QUEM CALA CONSENTE?

ThemisCSei que é difícil separar o homem do magistrado. A maior prova disso é que a minha história, a minha formação moral, os valores que incorporei à minha vida, fruto da minha criação e do meio em que vivi e vivo, sempre tiveram um enorme peso nas minhas posições, quer como juiz, quer como cidadão, o que me leva a acreditar que assim o será sempre.
Por isso, a diferença que faz, para a atividade cognoscível, a relação do intérprete com o objeto do conhecimento, donde exsurge, poderosamente, um poder invisível que controla o seu psiquismo, ou seja, o seu inconsciente (Luis Roberto Barroso).
A verdade é que é muito difícil separar o que penso como cidadão do que penso enquanto magistrado, conquanto eu tenha consciência de que nem sempre posso externar tudo o que penso como cidadão em face do óbice natural que decorre da minha condição de magistrado, a qual me impõe limites, muito embora eu reconheça que tenho compartido muito da minha visão de mundo com muitos jurisdicionados que, de rigor, sabem o que penso sobre os mais variados temas, em face do que escrevo, Se me imponho limites, são apenas os que decorrem dos cânones éticos que sou compelido a respeitar.
Assim sendo, o que digo, o que penso, o que afirmo, tudo, enfim, que transmito nos meus artigos, são quase sempre, senão sempre, a junção dos meus pensamentos de magistrado e homem, aqui consideradas todas as minhas circunstâncias, todas as minhas pré-compreensões, todas as forças materiais que concorrem para a formação das minhas convicções.
Faço essa linha de introdução só para dizer que eu, como homem – e, claro, como magistrado – sempre encarei com certa desconfiança o silêncio do acusado, sobretudo perante uma autoridade judicial, conquanto saiba ser um direito seu e que, ademais, essa postura, de lege lata, não deve ser interpretada em desfavor de sua defesa (nemo tenetur se detegere).
Todavia, sinceramente, reluto em aceitar, sem estupefação, que uma pessoa acusada injustamente prefira o silêncio, ao invés de se defender com veemência de uma injusta acusação. Nesse sentido, fico sempre pensando que se um dia me vir acusado injustamente da prática de um ilícito, administrativo ou penal, vou gritar aos quatro cantos do mundo, a plenos pulmões, que sou inocente, por entender que o silêncio é incompatível com a inocência de alguém.
Diante de uma injusta acusação, eu não vou calar, definitivamente. Vou, até se necessário, provocar situações que me permitam gritar a minha inocência, ainda que o faça fora do ambiente próprio.
Por pensar assim, é que acho estranho – apenas estranho, sem antecipar, claro, nenhum juízo de valor – o indiciado ou acusado, que, diante de uma acusação que diz ser injusta, ao invés de gritar a sua inocência, prefira o silêncio. Essa, pelo menos, é sempre a primeira impressão que fica, pois é difícil crer que alguém, tendo um álibi que lhe favoreça, por exemplo, prefira não falar, o que, para mim, é uma estranha estratégia de defesa.
É cediço que não basta o silêncio do acusado para que o magistrado conclua, definitivamente, e a priori, pela sua responsabilização penal. Não é sobre isso que pretendo refletir, pois, afinal, a sua responsabilidade penal, quer opte pelo silêncio, quer decida falar, poderá não ser definida apenas em face do silêncio ou em razão do que eventualmente alegue em sua defesa, se existirem outras provas que conspirem contra o silêncio ou contra os argumentos apresentados a guisa de defesa.
O que definirá a sua responsabilização pelo crime são as provas que vieram a ser produzidas, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, corolários do devido processo legal. Todavia, nada impede que o magistrado, como cidadão que é, veja, em principio, com certa reserva, o silêncio daquele que, podendo gritar a sua inocência, opte por calar-se, uma vez que, nas nossas relações informais, ainda viceja a velha máxima segundo a qual quem cala consente.

