“SÓ ME ARREPENDO DAQUILO QUE NÃO FIZ”

balanca2Um dia desses, tive oportunidade de ouvir numa emissora de rádio, uma entrevista com uma destacada pessoa do show business. Em determinado momento, o entrevistador pediu ao entrevistado que declinasse algo que tivesse feito e em razão do que teria se arrependido. Ele, sem titubeio, sem enleio ou meias palavras, respondeu que: “de tudo que viveu, só guardava arrependimento pelo que não fez”.

Essa afirmação, pela sua relevância, me levou a essas reflexões, conquanto já a tivesse ouvido em outras oportunidades, pois não acredito, sinceramente, que alguém tenha passado pela vida e não tenha se arrependido de nenhum ato praticado.

A estupefação foi maior, porque logo me imaginei sendo entrevistado e instado a responder a mesma pergunta. Eu não perderia a oportunidade de enumerar os arrependimentos que permeiam a minha vida, um dos quais, seguramente, foi ter levado a vida muito a sério desde a mais tenra idade, esquecendo-me, muitas vezes, de ser criança quando era apenas uma criança, antecipando, quiçá injustificadamente, as preocupações que deveriam ser próprias dos adultos.

O certo é que, instado a refletir em face da entrevista, e ainda que não tivesse que responder a nenhuma indagação, fiz, de súbito, uma retrospectiva, brevíssima, da minha vida, e conclui, sem dificuldades, que havia cometido muitos erros, como o que antecipei acima, em razão dos quais me arrependo até os dias atuais.

Penso, sinceramente, que só uma pessoa muito arrogante, que se imagina autossuficiente, ou insensível, ou do tipo que prefere o autoengano, pode afirmar, por vaidade ou por precipitação, que tenha passado pela vida sem praticar qualquer ato em razão do qual não tenha se arrependido.

Já tive a oportunidade de refletir, aqui mesmo nesse espaço, sobre falsos apotegmas que, para mim, traduzem, muitas vezes, apenas um perigoso excesso de autossuficiência – quando não arrogância -,como ocorre, por exemplo, com quem diz que “se pudesse voltar no tempo, faria exatamente tudo do mesmo jeito”, ou com quem afirma, peremptoriamente, como fez o entrevistado, que declarou só ter se arrependido na vida daquilo que não fez, como se tivesse plena convicção de que, se fizesse o que não fez, o faria acertadamente, infalivelmente.

Afirmações arrogantes como as aqui mencionadas se contrapõem, afrontam, hostilizam, a mais não poder, a lógica da vida. Afirmações como essas, digo mais, são uma agressão ao bom senso, à nossa condição de seres humanos.

Melhor mesmo, tenho consignado nos meus escritos, é ser humilde, é admitir que erramos, que somos falíveis, é constatar que não se muda de vida, de conduta ou de comportamento com arrogância, pois prepotência e arrogância são péssimas conselheiras.

Não é possível viver sem atropelos, sem errar, sem cair aqui e levantar acolá. É normal seguir por uma via equivocadamente escolhida e ter que mudar de direção. Daí a conclusão de que os que dizem que  só se arrependem do que não fizeram são do tipo que, mesmo enxergando os erros, ou sabendo que não fizeram a escolha certa, e que podem, por isso, ter prejudicado alguém pelo erro ou por uma má conduta,  ainda assim, por lhes faltar humildade, preferem dourar a pílula; são do tipo que deprecia a inteligência alheia, para quem os erros estão sempre nos outros, para, nesse passo, proclamarem a sua infalibilidade.

Até aonde a minha vista alcança, nenhum ser humano, desses iguais a nós, passou pela terra sem cometer erros, conquanto possa, até, em razão deles, não ter se arrependido, por pura arrogância. Admitir o contrário é crer no ser humano infalível, tipo semideus, desses que vêm à terra por descuido.

Eu, diferente de muitos, já me arrependi incontáveis vezes do que fiz e do que deixei de fazer. Posso citar alguns exemplos. Arrependo-me, até hoje de não ter seguido o magistério, concomitantemente com a magistratura, anotando, todavia, que não foi por falta de oportunidade que deixei de viver essa fantástica experiência, mas por falta de segurança e também por eu me julgar incompetente e imaturo.

Arrependo-me, ademais, de ter me dedicado exclusiva e diuturnamente ao trabalho, razão pela qual deixei de fazer outros cursos para complementar a minha formação humanista.  É que, ingressando na magistratura, perdi o horizonte, pois só o fato de ser juiz já me bastava, e estudar nos melhores manuais me parecia o suficiente. Nessa faina, fixei residência nas minhas comarcas e me dediquei de corpo e alma, tempo integral, ao honroso mister, estreitando o meu campo de visão.

Nos dias presentes, passados tantos anos, e com a minha carreira consolidada, nada mais me importa se não procurar fazer tão bem feito quanto possível o que me propus a fazer, na certeza de que, por não ser infalível, continuarei a errar, embora lutando sempre para minimizar os meus erros.

