Não foram poucos os romances que li em que se refletia, em algum momento, sobre algo que só deveria ocorrer mesmo no recôndito do lar, ou seja, na intimidade, entre quatro paredes, para ninguém ver, para ser algo a ser vivido apenas pelos protagonistas.
Nessa perspectiva, o recôndito do lar sempre foi, para mim – e não só para mim – o ambiente para os afetos mais íntimos, para as ações mais reservadas entre pessoas que se amam e que se respeitam; ambiente onde o amor se revela, onde prazer ganha contornos insuperáveis.
Mas há, instalada noutros recônditos, perversa e malevolamente, numa outra dimensão, a maldade que muitas vezes viceja nas relações do homem com o seu semelhante, a revelar o outro lado da moeda, qual seja, de que o recôndito do lar pode ser, sim, um ambiente de alta toxidade, onde as práticas criminosas são, muitas vezes, reiteradas, só vindo a ganhar publicidade quando ocorre um desenlace fatal.
Digo isso porque testemunhei, na minha longeva existência, incontáveis casos de estupro, entre outros crimes, cujo cenário criminoso era o próprio lar, tendo como autores do fatos pessoas insuspeitas – pais, padrastos, avós, primos, tios, irmãos etc. – a demonstrar, definitivamente, que a maldade do homem não tem limites, a exigir de nós todos redobrada vigilância, o que não tem ocorrido, entrementes, como se viu, recentemente, em Imperatriz, com quase 800 Inquéritos Policiais, em face da Violência Doméstica, paralisados e sem solução na Central de Inquéritos e Custódia daquela cidade, crimes perpetrados exatamente no ambiente que deveria ser de paz, concórdia e harmonia.
É no recôndito do lar, importa reafirmar o óbvio, que se revela a violência doméstica, antessala, por exemplo, do feminicídio; violência que começa com um grito mais estridente, seguido de um empurrão aparentemente despretensioso, de um chega-pra-lá mais audacioso, para, na sequência, terminar numa cena de sangue.
Essa constatação está a exigir, de todos os responsáveis pelas instituições formais de controle social – Ministério Público, Polícias Civil e Militar e Magistratura – denodado desvelo no sentido de punir, exemplarmente, os autores dos fatos, sob pena de, da leniência decorrente de eventual inação, resultar, como efetivamente tem resultado, a sensação grave de impunidade, levando-nos, no mesmo passo e por via de consequência, a uma grave recalcitrância, que alimenta os índices de criminalidade e a grave e perigosa sensação de insegurança.
A propósito, ainda recentemente, o jornal O Globo, edição de 02 de agosto, noticiou algo extremamente grave e que todos já antevíamos, ou seja, que, dos 1.467 feminicídios ocorridos no Brasil, 64% foram praticados na residência das vítimas.
O mesmo jornal, na mesma matéria, noticiou, ademais, que, a cada ano, os números revelam um aumento preocupante da prática de tais crimes, precedidos do aumento de 9,8%, da violência doméstica, de 16,5% das ameaças, de 34,5% de stalking e 33,8% de violência psicológica, modalidades de violência que atingiram – pasmem! – 1,2 milhões de mulheres no ano passado, a evidenciar que algo precisa ser feito.
Segundo a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Juliana Brandão, a casa, ou seja, o recôndito do lar, como destaquei acima, é o local em que os agressores tentam ocultar a violência contra a mulher.
É como se o que acontece entre as quatro paredes não pudesse transcender o espaço público, de forma que as relações familiares e privadas estariam salvas de qualquer intervenção do Estado.
Temos que estar atentos.
Não podemos nos omitir em face dos sinais que vêm do recôndito de muitos lares, que, na verdade, são, muitas vezes, incubadores de marginais travestidos de homens de bem, mas que, de rigor, são um perigo em potencial para sociedade e, em particular, para as mulheres.
É isso.