O JUIZ RAZOÁVEL

 

Pode ser – e, verdadeiramente, é – puro truismo, mas convém reafirmar, à conta de introdução das reflexões que pretendo expender, que todos os homens públicos são, ou podem ser – e devem mesmo sê-lo -, criticados em face de suas ações e/ou omissões, o que é mais que razoável, tendo em vista a sua condição de servidor público, na sua mais ampla acepção.
Importa reafirmar, outrossim, que o juiz, por ser um servidor público, não pode passar ao largo do julgamento popular, sobretudo se ele é do tipo dado a decisões heterodoxas, ou em série – e não “sob medida” (Calamandrei) –, sem a devida fundamentação, uma vez que é por meio desta que presta contas de suas ações.
Não obstante, é necessário dizer que, mesmo pela via da fundamentação, pode um juiz, ainda que de boa fé, cometer excessos ou mesmo interpretações equivocadas do texto legal, sobretudo em face da polissemia, do amplo espectro semântico, enfim, de muitos termos, que possibilita ao julgador extrair dele (do texto) vários sentidos.
Diante dessa realidade e para que o magistrado se desobrigue corretamente do seu ofício, ele deve ter por norte, sempre, na formulação de uma decisão, a lógica da razoabilidade, pois, somente a partir dela e em vista dos debates, das argumentações, da dialética que é própria do contraditório, poderá tomar a melhor e mais consentânea decisão.
Diante de um texto legal, o magistrado, repito, deve formular sua interpretação à luz da razoabilidade, sem excessos interpretativos, sem excentricidades decisórias, sem formular teses absurdas, pois que, assim agindo, terá grande possibilidade de ser compreendido, ainda que, como qualquer ser humano, tenha certeza de que nunca passará à ilharga das críticas – justas ou injustas.
Nessa senda, anoto que um juiz razoável não deve, por exemplo, invocar ou se valer das normas de procedimentos como um obstáculo à realização do direito. Não pode, noutra banda, diante de casos semelhantes, decidir de forma, pois não lhe é permitido decidir à luz de suas idiossincrasias, de acordo com as suas conveniências, como se não existisse o ordenamento jurídico. Ademais, não pode ter em conta o processo, definitivamente, como um fim em si mesmo; deve, ao reverso, compreende-lo, na prática cotidiana, como uma fonte geradora de direitos, que é o que efetivamente é.
Um juiz razoável deve ter em conta que não é seu papel atuar como legislador, e que não pode, por isso mesmo, criar ritos ou procedimentos não previstos em lei, do mesmo modo que não pode proceder de modo a criar obstáculos a uma decisão em tempo razoável, pois nada mais dramático para o jurisdicionado que um juiz trapaceiro e trapalhão, que empurra o feito com a barriga, criando obstáculos para a entrega do provimento jurisdicional, deixando transparecer que não é imparcial.
Para quem imagina que não exista juiz que crie ou use procedimentos não previstos em lei, criando obstáculos ou emperrando o andamento do feito, por maldade ou por ignorância, vou contar uma breve, mas elucidativa, passagem.
Pois bem. Lembro que, certa feita, tendo sido introduzido no direito processual penal um dispositivo inovador que determinava que, doravante, as partes deveriam iniciar fazendo perguntas, diretamente, às testemunhas (artigo 212 do CPP), ficando por conta do juiz apenas os pontos não esclarecidos (Parágrafo único do artigo 212 do CPP) houve um(a) colega que, a despeito de se tratar de uma norma de regência, decidiu que só faria a sua aplicação quando a julgasse conveniente.
Certo dia, numa audiência presidida por mim, um advogado, ao lhe ser franqueada a palavra para as perguntas a uma testemunha dita de defesa, pego de surpresa, indagou-me:
-O senhor já está cumprindo o novo regramento procedimental?
-Sim, respondi. A lei instrumental vige de imediato, conclui.
-Estou surpreso, disse-me. Sequer me preparei para o ato, aduziu, me autorizando, nesse passo, a fazer as perguntas, o que fiz, claro, com a cautela de consignar em ata o ocorrido.
Adiante, a propósito do ocorrido, narrou-me o seguinte. Disse que tinha estado em determinada comarca e que o(a) juiz(a) havia lhe informado que ainda não havia decidido quando passaria a cumprir a inovação na lei de regência, provocando em mim uma certa inquietação.
Esse episódio reforça os meus argumentos de que um juiz pode, sim, conduzir um processo de forma autoritária, temerária, o que não é razoável, pois, quer ele goste ou não, deve se conduzir sob a regência dos preceitos da lei, sendo-lhe defeso o desrespeito aos ritos, sobretudo e, principalmente, quando as leis são precisas e completas.
Um juiz razoável, importa reafirmar, somente diante de uma lacuna da lei ou imprecisão técnica do comando legal deve completá-la ou superá-la; nos demais casos, todavia, sem excessos, de forma razoável, na certeza de não ser dado, nem a ele e nem às partes, criar ritos ou procedimentos não previstos em lei, ou desprezar, sem razão relevante, os ritos legais, mesmo porque as normas procedimentais não devem ser um obstáculo no caminho da pronta realização do direito.