O tempo passou e ficou para mim apenas o arrependimento pelo que não fui capaz de realizar e pelo que fiz equivocamente, a reafirmar que eu, diferente de muitos, me arrependo de muitas coisas que fiz e muito mais ainda do que deixei de fazer por falta de experiência, covardia, insegurança, conveniência, preguiça ou acomodação.

 

O MAGISTRADO FRENTE AOS DILEMAS MORAIS E LEGAIS

20No mundo da relatividade, todos nós enfrentaremos, mais cedo ou mais tarde, inauditos dilemas morais, sem saber, muitas vezes, que posição assumir. Pensemos, por exemplo, no dilema moral de alguém que tivesse a tortura como única alternativa para impedir que um maluco, na direção de um caminhão, passasse por cima de uma multidão, como aconteceu recentemente em Nice, na França.
Decerto que, por princípio, todos nós somos contra a tortura. Todavia, convém ponderar, diante da iminência de um fato de tamanha gravidade, qual de nós, diante do dilema moral acima referido, deixaria de coonestar com a tortura de um homem perigoso, para evitar um mal maior?
Estas reflexões destinam-se aos que pensam que podem, em todas as situações, optar pelo que a lei e a ética recomendam, sem se darem conta de que, entre o discurso politicamente correto e a vida real, há, muitas vezes, um fosso tão grande, um verdadeiro abismo moral, a nos compelir a agir de modo diverso do que pregamos e do que supomos civilizado.
Em vários julgamentos dos quais faço parte, quer como relator, quer como vogal, tenho dito que o dilema moral enfrentado por qualquer um que não tenha o poder de decisão não é, de rigor, um dilema insuperável, pois, basta assumir uma posição, e dela não advirão maiores consequências.
Problema grave, conforme tenho reafirmado, é quando o dilema moral se apresenta casado com um dilema legal, que deve ser enfrentado por quem tenha a obrigação de decidir, por quem tenha, enfim, o poder/dever de julgar. Aí a coisa se complica, pois, diante de um dilema moral e, além do mais legal, não se pode, como costuma brincar Luís Roberto Barroso, declarar a demanda empatada e condenar o secretário judicial às custas processuais.
Pense, a propósito, no dilema legal/moral que vou narrar a seguir, um dos muitos que os juízes de todo Brasil têm que enfrentar no desempenho de suas funções, para que se tenha pelo menos uma parcial ideia do que seja a vida de um julgador.
Manter relações sexuais ou qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 anos é crime, mais precisamente estupro de vulnerável, conforme a dicção do artigo 217-A, do Código Penal, com preconização de pena que vai de 8(oito) a 15(quinze) anos de reclusão.
Pela letra fria da lei, pode-se concluir, sem esforço intelectivo, que diante de um ato sexual, ou qualquer outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal, praticado contra uma menor de 14(quatorze) anos, está-se diante de um crime de estupro de vulnerável, cujo autor deve ser punido com as penas preconizadas no tipo penal em comento, e estamos conversados. Afinal, em se tratando de menor de 14 anos, a vulnerabilidade, por questão de política criminal, é absoluta, segundo a maioria dos Tribunais brasileiros. É dizer, objetivamente: o agente que mantiver relação sexual com menor de 14 anos ou que com ela pratique outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal, pratica, ex vi legis, crime de estupro de vulnerável, sejam quais forem as circunstâncias do crime, conquanto muitos reconheçam, como eu, que, interpretando assim a lei, ou seja, com a consideração de ser sempre absoluta a vulnerabilidade, muitas injustiças são cometidas.
Vou tentar explicar por que entendo que a consideração de vulnerabilidade absoluta pode nos conduzir à pratica de injustiças, a partir de uma hipótese que não é incomum no dia a dia de qualquer comunidade, de qualquer magistrado, enfim.
Pois bem. Um cidadão, maior de 18 anos, vive com uma menor de 14 anos, sob o mesmo teto, como se marido e mulher fossem, na companhia de um filho havido dessa união, fato do conhecimento e aquiescência dos próprios pais da menor e dos cidadãos da comunidade em que vivem. Esse mesmo cidadão, um criminoso pela letra fria da lei é, paradoxalmente, um homem de bem, trabalhador, honesto, de conduta ilibada, que vive para o filho menor e para a companheira.
Contudo, com todos esses predicados e nessas condições, ele pode, como antecipei acima, em face da letra fria da lei (artigo 217-A, do CP) e em vista do entendimento que prevalece em nossos Tribunais, ser processado e condenado em face do crime de estupro de vulnerável, por manter relações sexuais com uma menor que, no caso, é sua companheira, mãe do seu filho. É dizer: pela letra fria da lei, o Estado, pelos seus tentáculos, pode aqui interferir não para preservar a família, mas para desagregá-la, a pretexto de punir alguém por crime de estupro, sem que o bem jurídico, de rigor, tenha sido lesionado.
Diante desse fato, importa indagar: se o principal objetivo do preceito legal em comento é proteger a liberdade sexual da pessoa vulnerável, haveria sentido em uma decisão judicial condenatória, a pretexto de proteger a liberdade sexual da ofendida, tratando-se de mulher que já vive maritalmente com o autor do fato, com experiência sexual inquestionável, e, ademais, com um filho havido desse relacionamento?
Essas reflexões decorrem da minha inquietação em face de decisões de alguns sodalícios, no sentido de presumir absoluta a violência, como antecipei acima, nos casos da prática de ato sexual ou de qualquer outro ato libidinoso, com menor de 14 anos, levando em conta, por excesso de rigor formal, o patamar etário para a caracterização da vulnerabilidade, com esteio numa ficção jurídica que nem sempre encontra amparo no mundo real, a colocar muitos magistrados diante de um grave e inquietante dilema moral e legal, que só pode ser superado pelo bom senso, sem apego rigoroso ao texto da lei, que nem sempre é capaz de conduzi-los à decisão mais justa.
Não consigo assimilar, sem certa inquietação, que o critério biológico adotado pelo legislador é o quanto basta para se aferir a capacidade de discernimento para ato sexual, sem levar em conta, dentre outros aspectos, o consentimento da ofendida, por exemplo, ou o fato de já viver maritalmente com o pretenso criminoso, como exemplificado acima.
Esse é um dos muitos dilemas morais e legais que me têm afligido como, de resto, devem afligir muitos magistrados que, assim como eu, não deixam de se inquietar quando, para fazer justiça, são compelidos a relativizar os rigores da lei, como, afinal, deve ser feito na hipótese sob retina, pois, para mim, casos de igual matiz autorizam a absolvição do acusado por atipicidade da conduta, uma vez provada, quantum satis, a capacidade de consentir, em face mesmo de uma situação jurídica já consolidada, desconsiderada a idade biológica da vítima.

