O JUIZ RAZOÁVEL

 

Pode ser – e, verdadeiramente, é – puro truismo, mas convém reafirmar, à conta de introdução das reflexões que pretendo expender, que todos os homens públicos são, ou podem ser – e devem mesmo sê-lo -, criticados em face de suas ações e/ou omissões, o que é mais que razoável, tendo em vista a sua condição de servidor público, na sua mais ampla acepção.
Importa reafirmar, outrossim, que o juiz, por ser um servidor público, não pode passar ao largo do julgamento popular, sobretudo se ele é do tipo dado a decisões heterodoxas, ou em série – e não “sob medida” (Calamandrei) –, sem a devida fundamentação, uma vez que é por meio desta que presta contas de suas ações.
Não obstante, é necessário dizer que, mesmo pela via da fundamentação, pode um juiz, ainda que de boa fé, cometer excessos ou mesmo interpretações equivocadas do texto legal, sobretudo em face da polissemia, do amplo espectro semântico, enfim, de muitos termos, que possibilita ao julgador extrair dele (do texto) vários sentidos.
Diante dessa realidade e para que o magistrado se desobrigue corretamente do seu ofício, ele deve ter por norte, sempre, na formulação de uma decisão, a lógica da razoabilidade, pois, somente a partir dela e em vista dos debates, das argumentações, da dialética que é própria do contraditório, poderá tomar a melhor e mais consentânea decisão.
Diante de um texto legal, o magistrado, repito, deve formular sua interpretação à luz da razoabilidade, sem excessos interpretativos, sem excentricidades decisórias, sem formular teses absurdas, pois que, assim agindo, terá grande possibilidade de ser compreendido, ainda que, como qualquer ser humano, tenha certeza de que nunca passará à ilharga das críticas – justas ou injustas.
Nessa senda, anoto que um juiz razoável não deve, por exemplo, invocar ou se valer das normas de procedimentos como um obstáculo à realização do direito. Não pode, noutra banda, diante de casos semelhantes, decidir de forma, pois não lhe é permitido decidir à luz de suas idiossincrasias, de acordo com as suas conveniências, como se não existisse o ordenamento jurídico. Ademais, não pode ter em conta o processo, definitivamente, como um fim em si mesmo; deve, ao reverso, compreende-lo, na prática cotidiana, como uma fonte geradora de direitos, que é o que efetivamente é.
Um juiz razoável deve ter em conta que não é seu papel atuar como legislador, e que não pode, por isso mesmo, criar ritos ou procedimentos não previstos em lei, do mesmo modo que não pode proceder de modo a criar obstáculos a uma decisão em tempo razoável, pois nada mais dramático para o jurisdicionado que um juiz trapaceiro e trapalhão, que empurra o feito com a barriga, criando obstáculos para a entrega do provimento jurisdicional, deixando transparecer que não é imparcial.
Para quem imagina que não exista juiz que crie ou use procedimentos não previstos em lei, criando obstáculos ou emperrando o andamento do feito, por maldade ou por ignorância, vou contar uma breve, mas elucidativa, passagem.
Pois bem. Lembro que, certa feita, tendo sido introduzido no direito processual penal um dispositivo inovador que determinava que, doravante, as partes deveriam iniciar fazendo perguntas, diretamente, às testemunhas (artigo 212 do CPP), ficando por conta do juiz apenas os pontos não esclarecidos (Parágrafo único do artigo 212 do CPP) houve um(a) colega que, a despeito de se tratar de uma norma de regência, decidiu que só faria a sua aplicação quando a julgasse conveniente.
Certo dia, numa audiência presidida por mim, um advogado, ao lhe ser franqueada a palavra para as perguntas a uma testemunha dita de defesa, pego de surpresa, indagou-me:
-O senhor já está cumprindo o novo regramento procedimental?
-Sim, respondi. A lei instrumental vige de imediato, conclui.
-Estou surpreso, disse-me. Sequer me preparei para o ato, aduziu, me autorizando, nesse passo, a fazer as perguntas, o que fiz, claro, com a cautela de consignar em ata o ocorrido.
Adiante, a propósito do ocorrido, narrou-me o seguinte. Disse que tinha estado em determinada comarca e que o(a) juiz(a) havia lhe informado que ainda não havia decidido quando passaria a cumprir a inovação na lei de regência, provocando em mim uma certa inquietação.
Esse episódio reforça os meus argumentos de que um juiz pode, sim, conduzir um processo de forma autoritária, temerária, o que não é razoável, pois, quer ele goste ou não, deve se conduzir sob a regência dos preceitos da lei, sendo-lhe defeso o desrespeito aos ritos, sobretudo e, principalmente, quando as leis são precisas e completas.
Um juiz razoável, importa reafirmar, somente diante de uma lacuna da lei ou imprecisão técnica do comando legal deve completá-la ou superá-la; nos demais casos, todavia, sem excessos, de forma razoável, na certeza de não ser dado, nem a ele e nem às partes, criar ritos ou procedimentos não previstos em lei, ou desprezar, sem razão relevante, os ritos legais, mesmo porque as normas procedimentais não devem ser um obstáculo no caminho da pronta realização do direito.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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