O ENCARCERADO

Menina-de-12-anos-esta-presa-em-cadeia-publica-em-MSMinha mente é um verdadeiro turbilhão, do bem, registre-se, conquanto admita que, como qualquer mortal, algumas vezes me pego tomado por pensamentos malsãos. Todavia, procuro – tento, pelo menos – não perder tempo pensando bobagens, na certeza de que, povoando a mente com coisas boas, tende-se a fazer o bem, tendemos a ser melhores.
Pode até soar estranho dizer o que parece óbvio, mas não é tão óbvio assim. Há pessoas, aparentemente bem resolvidas, cuja mente é um redemoinho de maldades, sendo que algumas delas parecem ter o juízo totalmente voltado para o mal. E embora seja lamentável admitir essa realidade, cada um de nós conhece pelo menos um ser humano que, preponderantemente, pensa e age para fazer o mal; inexplicavelmente, muitas vezes.
Pois bem. Dia desses, bem cedo ainda, quando passava a vista nos jornais do dia e nas revistas da semana, uma matéria me levou a revisitar Francesco Carnelutti, um dos expoentes da escola jurídica italiana, relendo uma obra que todo aluno do curso de direito, todo advogado, todo promotor de justiça e todo magistrado já leu ou pelo menos teve notícia: As Misérias do Processo Penal, obra na qual o autor descreve o drama da justiça penal.
Fui revisitando a obra como se fora a primeira vez, até que me deparei com um excerto que me fez fechar o livro – ou melhor, desligar o iPad, já que se trata de um e.book – e escrever essas reflexões.
Lembro que, em Vitorino Freire – minha terra amada de quem o destino me afastou fisicamente, mas que não sai da minha lembrança -, quando criança, a caminho do mercado municipal, passei, muitas vezes, em frente a um prédio que, depois, soube tratar-se da delegacia municipal.
Na passagem, intrigado com as grades que ornamentavam as janelas e as portas do prédio eu costumava questioná-las, como faria qualquer criança curiosa, vez que, àquela época, ainda não eram colocadas grades nas casas como fazemos nos dias presentes em face da violência,
Os adultos que me faziam companhia, em respeito à minha estupefação, me alertavam que aquele era um lugar destinado aos criminosos, pessoas más, as quais, de tão más que eram, tinham que ficar afastadas das pessoas de bem, pois costumavam atentar contra os semelhantes.
Passei a ter medo, pavor daquele lugar. Com esse sentimento, todas as vezes que passava próximo, virava o rosto, com receio de deparar-me com uma pessoa má, conquanto não fossem muitos os detidos à época, rarefeita que era a criminalidade.
Certo dia, entrementes, desatento, passei próximo à delegacia e deparei-me olhando, mais uma vez, para dentro do prédio. Mais grave ainda: vi uma pessoa “má” no seu interior. Foi a primeira vez que vi a tal pessoa “má” de que me falavam os adultos, de cujo rosto nunca mais me esqueci.
Assustado, quis saber dos adultos o que tinha feito aquele homem, que nunca mais saiu da minha memória, para que fosse tido como uma má pessoa e para merecer, de consequência, a prisão. Fui informado de que ele estava preso, para “pagar” pelo crime cometido, uma vez que tinha desferido várias facadas contra um semelhante. Foi a primeira notícia que tive na minha vida de que um homem fosse capaz de atentar contra a vida do semelhante, sem saber o que o destino reserva para a minha vida profissional.
Certo dia, para a minha surpresa, passando na famigerada Rua da Veada, onde eu morava – e não me pergunte a razão do nome, pois não sei -, vi o famigerado homem mau sentado na porta da casa de um vizinho, distante cerca de 100 metros da minha casa.
Voltei na mesma pisada, em desabalada carreira. Disse à minha mãe, estarrecido, que tinha visto o homem “mau” da delegacia, sentado na porta de um vizinho. Minha mãe, então, me informou que o homem mau era irmão do vizinho em cuja casa estava hospedado, e que o juiz tinha dado liberdade a ele, ou seja, a despeito do crime, ele estava em liberdade, o que, para mim, não era compreensível.
Essa foi a primeira vez que ouvi dizer que uma pessoa que matava o semelhante podia ficar em liberdade por decisão de um juiz. Depois, já como juiz, vi que o indivíduo que mata – ou lesiona, ou rouba, ou trafica drogas etc – nem sempre pode ser considerado uma pessoa má, e que a prisão, antes do julgamento, era uma excepcionalidade.
O excerto do livro de Carnelutti que me levou a voltar no tempo e me lembrar do primeiro preso com o qual me deparei, está vazado nos seguintes termos: “O homem encarcerado ou o homem trancado numa cela é a verdade do homem; o direito não faz mais que revelá-la. Cada um de nós está fechado em uma cela que não se vê. Nós não nos assemelhamos aos animais porque estamos na cela, e sim que estamos em uma cela porque nos assemelhamos aos animais. Ser homem não quer dizer não ser, e sim poder não ser animal. Esta capacidade é a capacidade de amar” (Francesco Carnelutti, in as Misérias do Processo Penal).