Obediência ao rito

stf2-300x214Samuel Wainer, em Minha Razão de Viver, festejado livro de memórias, narra uma experiência fantástica que viveu, como jornalista, numa das suas andanças pela Europa, de 1945 a 1947. O saudoso jornalista narra que, no julgamento dos chefes do governo Vichy, uma espécie de sucursal francesa do regime nazista, os grandes réus eram o marechal Philippe Pétain e o ex-primeiro ministro Pierre Laval.
Pierre Laval, inconformado com a acusação, passou a lutar tenazmente pela sua absolvição, tarefa que se mostrou impossível, uma vez que o júri foi formado por parentes das vitimas do governo Vichy. Contudo, ainda assim, Laval resolveu lutar pela sua sobrevivência, o que resultou embalde: foi condenado à morte; inconformado, tentou suicidar-se.
Ocorre, entrementes que, na França, a condenação à morte era um ritual que precisava ser cumprido estritamente. E como Laval ingeriu veneno na véspera da data marcada para o seu fuzilamento, os médicos franceses tentaram de todas as formas reanimá-lo, tendo conseguido fazer com que ele não morresse antes da hora da execução, razão pela qual foi levado moribundo ao local onde seria fuzilado. Depois dos tiros, para alivio geral, conclui-se que o ritual tinha sido obedecido, rigorosamente.
A observância rigorosa – a ferro e fogo, diria – do ritual, no caso acima narrado, remete essas reflexões ao que acontece, respeitadas as particularidades, no mundo do direito, em face de algumas postulações radicais de nulidade, por inobservância de uma formalidade menor.
Devo dizer, inobstante, que diferente do que ocorreu no famigerado episódio envolvendo o primeiro-ministro Frances, no mundo do direito não é qualquer inobservância de formalidade que autoriza a anulação de um processo.
É cediço que o processo é formal, e, como todos sabem, há um rito a ser seguido, um caminho a ser trilhado. Como ensinam Eugenio Pacelli e Douglas Fischer, o processo é uma atividade ordenada, no sentido de chegar ao final, que é a decisão judicial. É um caminhar para frente, não para os lados, nem para trás, concluem.
O processo, é sabido, não admite, em princípio, atos praticados fora do rito estabelecido. A observância do rito, portanto, é de rigor. Mas não diria, como antecipei acima, que ele deva ser observado a ferro e fogo, razão pela qual não é qualquer desobediência a uma formalidade que leva um feito à anulação. Há, sim, um rito cuja obediência se impõe a todos quantos nele trabalhem. Todavia, convém repetir, a obediência ao rito não deve ser levada às últimas consequências. É que, nesse caso prepondera, também, a relatividade, como tudo na vida.
É verdade comezinha, mas convém reafirmar para dar sentido a essas reflexões, que nem toda desobediência ao rito impõe a anulação de um processo. Há que se observar, no caso das nulidades, a regra do pas de nullité sans grief, como, aliás, bem explicitado no HC n°104.648, STF, 2ª Turma, Rel Min. Teori Zavascki, julgado em 12.11.2013, publicado no DJ em 25.11.2013, segundo o qual “para o reconhecimento de nulidade dos atos processuais, relativa ou absoluta, exige-se a demonstração do efetivo prejuízo causado à parte”.
Na mesma senda tem decidido o STJ, segundo o qual “alegações genéricas de nulidade, desprovidas de demonstração do concreto prejuízo, não podem dar ensejo à invalidação da ação penal”, sendo imprescindível a prova do prejuízo, uma vez que o artigo 563 do Código de Processo Penal positivou o dogma fundamental da disciplina das nulidades – pas de nullité sans grief (Habeas corpus nº 229.007-RN, STJ, 5ª Turma, Rel Min. Laurita Vaz, julgado em 15.08.8.2013, publicado no DJ 26.08.2013).
A prova do prejuízo é, portanto, fundamental. Não basta alegar a existência da nulidade. É preciso ir além, como sói ocorrer. Em outras palavras: se, mesmo sem observância ao rito, o processo alcançou o seu desiderato, se não houve prejuízo ao contraditório e à ampla defesa, não há que se falar em nulidade.
Anoto que provar o prejuízo, diferente do que pensam alguns, não é apenas alegar a sua existência, e que prová-lo, ademais, não é algo inalcançável, não é algo inviável, improvável, como argumentam alguns profissionais do Direito.
Há, sim, muitas possibilidades de se consignar em ata eventual prejuízo, como pode ocorrer, por exemplo, quando o advogado faz anotar na assentada que está impossibilitado de questionar uma testemunha, ou mesmo de contraditá-la, em face de o réu não estar presente para lhe auxiliar com tal e qual informação, na hipótese, preso, não ser apresentado ou deixar de se fazer presente em face de não ter sido intimado para o ato.
Malgrado exposto, no dia a dia, o que se tem testemunhado é a pretensão de nulidade, em face da inobservância do rito, como se o prejuízo fosse uma decorrência lógica, o que não é verdade.
Logo, não se pode, por conta de uma simples alegação de nulidade, em face da inobservância de determinada formalidade, pura e simplesmente anular o processo, pois que não se pode perder de vista as conseqüências de uma decisão desse jaez, que pode, inclusive (e não é incomum), levar à prescrição.
Por isso, tenho dito, sem radicalizar, que as formalidades devem ser observadas, sim, mas não podem ser levadas às últimas consequências, como se deu no famigerado julgamento a que fiz referência acima, à guisa de ilustração.

