A luta do homem é quase sempre em face do próprio homem. Nesse sentido, vivemos lutando contra a inveja, o preconceito, a vingança, o ódio, a perfídia, o descaso, a prepotência, a arrogância, a perseguição, a maldade, o sentimento mesquinho, e muito mais, do homem em detrimento do próprio homem.
Nenhum animal que habita a terra atemoriza tanto o homem quanto o próprio homem. Confesso, que tenho medo do homem. Todos temos medo do homem. E, imagino, todos sabem do que estou falando e em qual dimensão coloco essas reflexões. E não pensem que é paranóia. É apenas a constatação de quem milita na área criminal há mais de vinte anos, lidando com os mais diversos instintos.
Impregnado desse sentimento, penso que ninguém que se depare com um desconhecido em lugar ermo deixa de se dominar pelo medo. Eu tenho medo, tu tens medo, eles têm medo. Todos temos medo. É assim que, nos dias atuais, conjugamos o verbo.
Os bons são a infinita maioria. Mas os maus, os que nos apavoram são uma minoria destemida, ousada, perniciosa, audaciosa, poderosa e violenta, porque usa os expedientes que os homens de bem não ousam fazer uso.
O homem já não vê no homem um irmão, mas um desafeto, um inimigo em potencial. E se esse homem for um dos etiquetados pelos sistema, aí não tem apelo: se possível, sempre de acordo com as circunstâncias, mudamos a direção para não ter que cruzar, que nos defrontar com o (des)igual, com receio do que pode ocorrer.
É de estarrecer a constatação do quanto nos precavemos contra o homem. Quando colocamos o rosto na porta da rua, quando deixamos o recôndito do nosso lar, passamos a viver a obsessão de, a qualquer momento, ser vitimados pela violência; violência, claro, praticada pelo homem em detrimento do próprio homem.
Na rua, mesmo nos lugares bem habitados, triste constatar, tememos o homem, sentimos em cada transeunte um inimigo em potencial. E isso não e paranóia, convém repetir. Isso é fato. É uma lamentável realidade, triste realidade.
A escuridão e o lugar ermo evitamos, porque tememos o homem. Nos trancamos em nossa casa, porque tememos o homem. Na rua evitamos conversar com um desconhecido, porque tememos o homem, que já não vê o outro homem como irmão, que deixou de ser solidário para ser solitário, que é muito mais sozinho do que vizinho (Mougenot).
Os nossos filhos saem para se divertir, e ficamos em casa a torcer para que não se deparem com um malfeitor; e o malfeitor que tanto tememos é o próprio homem, muitos dos quais, a pretexto de se defender da violência, saem armados de casa, para, no primeira oportunidade, atacar o semelhante – muitas vezes, na maioria das vezes, quase sempre, injustificadamente.
Foi-se o tempo em que a maldade do homem, conquanto existisse, estava mais circunscrita à ficção que à realidade. Foi-se o tempo em que era possível dormir com as janelas abertas, sem temer a ação dos meliantes.
A verdade é que, como disse no início dessas reflexões, a luta do homem é quase sempre em face do próprio homem; homem que, muitas vezes, para se dar bem, para levar vantagem, na mede as consequências de suas ações. Por isso, são capazes, sim, de fazer o mal ao semelhante, para se dar bem, para auferir vantagens.
Na história pode-se apanhar vários exemplos de até onde pode chegar a maldade do homem na busca da vantagem material. No porão dos navios negreiros, por exemplo, que por mais de trezentos anos cruzaram o Atlântico, desde a costa oeste da África até a costa nordeste do Brasil, mais de três milhões de africanos fizeram uma viagem sem volta, para servirem à ambição do homem, a possibilitar que impérios fossem erguidos à custa do seu sofrimento.
O capitão da belonave inglesa Fawn, que capturou , na costa brasileira, o navio negreiro Dois de Fevereiro, relatou o que viu nos porões do referido navio, nos seguintes termos: “Os vivos, os moribundos e os mortos amontoados numa única massa. Alguns desafortunados no mais lamentável estado de varíola, doentes com oftalmia, alguns completamente cegos; outros, esqueletos vivos, arrastando-se com dificuldade, incapazes de suportar o peso dos seus corpos miseráveis. Mães com crianças pequenas penduradas em seus peitos, incapazes de dar a elas uma gota de alimento. Como os tinham trazido até aquele ponto era surpreendente: todos estavam completamente nus. Seus membros tinham escoriações por terem estado deitados sobre o assoalho durante tanto tempo. No compartimento inferior o mau cheiro era insuportável. Parecia inacreditável que serem humanos fossem capazes de sobreviver naquela atmosfera”(cf. Eduardo Bueno, in Brasil, uma história, fls.121/122, 2012).
Esse fato histórico decerto que confirma as minhas notas preliminares: o homem tem tudo para temer o próprio homem, por isso, a afirmação mais que contemporânea de Mougenot de que se o homem não vivesse o instinto de dominação poderíamos beber água do mesmo rio, mesmo um sendo lobo e o outro, ovelha (Edilson Mougenot Bonfim).
Mas é preciso admitir que só chegamos a essa situação de total descalabro em face da descrença nas instâncias persecutórias, fruto de nossa própria omissão e dos desvios ético dos que estão encarapitados no poder. E quando o cidadão descrer da ação ética do Estado, pouco adiante o recrudescimento ou a exacerbação das leis penais, porque ele tende ao descumprimento, adotando atitude individualista e destemida, canalizando a sua força mental para subtrair-se dos mecanismos de coerção.