MARGINAIS E ESTATÍSTICAS

 

tjmaNão lembro exatamente quando, mas recordo, todavia, que tendo estado em Fortaleza num desses feriados longos, vi coincidir a minha ida com a publicação de estatísticas que indicavam os índices de criminalidade naquela capital.
Hospedado na Avenida Beira Mar, saí com a minha mulher, num final de tarde, para caminhar no calçadão, como, aliás, costumam fazer os turistas que visitam aquela cidade.
Ao sair do hotel, uma senhora, muito simpática por sinal, veio ao nosso encontro e nos aconselhou a deixar objeto de valor no hotel, advertindo-nos dos índices de violência e do perigo de andar pelas ruas, fazendo uso de bens materiais.
Despojados de bolsa, carteira porta cédulas, celulares, cordões, bijuterias e outras coisas mais, saímos pelo calçadão, apavorados, olhando para todos os lados, com a sensação de que a qualquer momento pudéssemos ser vitimas de um assalto.
Curioso e preocupado, fiquei observando o comportamento das pessoas. Vi várias comprando presentes na tradicional “Feirinha”; outras comprando sorvete, exibindo a carteira porta cédulas, celulares…, vivendo naturalmente, como se estivessem numa cidade de primeiro mundo.
Decerto é que o quadro não parecia tão feio como pintaram. Contudo, encafifado com a advertência, achei melhor procurar um lugar mais seguro. E assim, peguei um táxi e fui ao shopping, na certeza de estar, pelo menos mais confortável psicologicamente, embora nem tão seguro.
Ao entrar no táxi, iniciei conversa com o motorista, cearense de Sobral, morando em Fortaleza há vinte anos, quinze deles dedicados ao serviço de táxi. E como quem não quer nada, fui puxando assunto. Percebi logo que o “coleguinha” era do tipo falante, do tipo que tem a maior facilidade para dar informações.
Comecei falando de futebol e depois sobre política. No futebol, fomos bem. Sem revolta, só alguma frustração. Inobstante, quando passamos a falar de política… Bem, imaginem o que ele disse dos nossos representantes. Mas eu não queria falar de política, nem de futebol. Queria mesmo era saber da violência.
Travei com ele o seguinte diálogo, a propósito:
– Li as últimas estatísticas dando conta de que Fortaleza é uma das capitais mais violentas do mundo. O que o amigo acha dessa informação?
Ele, sem titubeio, respondeu:
-Tudo mentira. Essas estatísticas não condizem com a realidade. Aqui não tem violência coisa nenhuma. A violência daqui não é diferente das demais capitais.
Percebi que ele não gostou. Ficou exaltado com a minha indagação. Pensei: meu Deus, esse assunto não é do agrado do companheiro. Fiquei preocupado e silenciei.
Depois de uma pausa, ele perguntou de onde eu vinha. Respondi que era de São Luis do Maranhão. Ele, galhofeiro, com um sorriso maroto, como uma vingança, disse:
-Terra de fulano, hein?
Como eu já esperava pela provocação, reagi.