OS DONOS DA VERDADE

themisNada é mais danoso para as relações que a soberba, a vaidade, a pretensão de ser dono da verdade, de saber o rumo certo, a direção, o caminho a ser seguido. Pessoas que pensam e agem assim, vivem sem se dar conta, na maior solidão, isoladas do mundo, encapsuladas, pois são do tipo que, julgando que se bastam, têm uma visão equivocada do mundo. Vivem como aquela mosca de uma fábula muito conhecida, a qual, estando pousada em cima de um cavalo que puxava uma carroça muito pesada, se ofereceu para sair de cima dele para aliviar-lhe o peso, numa visão equivocada da sua real importância.
A mosca da fábula não é muito diferente daqueles cuja soberba lhe oblitera a alma e a conduta, que mesmo tendo pouco ou nenhuma importância, pensam estar podendo, imaginam ser muito mais do que efetivamente são. Daí a inexorabilidade do seu isolamento.
Não sei lidar bem com essas pessoas, uma vez que tenho uma enorme dificuldade de conviver com os que se imaginam proprietários da verdade, como se esta pudesse, como qualquer objeto de consumo, ser comprada no comércio. Esses tipos esquisitos não se dão conta de que não existe verdade prêt-a-porter. Não percebem, enfim, por vaidade ou visão equivocada, que habitam o mundo da relatividade.
No mundo dos mortais ainda não nasceu ninguém que possa se intitular dono da verdade, conquanto haja entre esses mesmos mortais os que se arvoram proprietários dela, a ponto de, em defesa do seu ponto de vista, tentar desqualificar o autor do enunciado, ao invés de se deter no próprio objeto do conhecimento.
Os que se imaginam donos da verdade, creem, no mesmo passo, em face desse enorme equívoco de percepção, que estão sempre certos. Para eles, o erro, o equívoco ou a percepção equivocada estão sempre com o interlocutor. Por isso, são histriônicos, tentam ganhar no grito, dando murros na mesa, sem parar para ouvir o ponto de vista adverso; gritam, ao invés de melhorar o argumento (Desmond Tutu).
Nessa senda, convém lembrar Elio Gaspari, para quem “a convicção de estar sempre certo nos impede de reconhecer que somos capazes de errar”, razão por que vivem em permanente solidão, na suposição, também equivocada, de se bastarem a si mesmos (Vinicius de Morais).
É oportuno chamar à colação, a propósito, lapidar reflexão do ministro Luis Barroso, segundo o qual “quem pensa diferentemente de mim não é meu inimigo”, para, na mesma linha, argumentar que “a verdade não tem dono e que respeitar o outro e conviver com a divergência não significa abrir mão de si próprio”.
É preciso aceitar o pluralismo e a diversidade. Pena que há os que não aceitam a diversidade como algo natural, pensam solitariamente e não aceitam a divergência, porque a veem como uma afronta. Por isso, ao invés do argumento contrário, focam a sua reação na pessoa de quem o enuncia, numa lamentável reafirmação desse péssimo hábito brasileiro de que a melhor atitude é desqualificar moralmente quem está do lado oposto.
Nas confrarias, a falsa percepção da realidade, a impressão de ter se apoderado da verdade é ainda muito mais grave. Por isso, a advertência de Carnelutti, que não pode ser esquecida pelos que têm a difícil missão de julgar o semelhante: “Infelizmente, os juízes erram tanto mais facilmente quanto mais seguros estão de não errar”.

