É claro que as manifestações que estão ocorrendo no Brasil não têm a mesma dimensão das manifestações em razão das quais a Bastilha caiu na França, mesmo porque a conjuntura em que se deu aquela é diametralmente oposta à conjuntura atual. Seria uma insanidade, pois, a comparação pura e simples desses dois momentos históricos, sem atentar para as suas particularidades e consequências para o conjunto da sociedade. Mas se nos detivermos a alguns detalhes que a história nos legou, não é difícil perceber algumas semelhanças entre as manifestações que ocorrem no Brasil e as que culminaram com o fim do absolutismo na França.
É só olhar diante dos olhos para enxergar as semelhanças. Por exemplo, à época da revolução, no século XVIII, a França tinha 25 milhões de habitantes. Dessa população, 1,5% eram nobres, representados por cerca de 350 mil indivíduos. O clero tinha 120 mil membros, dos quais 110 mil pertenciam ao baixo clero, isto é, eram padres comuns, geralmente de origem plebéia. Os altos dirigentes da Igreja – bispos, abades e cônegos – eram recrutados exclusivamente entre os nobres, que se beneficiavam das rendas da igreja. A maior parte da população, de mais de 24 milhões de pessoas, constituíam o terceiro estado e os camponeses, cujo número era de 20 milhões.
Na França revolucionária, os nobres possuíam muitos direitos, e os plebeus muitos deveres, isto é, os nobres detinham todos os privilégios, do tipo portar espada, lugares reservados nas igrejas – onde nenhum plebeu podia sentar -, altos cargos administrativos no governo e no exército, etc.
Guardadas as devidas proporções e respeitada a relevância histórica da Revolução Francesa, indago: é o não é o que ocorre no Brasil, excetuado o fato de que o poder central não goza da antipatia exacerbada que gozavam o monarca Luis XVI e, especialmente, Maria Antonieta? No Brasil há ou não há, como havia na França revolucionária, uma elite que detém todos os privilégios, que usa e abusa da coisa pública, que não tem limites, que resta quase sempre impune e que submete a absoluta maioria dos brasileiros a um sistema discriminatório?
Com um olho na Revolução Francesa e outro no Brasil dos dias atuais, indago, outra vez: para quem as portas se abrem no Brasil? Quem detém todo poder de barganha no Brasil? Quem pode sonegar impostos impunemente no Brasil? Quem, no Brasil, pode desviar dinheiro público ciente da impunidade? A quem serve o sistema penal? Quais são os destinatários prioritários das instâncias persecutórias? Que respeita o cidadão da periferia merece das forças de segurança?
Vou além. Depois do bolo rateado em benefício de uma minoria, o que sobra, no Brasil, para a esmagadora maioria de brasileiros? Quantos dos que desviaram o dinheiro público estão presos no Brasil e quanto dessa mesma verba voltou ao erário público? Que classe é detentora de todos os privilégios no Brasil? Para quem se legislam no Brasil? Quantos prefeitos já enriqueceram no cargo, sem que nada lhes acontecesse? É que país prepondera a máxima “rouba, mas faz”?
Vou adiante. E para o restante do povo brasileiro, o que sobra? Respondo eu: a conta. Por isso pagamos tantos impostos. Por isso, também, o povo se revolta. Por isso, as manifestações de rua. Por tudo isso – e muito mais – é que o povo, cansado de esperar por Justiça, resolveu, agora, que só vai na marra, no grito, pisando nos calos, pois que, todos concluímos, que as coisas só acontecem quando o povo vai às ruas; quando o povo se dispersa, tudo volta a ser como antes.
A resposta para todas essas indagações é só uma: todos os privilégios, todas as garantias, inclusive da impunidade, no Brasil, é para uma minoria de privilegiados, que, na maioria das vezes, vive do que subtrai do povo, convindo anotar que aqui não me refiro a quem ascendeu socialmente por conta de seu labor e de sua inteligência.
Diante dessas constatações, resta indagar: tem ou não tem razão o povo quando, ao protestar nas ruas, o faz contra tudo que está aí, abdicando de uma pauta específica?
É claro que haverá os que argumentarão, a propósito dessas reflexões, que são situações antípodas – a da França revolucionário e a do Brasil de uma minoria voraz -, pois vivemos numa democracia e temos até uma Constituição das mais avançadas do mundo.
A verdade, a propósito da Carta Política em vigor, é que, como proclama Inocêncio Mártires Coelho, se não temos uma Constituição dos nossos sonhos, temos uma Constituição nos permite sonhar.
E eu, cá de meu lado, assim como diria a esmagadora maioria de brasileiros e brasileiras,consigno, em adição, que o povo cansou de sonhar. Estamos todos cansados. e sonhar, de esperar, de fazer planos, de pensar no porvir, na expectativa de que as coisas mudem para melhor.
O que quero, o que todos queremos, sem mais demora, é, dentre outras coisas, justiça social, saúde, educação, segurança, e, se possível, prisão para os que se apropriam da coisa pública.
Aproveito o ensejo para reafirmar a minha convicção de que o povo, unido, pode, sim, proporcionar a necessária assepsia dos costumes políticos no Brasil. É que o povo, e somente o povo, com a força que tem, pode mudar o que aí estar. Pode, até, se for o caso, defenestrar do poder os que dele se apropriam para defesa dos seus próprios interesses, sem que seja necessário que se pratique um só ato de violência, que deve ser por todos nós refutado, em nome mesmo das nossas conquistas democráticas.
E digo mais. O povo, se esse for o seu desejo, pode, até, fazer funcionar a contento as nossas agências de controle, para que essa repugnante sensação de impunidade não acabe por minimizar as conquistas democráticas dos últimos anos, depois da submissão do povo brasileiro a um longo e abominável regime de força, que solapou muitas das nossas conquistas que somente há pouco foram novamente incorporadas à nossa cidadania.
O povo, pode, sim, unido e pacificamente – sem guilhotina ou instrumento similar, portanto -, fazer uma revolução. O que não podemos, sob qualquer pretexto, é dar guarida aos vândalos que acabaram por se apropriar das manifestações públicas, tirando delas a espontaneidade que assombrou a nossa classe política, e que compeliu os nossos dirigentes e representantes a saírem em busca de uma “agenda positiva”, da qual não se ouve mais falar, desde que as manifestações, como foram concebidas em junho, deixaram de existir.