-Verdade. Mas prefiro dizer tratar-se da terra de Josué Montelo, Gonçalves Dias, Humberto de Campos, Aluisio de Azevedo, Agostinho Marques, Ferreira Gullar, Joãsinho Trinta, Lourival Serejo, Milson Coutinho, Nauro Machado, Viriato Correa, Turíbio Santos e Zeca Baleiro, dentre outros maranhenses ilustres.
Daí em diante, ele passou a falar de política, como se pretendesse fugir do tema violência. Disse o diabo de todos. Do Ceará não escapou ninguém. Disse horrores de Lula e Dilma. Parecia odiá-los.
Diante de mais essa reação, dei um refresco, falei mal de alguns políticos e elogiei outros. Fiz ver a ele que há, sim, pessoas de bem no mundo da política e que não é justo a generalização.
Dei um tempo, o shopping se aproximando, e voltei ao tema que me preocupava: violência.
-Sim, amigo, e a violência?! Fortaleza é ou não uma cidade violenta?
Ele me olhou com a cara de quem não gostou da minha insistência, e disparou:
-O senhor quer saber de uma cosia? Essa violência de que falam tem uma explicação. É que nessas estatísticas fajutas, entram as mortes de marginais. E a morte de bandido não conta, doutor.
E prosseguiu:
– O camarada está praticando um assalto ou acaba de praticar, a polícia chega, e ele afronta a policia…tem de morrer. Agora, levar isso em conta para dizer que Fortaleza é violenta, aí, meu amigo, já é demais.
Foi adiante.
– O senhor pode observar: são poucas as pessoas de bem nessa história. Só morre bandido. E bandido, repito, não conta. Bandido é feito pra morrer mesmo.
Retruquei, mas confesso que o fiz temendo a reação dele:
-Sem julgamento? Na marra mesmo? Sem direito à defesa?
Ele me deu uma olhada de esguelha, e disparou:
– Defesa pra bandido, doutor? E quem é que vai esperar julgamento, doutor? Doutor, esses caras vão presos hoje e amanhã estão de volta à rua. Tem é que morrer mesmo. E não tem nada que contar essas mortes para efeito de estatísticas. Estatística é pra gente de bem. Bandido não conta, doutor, disse, elevando a voz.
– Esses caras, doutor – prosseguiu –, ou morrem em confronto com a polícia, ou são eles mesmos se matando por causa de droga. E tudo isso é coisa de periferia. Tem é que morrer mesmo, insistiu. São (sic) um bando de marginal que só faz mal à sociedade. Tirando esses bandidos das estatísticas, concluiu, o senhor pode crer que aqui não tem violência.
Estupefato, calei. Depois, pensei: Deus meu, a que ponto nós chegamos! Em que mundo estamos vivendo?! O ser humano não vale mais nada mesmo.
Segundo o nosso “analista urbano”, pessoas da periferia, os pobres, os ditos bandidos, esses devem mesmo morrer, e não servem nem mesmo para fins de estatística; não têm direito a um julgamento justo, ademais.
O que se deve lamentar, em face dessa visão enviesada, é que não são poucos os que pensam da mesma forma. Nas instâncias de controle, o que é lamentável, testemunhamos, com clareza, essa discriminação.