QUEM CALA CONSENTE?

ThemisCSei que é difícil separar o homem do magistrado. A maior prova disso é que a minha história, a minha formação moral, os valores que incorporei à minha vida, fruto da minha criação e do meio em que vivi e vivo, sempre tiveram um enorme peso nas minhas posições, quer como juiz, quer como cidadão, o que me leva a acreditar que assim o será sempre.
Por isso, a diferença que faz, para a atividade cognoscível, a relação do intérprete com o objeto do conhecimento, donde exsurge, poderosamente, um poder invisível que controla o seu psiquismo, ou seja, o seu inconsciente (Luis Roberto Barroso).
A verdade é que é muito difícil separar o que penso como cidadão do que penso enquanto magistrado, conquanto eu tenha consciência de que nem sempre posso externar tudo o que penso como cidadão em face do óbice natural que decorre da minha condição de magistrado, a qual me impõe limites, muito embora eu reconheça que tenho compartido muito da minha visão de mundo com muitos jurisdicionados que, de rigor, sabem o que penso sobre os mais variados temas, em face do que escrevo, Se me imponho limites, são apenas os que decorrem dos cânones éticos que sou compelido a respeitar.
Assim sendo, o que digo, o que penso, o que afirmo, tudo, enfim, que transmito nos meus artigos, são quase sempre, senão sempre, a junção dos meus pensamentos de magistrado e homem, aqui consideradas todas as minhas circunstâncias, todas as minhas pré-compreensões, todas as forças materiais que concorrem para a formação das minhas convicções.
Faço essa linha de introdução só para dizer que eu, como homem – e, claro, como magistrado – sempre encarei com certa desconfiança o silêncio do acusado, sobretudo perante uma autoridade judicial, conquanto saiba ser um direito seu e que, ademais, essa postura, de lege lata, não deve ser interpretada em desfavor de sua defesa (nemo tenetur se detegere).
Todavia, sinceramente, reluto em aceitar, sem estupefação, que uma pessoa acusada injustamente prefira o silêncio, ao invés de se defender com veemência de uma injusta acusação. Nesse sentido, fico sempre pensando que se um dia me vir acusado injustamente da prática de um ilícito, administrativo ou penal, vou gritar aos quatro cantos do mundo, a plenos pulmões, que sou inocente, por entender que o silêncio é incompatível com a inocência de alguém.
Diante de uma injusta acusação, eu não vou calar, definitivamente. Vou, até se necessário, provocar situações que me permitam gritar a minha inocência, ainda que o faça fora do ambiente próprio.
Por pensar assim, é que acho estranho – apenas estranho, sem antecipar, claro, nenhum juízo de valor – o indiciado ou acusado, que, diante de uma acusação que diz ser injusta, ao invés de gritar a sua inocência, prefira o silêncio. Essa, pelo menos, é sempre a primeira impressão que fica, pois é difícil crer que alguém, tendo um álibi que lhe favoreça, por exemplo, prefira não falar, o que, para mim, é uma estranha estratégia de defesa.
É cediço que não basta o silêncio do acusado para que o magistrado conclua, definitivamente, e a priori, pela sua responsabilização penal. Não é sobre isso que pretendo refletir, pois, afinal, a sua responsabilidade penal, quer opte pelo silêncio, quer decida falar, poderá não ser definida apenas em face do silêncio ou em razão do que eventualmente alegue em sua defesa, se existirem outras provas que conspirem contra o silêncio ou contra os argumentos apresentados a guisa de defesa.
O que definirá a sua responsabilização pelo crime são as provas que vieram a ser produzidas, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, corolários do devido processo legal. Todavia, nada impede que o magistrado, como cidadão que é, veja, em principio, com certa reserva, o silêncio daquele que, podendo gritar a sua inocência, opte por calar-se, uma vez que, nas nossas relações informais, ainda viceja a velha máxima segundo a qual quem cala consente.

O JUIZ RAZOÁVEL

 

