da eficácia do sistema de Direito e Garantias Fundamentais do acusado no processo penal.
De nada adianta o juiz dizer-se independente, se ele julga com os olhos voltados para a repercussão positiva ou negativa de sua decisão.
O juiz que assim pensa e age, não evolui, porque a sua atuação, é destituída da necessária autocrítica.
Para finalizar essas reflexões, anoto, com Guilherme de Souza Nucci, que nada se pode tecer de justo e realisticamente isonômico que passe ao largo da dignidade humana, base sobre a qual todos os direitos e garantias individuais são erguidos e sustentados. Ademais, inexistia razão de ser a tantos preceitos fundamentais não fosse o nítido suporte prestado à dignidade humana.