SOLIPSISMO JUDICIAL

 

Ferreira Gular, na Crônica intitulada “Dos três poderes sobrou um”, publicada na Folha de S. Paulo, dia 14 de fevereiro, sentencia: “Não há duvida alguma: o Executivo e o Legislativo perderam a autoridade que a Constituição lhes outorgou. Dos três poderes, o único que merece a confiança do povo – porque responde às suas expectativas e ante a sobrevivência do Estado brasileiro – é o Judiciário, que, aliás, assusta aos outros dois”.
Essa é a visão, portanto, do grande poeta maranhense sobre os três Poderes da República, que, de resto, tem sido a percepção da maioria dos brasileiros. E é, afinal, o mínimo que se deseja nos dias atuais, com as instituições em estado de quase putrefação.
“A exacerbação das individualidades, em detrimento da colegialidade, além de ampliar a instabilidade política, pode colocar em risco a própria autoridade da corte. E tudo o que não precisamos neste momento é de um tribunal vulnerável”. Oscar Vilhena, Colunista Folha de S. Paulo, edição de 06 de abril de 2016.
Essa é a síntese do artigo de Oscar Vilhena, a propósito da liminar do Ministro Marco Aurélio, determinando o processamento do pedido de impeachment do vice-presidente da República Michel Temer, pela Câmara dos Deputados, decisão muito combatida pela comunidade jurídica nacional. Mas também é tudo que não se deseja do Poder Judiciário, em sua instância colegiada, pois as condutas individualistas, solipsistas, egoístas e egocêntricas não contribuem para o fortalecimento da instituição; antes, a depreciam, a fragilizam, causando-lhe indesejável instabilidade.
Ferrreira Gular sintetiza tudo o que os magistrados de bem desejam para o Poder Judiciário: que ele seja mesmo respeitado pelos jurisdicionados, sobretudo nos dias atuais, donde exsurge, a olhos vistos, a descrença, quase generalizada, dos Poderes Executivo e Legislativo; Já Oscar Vilhena, de seu lado, resume tudo o que devemos abominar num colegiado, a propósito das ações individualistas, personalíssimas dos que, num sodalício, numa casa (que deveria ser) marcada pela pluralidade, parecem(?) não ter a exata noção da importância das decisões plurais.
As decisões marcadamente individualistas, com o consequente abespinhamento do sistema colegiado, como ocorre, por exemplo, com as decisões monocráticas, devem ser evitadas, tanto quanto possível, porque, além de expressar um labor solitário, deixam má impressão junto aos jurisdicionados e à própria comunidade, sobretudo se sem as cautelas legais.
Esse individualismo egoísta e malsã, em boa hora restringido no novo CPC, mostra a sua face mais aguda e mais danosa quando se cuidam de decisões liminares, inaudita altere partes, no segundo grau, gestadas durante o plantão, sem que, muitas vezes, se observe, como tem ocorrido, o pressuposto da urgência, com flagrante menoscabo, repito, do sistema colegiado.
A gravidade se avulta ainda mais grave e preocupante quando se constata que, em alguns casos, o recurso – ou ação, nas hipóteses de competência originária – já está em curso, inclusive com relator definido, a quem cabe, ex vi legis, examinar eventuais pleitos, a roborar, a fortiori, a inocorrência da urgência que pudesse justificar a ação de outro julgador que não o magistrado para quem o feito foi antes distribuído.
Não é possível a uma nação se conduzir, crescer, se fortalecer, desempenhar a contento o seu papel, corresponder às expectativas da população, nos campos econômico, político e social, se apenas um dos três Poderes tiver credibilidade. A fortiori, será muito mais difícil se o Poder que ainda detém alguma credibilidade vier a sucumbir em face da ação desavisada e nefasta de uns poucos.
Contudo, o que temos testemunhado, nos dias presentes, a fragilizar as nossas esperanças, é o esfacelamento dos Poderes Executivo e Legislativo: aquele em menor escala; este de forma mais acerba e preocupante.
Entrementes, não nos iludamos: o Poder Judiciário, persistindo a ação nefasta dos que atuam sem nenhuma preocupação com a sua credibilidade, mais cedo do que se imagina fará companhia aos demais poderes, cujas consequências é impossível avaliar.
Nesse cenário, é de bom alvitre que o Judiciário, por seus membros mais descuidados, se aperceba de que, a cada decisão heterodoxa, seja uma liminar, seja uma definitiva, ele se fragiliza ainda mais; e a sua fragilização é o que de pior pode ocorrer para uma nação, cujos poderes Executivo e Legislativo gozam de nenhuma, ou de diminuta credibilidade.

Eu, viciado

 