Pode ser – e, verdadeiramente, é – puro truismo, mas convém reafirmar, à conta de introdução das reflexões que pretendo expender, que todos os homens públicos são, ou podem ser – e devem mesmo sê-lo -, criticados em face de suas ações e/ou omissões, o que é mais que razoável, tendo em vista a sua condição de servidor público, na sua mais ampla acepção.
Importa reafirmar, outrossim, que o juiz, por ser um servidor público, não pode passar ao largo do julgamento popular, sobretudo se ele é do tipo dado a decisões heterodoxas, ou em série – e não “sob medida” (Calamandrei) –, sem a devida fundamentação, uma vez que é por meio desta que presta contas de suas ações.
Não obstante, é necessário dizer que, mesmo pela via da fundamentação, pode um juiz, ainda que de boa fé, cometer excessos ou mesmo interpretações equivocadas do texto legal, sobretudo em face da polissemia, do amplo espectro semântico, enfim, de muitos termos, que possibilita ao julgador extrair dele (do texto) vários sentidos.
Diante dessa realidade e para que o magistrado se desobrigue corretamente do seu ofício, ele deve ter por norte, sempre, na formulação de uma decisão, a lógica da razoabilidade, pois, somente a partir dela e em vista dos debates, das argumentações, da dialética que é própria do contraditório, poderá tomar a melhor e mais consentânea decisão.
Diante de um texto legal, o magistrado, repito, deve formular sua interpretação à luz da razoabilidade, sem excessos interpretativos, sem excentricidades decisórias, sem formular teses absurdas, pois que, assim agindo, terá grande possibilidade de ser compreendido, ainda que, como qualquer ser humano, tenha certeza de que nunca passará à ilharga das críticas – justas ou injustas.
Nessa senda, anoto que um juiz razoável não deve, por exemplo, invocar ou se valer das normas de procedimentos como um obstáculo à realização do direito. Não pode, noutra banda, diante de casos semelhantes, decidir de forma, pois não lhe é permitido decidir à luz de suas idiossincrasias, de acordo com as suas conveniências, como se não existisse o ordenamento jurídico. Ademais, não pode ter em conta o processo, definitivamente, como um fim em si mesmo; deve, ao reverso, compreende-lo, na prática cotidiana, como uma fonte geradora de direitos, que é o que efetivamente é.
Um juiz razoável deve ter em conta que não é seu papel atuar como legislador, e que não pode, por isso mesmo, criar ritos ou procedimentos não previstos em lei, do mesmo modo que não pode proceder de modo a criar obstáculos a uma decisão em tempo razoável, pois nada mais dramático para o jurisdicionado que um juiz trapaceiro e trapalhão, que empurra o feito com a barriga, criando obstáculos para a entrega do provimento jurisdicional, deixando transparecer que não é imparcial.
Para quem imagina que não exista juiz que crie ou use procedimentos não previstos em lei, criando obstáculos ou emperrando o andamento do feito, por maldade ou por ignorância, vou contar uma breve, mas elucidativa, passagem.
Pois bem. Lembro que, certa feita, tendo sido introduzido no direito processual penal um dispositivo inovador que determinava que, doravante, as partes deveriam iniciar fazendo perguntas, diretamente, às testemunhas (artigo 212 do CPP), ficando por conta do juiz apenas os pontos não esclarecidos (Parágrafo único do artigo 212 do CPP) houve um(a) colega que, a despeito de se tratar de uma norma de regência, decidiu que só faria a sua aplicação quando a julgasse conveniente.
Certo dia, numa audiência presidida por mim, um advogado, ao lhe ser franqueada a palavra para as perguntas a uma testemunha dita de defesa, pego de surpresa, indagou-me:
-O senhor já está cumprindo o novo regramento procedimental?
-Sim, respondi. A lei instrumental vige de imediato, conclui.
-Estou surpreso, disse-me. Sequer me preparei para o ato, aduziu, me autorizando, nesse passo, a fazer as perguntas, o que fiz, claro, com a cautela de consignar em ata o ocorrido.
Adiante, a propósito do ocorrido, narrou-me o seguinte. Disse que tinha estado em determinada comarca e que o(a) juiz(a) havia lhe informado que ainda não havia decidido quando passaria a cumprir a inovação na lei de regência, provocando em mim uma certa inquietação.
Esse episódio reforça os meus argumentos de que um juiz pode, sim, conduzir um processo de forma autoritária, temerária, o que não é razoável, pois, quer ele goste ou não, deve se conduzir sob a regência dos preceitos da lei, sendo-lhe defeso o desrespeito aos ritos, sobretudo e, principalmente, quando as leis são precisas e completas.
Um juiz razoável, importa reafirmar, somente diante de uma lacuna da lei ou imprecisão técnica do comando legal deve completá-la ou superá-la; nos demais casos, todavia, sem excessos, de forma razoável, na certeza de não ser dado, nem a ele e nem às partes, criar ritos ou procedimentos não previstos em lei, ou desprezar, sem razão relevante, os ritos legais, mesmo porque as normas procedimentais não devem ser um obstáculo no caminho da pronta realização do direito.