O pintor francês Jean-Baptiste Debret chegou ao Rio de Janeiro em 1816, a convite de D. João VI, para fazer registros oficiais da vida na então capital do reino português. Contudo, foi muito além e documentou, ademais, maus-tratos e humilhações aos escravos. Graças a Debret, portanto, foi registrado o triste cotidiano dos escravos, uma vez que são muitas as pinturas de Debret dando conta das idas e vindas do dia a dia escravo no Rio de Janeiro do século XIX.
As informações dão conta de que, graças à ação de Debret, tivemos notícias do que ocorria no cotidiano da então capital do império. Todavia, constam das mesmas informações que, pelo fato de Debret ser um só, muitas coisas importantes deixaram de ser registradas por ele.
Fico pensando, cá com os meus botões, o quanto saberíamos da história desse período, se Debret tivesse às mãos essa “praga” chamada smartphone, que flagra e registra nos dias presentes as situações mais inusitadas, como se deu recentemente com um senador da república, um boquirroto inconsequente, que se viu preso por conta de uma gravação feita num aparelho celular, quando exercia, imprudentemente, a prática da bravata, para dizer o mínimo.
A verdade é que, nos dias de hoje, em face do smarthphone e em vista da instantaneidade da internet, quase ninguém faz mais nada escondido, sendo recomendável, no mínimo, que redobre os cuidados com a bisbilhotice alheia, pois, afinal, ninguém nunca sabe quando o interlocutor tem um diabinho igual a esse ligado, captando uma conversa. E uma vez ocorrido o flagra, e este caindo nas redes, pronto: a desdita é para sempre, sem controle, sem peias e sem limites.
O aparelho celular existe hoje para o bem e para o mal. Às vezes, fico me perguntando como se vivia antes sem esse ele, que a muitos vicia, que a outros tantos entorpece; que tira o sono, que grava, que filma, que publica, que modifica o mundo exterior.
Não sou viciado (?) em celular e nem em internet. Mas confesso – olha que bela contradição! – que não sei como viveria sem saber que tenho à minha disposição um tablet e um aparelho celular, sobretudo para o envio de mensagens e para as minhas leituras diárias, já que praticamente aboli os livros e os jornais físicos.
Um episódio interessante, a propósito, que bem retrata a importância do celular nos dias atuais, ainda que o seja em face de um episódio incomum. Tenho um compadre e amigo que, quando ia ao shopping, antes da era do celular, curiosa e inusitadamente, localizava os filhos pequenos e a esposa com um apito, pouco se importando com as interpretações que pudessem ser dadas a essa modalidade curiosa de busca. Hoje, com o aparelhinho, tudo mudou. Um toque, uma mensagem, e pronto!
Outro episódio tão inusitado quanto. Um irmão meu de sangue, não usava apito, mas se comunicava com um estridente assovio. Era assoviar, no shopping ou na Rua Grande, e seus filhos apareciam em desabalada carreira.
Hoje, essas práticas estão obsoletas. Um clic no celular e pronto:
-Onde estás?
-Estou próximo do supermercado.
-Estou indo para aí.
Simples assim.
Mas o mesmo aparelhinho, cuja utilidade é indiscutível, é, muitas vezes, fonte de irritação. Fico agastado, sim, quando alguém esbarra em mim por conta da desatenção em face do aparelho celular. Fico estupefato quando vejo, numa academia, as pessoas correndo na esteira ou se exercitando no elíptico, fazendo a leitura concomitante das mensagens recebidas no viciante e, quase sempre, irritante aparelho.
E quando deixam o personal esperando enquanto respondem às mensagens? O personal olha para um lado, olha para o outro, coça a cabeça, dá uma olhada nos presentes, curte a morena que passa nas proximidades, cumprimenta um colega de academia, e nada: o aparelho hipnotizou a aluna. Pronto! O programa de treinos para aquele dia já está prejudicado.
Fico olhando, perscrutando, mas fazer o quê?
E quando os mesmos alunos param na frente do bebedouro ou na porta de entrada ou nas escadas, atrapalhando as pessoas, concentrados e perdidos em face da magia proporcionada pelo famigerado e irritante aparelho?
Você já viu coisa mais estranha que um grupo sentado numa mesa de bar ou de restaurante, todos conversando com quem não está lá, via whatsapp, como se o amigo – ou amigos – da mesa não existissem?
E quando a gente se depara, como ocorreu comigo, recentemente, no São Luis Shopping, com alguém andando com o celular nas mãos, esbarrando nas pessoas, lendo as mensagens e rindo sozinho?
A minha dúvida é se Debret tivesse vivido essa mesma experiência faria um bom ou mau uso do celular. Confesso que não tenho dúvidas. O aparelhinho vicia. Debret seria, nos dias atuais, apenas mais um viciado, mas certamente saberia fazer um melhor uso do instrumento, como fez com o pincel, dando a sua contribuição à construção da historia do nosso país.
Mas, convenhamos, apesar das muitas inconveniências proporcionadas por uso abusivo, a verdade é que nem eu saberia como viver nos dias presentes sem os meus dois aparelhos de celular e meus dois tablets.
Sim, tenho dois aparelhos de cada. É que tenho receio de que acabe a bateria de um, e eu fique sem comunicação, apesar de andar com um carregador de bateria para não correr nenhum risco.
Como assim? Eu, viciado?
Sei lá!