O ENCARCERADO

Menina-de-12-anos-esta-presa-em-cadeia-publica-em-MSMinha mente é um verdadeiro turbilhão, do bem, registre-se, conquanto admita que, como qualquer mortal, algumas vezes me pego tomado por pensamentos malsãos. Todavia, procuro – tento, pelo menos – não perder tempo pensando bobagens, na certeza de que, povoando a mente com coisas boas, tende-se a fazer o bem, tendemos a ser melhores.
Pode até soar estranho dizer o que parece óbvio, mas não é tão óbvio assim. Há pessoas, aparentemente bem resolvidas, cuja mente é um redemoinho de maldades, sendo que algumas delas parecem ter o juízo totalmente voltado para o mal. E embora seja lamentável admitir essa realidade, cada um de nós conhece pelo menos um ser humano que, preponderantemente, pensa e age para fazer o mal; inexplicavelmente, muitas vezes.
Pois bem. Dia desses, bem cedo ainda, quando passava a vista nos jornais do dia e nas revistas da semana, uma matéria me levou a revisitar Francesco Carnelutti, um dos expoentes da escola jurídica italiana, relendo uma obra que todo aluno do curso de direito, todo advogado, todo promotor de justiça e todo magistrado já leu ou pelo menos teve notícia: As Misérias do Processo Penal, obra na qual o autor descreve o drama da justiça penal.
Fui revisitando a obra como se fora a primeira vez, até que me deparei com um excerto que me fez fechar o livro – ou melhor, desligar o iPad, já que se trata de um e.book – e escrever essas reflexões.
Lembro que, em Vitorino Freire – minha terra amada de quem o destino me afastou fisicamente, mas que não sai da minha lembrança -, quando criança, a caminho do mercado municipal, passei, muitas vezes, em frente a um prédio que, depois, soube tratar-se da delegacia municipal.
Na passagem, intrigado com as grades que ornamentavam as janelas e as portas do prédio eu costumava questioná-las, como faria qualquer criança curiosa, vez que, àquela época, ainda não eram colocadas grades nas casas como fazemos nos dias presentes em face da violência,
Os adultos que me faziam companhia, em respeito à minha estupefação, me alertavam que aquele era um lugar destinado aos criminosos, pessoas más, as quais, de tão más que eram, tinham que ficar afastadas das pessoas de bem, pois costumavam atentar contra os semelhantes.
Passei a ter medo, pavor daquele lugar. Com esse sentimento, todas as vezes que passava próximo, virava o rosto, com receio de deparar-me com uma pessoa má, conquanto não fossem muitos os detidos à época, rarefeita que era a criminalidade.
Certo dia, entrementes, desatento, passei próximo à delegacia e deparei-me olhando, mais uma vez, para dentro do prédio. Mais grave ainda: vi uma pessoa “má” no seu interior. Foi a primeira vez que vi a tal pessoa “má” de que me falavam os adultos, de cujo rosto nunca mais me esqueci.
Assustado, quis saber dos adultos o que tinha feito aquele homem, que nunca mais saiu da minha memória, para que fosse tido como uma má pessoa e para merecer, de consequência, a prisão. Fui informado de que ele estava preso, para “pagar” pelo crime cometido, uma vez que tinha desferido várias facadas contra um semelhante. Foi a primeira notícia que tive na minha vida de que um homem fosse capaz de atentar contra a vida do semelhante, sem saber o que o destino reserva para a minha vida profissional.
Certo dia, para a minha surpresa, passando na famigerada Rua da Veada, onde eu morava – e não me pergunte a razão do nome, pois não sei -, vi o famigerado homem mau sentado na porta da casa de um vizinho, distante cerca de 100 metros da minha casa.
Voltei na mesma pisada, em desabalada carreira. Disse à minha mãe, estarrecido, que tinha visto o homem “mau” da delegacia, sentado na porta de um vizinho. Minha mãe, então, me informou que o homem mau era irmão do vizinho em cuja casa estava hospedado, e que o juiz tinha dado liberdade a ele, ou seja, a despeito do crime, ele estava em liberdade, o que, para mim, não era compreensível.
Essa foi a primeira vez que ouvi dizer que uma pessoa que matava o semelhante podia ficar em liberdade por decisão de um juiz. Depois, já como juiz, vi que o indivíduo que mata – ou lesiona, ou rouba, ou trafica drogas etc – nem sempre pode ser considerado uma pessoa má, e que a prisão, antes do julgamento, era uma excepcionalidade.
O excerto do livro de Carnelutti que me levou a voltar no tempo e me lembrar do primeiro preso com o qual me deparei, está vazado nos seguintes termos: “O homem encarcerado ou o homem trancado numa cela é a verdade do homem; o direito não faz mais que revelá-la. Cada um de nós está fechado em uma cela que não se vê. Nós não nos assemelhamos aos animais porque estamos na cela, e sim que estamos em uma cela porque nos assemelhamos aos animais. Ser homem não quer dizer não ser, e sim poder não ser animal. Esta capacidade é a capacidade de amar” (Francesco Carnelutti, in as Misérias do Processo Penal).

MARGINAIS E ESTATÍSTICAS

 

tjmaNão lembro exatamente quando, mas recordo, todavia, que tendo estado em Fortaleza num desses feriados longos, vi coincidir a minha ida com a publicação de estatísticas que indicavam os índices de criminalidade naquela capital.
Hospedado na Avenida Beira Mar, saí com a minha mulher, num final de tarde, para caminhar no calçadão, como, aliás, costumam fazer os turistas que visitam aquela cidade.
Ao sair do hotel, uma senhora, muito simpática por sinal, veio ao nosso encontro e nos aconselhou a deixar objeto de valor no hotel, advertindo-nos dos índices de violência e do perigo de andar pelas ruas, fazendo uso de bens materiais.
Despojados de bolsa, carteira porta cédulas, celulares, cordões, bijuterias e outras coisas mais, saímos pelo calçadão, apavorados, olhando para todos os lados, com a sensação de que a qualquer momento pudéssemos ser vitimas de um assalto.
Curioso e preocupado, fiquei observando o comportamento das pessoas. Vi várias comprando presentes na tradicional “Feirinha”; outras comprando sorvete, exibindo a carteira porta cédulas, celulares…, vivendo naturalmente, como se estivessem numa cidade de primeiro mundo.
Decerto é que o quadro não parecia tão feio como pintaram. Contudo, encafifado com a advertência, achei melhor procurar um lugar mais seguro. E assim, peguei um táxi e fui ao shopping, na certeza de estar, pelo menos mais confortável psicologicamente, embora nem tão seguro.
Ao entrar no táxi, iniciei conversa com o motorista, cearense de Sobral, morando em Fortaleza há vinte anos, quinze deles dedicados ao serviço de táxi. E como quem não quer nada, fui puxando assunto. Percebi logo que o “coleguinha” era do tipo falante, do tipo que tem a maior facilidade para dar informações.
Comecei falando de futebol e depois sobre política. No futebol, fomos bem. Sem revolta, só alguma frustração. Inobstante, quando passamos a falar de política… Bem, imaginem o que ele disse dos nossos representantes. Mas eu não queria falar de política, nem de futebol. Queria mesmo era saber da violência.
Travei com ele o seguinte diálogo, a propósito:
– Li as últimas estatísticas dando conta de que Fortaleza é uma das capitais mais violentas do mundo. O que o amigo acha dessa informação?
Ele, sem titubeio, respondeu:
-Tudo mentira. Essas estatísticas não condizem com a realidade. Aqui não tem violência coisa nenhuma. A violência daqui não é diferente das demais capitais.
Percebi que ele não gostou. Ficou exaltado com a minha indagação. Pensei: meu Deus, esse assunto não é do agrado do companheiro. Fiquei preocupado e silenciei.
Depois de uma pausa, ele perguntou de onde eu vinha. Respondi que era de São Luis do Maranhão. Ele, galhofeiro, com um sorriso maroto, como uma vingança, disse:
-Terra de fulano, hein?
Como eu já esperava pela provocação, reagi.
-Verdade. Mas prefiro dizer tratar-se da terra de Josué Montelo, Gonçalves Dias, Humberto de Campos, Aluisio de Azevedo, Agostinho Marques, Ferreira Gullar, Joãsinho Trinta, Lourival Serejo, Milson Coutinho, Nauro Machado, Viriato Correa, Turíbio Santos e Zeca Baleiro, dentre outros maranhenses ilustres.
Daí em diante, ele passou a falar de política, como se pretendesse fugir do tema violência. Disse o diabo de todos. Do Ceará não escapou ninguém. Disse horrores de Lula e Dilma. Parecia odiá-los.
Diante de mais essa reação, dei um refresco, falei mal de alguns políticos e elogiei outros. Fiz ver a ele que há, sim, pessoas de bem no mundo da política e que não é justo a generalização.
Dei um tempo, o shopping se aproximando, e voltei ao tema que me preocupava: violência.
-Sim, amigo, e a violência?! Fortaleza é ou não uma cidade violenta?
Ele me olhou com a cara de quem não gostou da minha insistência, e disparou:
-O senhor quer saber de uma cosia? Essa violência de que falam tem uma explicação. É que nessas estatísticas fajutas, entram as mortes de marginais. E a morte de bandido não conta, doutor.
E prosseguiu:
– O camarada está praticando um assalto ou acaba de praticar, a polícia chega, e ele afronta a policia…tem de morrer. Agora, levar isso em conta para dizer que Fortaleza é violenta, aí, meu amigo, já é demais.
Foi adiante.
– O senhor pode observar: são poucas as pessoas de bem nessa história. Só morre bandido. E bandido, repito, não conta. Bandido é feito pra morrer mesmo.
Retruquei, mas confesso que o fiz temendo a reação dele:
-Sem julgamento? Na marra mesmo? Sem direito à defesa?
Ele me deu uma olhada de esguelha, e disparou:
– Defesa pra bandido, doutor? E quem é que vai esperar julgamento, doutor? Doutor, esses caras vão presos hoje e amanhã estão de volta à rua. Tem é que morrer mesmo. E não tem nada que contar essas mortes para efeito de estatísticas. Estatística é pra gente de bem. Bandido não conta, doutor, disse, elevando a voz.
– Esses caras, doutor – prosseguiu –, ou morrem em confronto com a polícia, ou são eles mesmos se matando por causa de droga. E tudo isso é coisa de periferia. Tem é que morrer mesmo, insistiu. São (sic) um bando de marginal que só faz mal à sociedade. Tirando esses bandidos das estatísticas, concluiu, o senhor pode crer que aqui não tem violência.
Estupefato, calei. Depois, pensei: Deus meu, a que ponto nós chegamos! Em que mundo estamos vivendo?! O ser humano não vale mais nada mesmo.
Segundo o nosso “analista urbano”, pessoas da periferia, os pobres, os ditos bandidos, esses devem mesmo morrer, e não servem nem mesmo para fins de estatística; não têm direito a um julgamento justo, ademais.
O que se deve lamentar, em face dessa visão enviesada, é que não são poucos os que pensam da mesma forma. Nas instâncias de controle, o que é lamentável, testemunhamos, com clareza, essa discriminação.