O TRIBUNAL MORAL DE CADA UM

batendo-o-marteloDando sequência às nossas realizações na direção do Núcleo Permanente de Conciliação, estivemos recentemente em Imperatriz para instalar o I Balcão de Renegociação de Dívida da Região Tocantina.
Instalados os trabalhos, apresentou-se um devedor ávido por renegociar a sua dívida, já que se sentia incomodado por ainda não tê-lo feito em face de suas dificuldades financeiras. Detalhe relevante: a dívida do cidadão era no importe – pasmem! – de R$ 26,17 (vinte e seis reais e dezessete centavos).
Pois bem. Sentados, civilizadamente, credor e devedor, numa mesa de (re)negociação – o que só foi possível em face da implementação do Balcão de Renegociação, projeto do Núcleo de Conciliação do Tribunal de Justiça -, chegaram a um acordo: o credor aceitou que o débito fosse quitado por cerca de R$ 6,00(seis reais), que era o que podia pagar o devedor.
Conquanto seja exemplar esse fato, não foi o valor da dívida nem o valor da quitação, que motivaram essas reflexões. A motivação decorre da reafirmação, definitiva, de que cada um de nós tem um tribunal moral interior que nos impulsiona para o bem e para o mal: o tribunal da consciência que, tenho certeza, impulsionou o devedor a buscar a quitação da dívida que o incomodava.
Eu tenho, tu tens, todos nós temos, sim, um tribunal moral ou de consciência, que guia, que conduz, que determina as nossas as ações, a nossa maneira de ser, a visão que temos do mundo e, de consequência, a maneira como devemos lidar com os nossos problemas.
Posso dizer, nesse sentido, que o que não é moralmente aceito por mim pode ser admitido como normal para o semelhante, de acordo, claro, com o seu tribunal moral. É por isso que há homens públicos honestos e desonestos, por exemplo.
Tudo está a depender, portanto, do tribunal moral ou de consciência de cada, ou seja, da forma como fomos criados, de como fomos preparados para as vicissitudes da vida, de como lidamos com os nossos problemas, que são resultantes, não tenho dúvidas, dos valores que incorporamos à nossa personalidade.
Nos dias presentes, é a frouxidão dos tribunais de consciência que nos leva a esse quadro de descalabro moral, de licenciosidade, de benevolência de muitos para com os desvios de condutas, convindo anotar, ainda que para desalento de muitos, que até mesmo nas instâncias de controle, há os que se predispõem a dar guarida ao malfeitor, sempre de acordo com o seu tribunal moral interior.
Muitos homens públicos estão aí a nos envergonhar, os quais, como eu já disse em outro artigo, nos fazem perder a esperança, não nos deixam sonhar. Por isso, estamos desalentados, contristados, acabrunhados, macambúzios, desesperançados, vendo, quase em estado de estupor, muitas vezes inertes e descrentes, o esfacelamento das instituições, decorrente dessa grave, gravíssima degradação moral pela qual passamos.
O cidadão de bem, revoltado, reage, vai às ruas, grita, esperneia, e depois percebe que tudo voltou a ser como antes. Desalentados, mas crédulos, todos nós clamamos aos céus, na quase certeza de que só nos resta mesmo aguardar por uma providência divina.
Diante desse quadro é que aparecem os heróis nacionais, os salvadores da pátria. Heróis que, no geral, apenas cumprem as suas obrigações. Contudo, em virtude de fazê-lo com destemor e sem distinção, se destacam como super-homens, super-heróis nos quais terminamos por depositar as nossas esperanças.
Devo admitir que, apesar de já ter visto muito, nunca havia testemunhado antes tamanha licenciosidade, tamanha falta de vergonha, tamanha falta de compostura, de pudor dos nossos homens públicos, os quais, triste ter que admitir, só visam mesmo à defesa dos seus próprios interesses.
Lê-se, ouve-se dizer que é assim mesmo, que sempre foi assim, desde que o país foi descoberto. É possível que sim. Isso, no entanto, não arrefece a minha, a nossa indignação, mesmo porque – para mim, pelo menos – esse é um argumento fajuto de quem deseja que tudo permaneça como está.
A verdade é que, aos olhos dos desinformados, os homens públicos do Brasil parecem ser rigorosamente iguais, uma vez que poucos são os que se destacam por uma postura compatível com o que se espera de um homem que esteja a serviço do interesse comum.
Por isso, reafirmo, parecemos todos iguais aos olhos do cidadão que, descrente de tudo, nos nivela por baixo; por isso, a sua intolerância em relação aos homens públicos.
É nesse ambiente de desesperança e de grave degradação moral que aparecem os farsantes, os que aproveitam as nossas fragilidades, para nos vender falsas promessas, nos fazendo acreditar que, doravante, tudo será diferente, para, depois, estarrecidos, constatarmos que nada mudou.
Num país em que as instâncias de controle são quase sempre lenientes e frouxas, o que nos resta mesmo é esperar que o tribunal moral de cada um cumpra o seu papel, pois, infelizmente, as ações tendentes a obstar as condutas daninhas dos homens públicos do nosso país ainda parecem ser uma exceção.

VIVENDO EM OUTRO MUNDO

 

 

Celso Antonio Bandeira de Melo, a propósito das manifestações a favor do impeachment, disse o seguinte: “O mais curioso é que são pessoas da alta classe média. Elas não trabalham, pois podem se dar ao luxo de fazer arruaça. Já os que trabalham não podem . Pode até parecer que eles são maioria, mas não são. É uma minoria de elite lutando contra os pobres”.

Em que mundo esse senhor vive?