NARRA MIHI FACTUM DABO TIBI IUS

“[…]Logo, de nada adianta a exposição de teses jurídicas, por mais inteligentes e bem concebidas que sejam, se o julgador não tiver absoluto domínio dos fatos e das circunstâncias, pois são eles, fatos e circunstâncias, que possibilitam ao julgador a construção do direito, a fixação da tese, a definição da norma jurídica a ser aplicada[…].

A prestação jurisdicional é dada, dentre outros, sob o manto dos princípios da narra mihi factum dabi ius e da jura novit curia. A equação é simples. O juiz conhece o texto da lei. A norma jurídica, no entanto, o Direito, enfim, só exsurge a partir dos fatos narrados. Dessa forma, o direito é algo a descobrir-se, a ser encontrado, a ser construído.

O direito, com efeito, não é algo dado. Ele se constrói em face da interpretação feita pelo magistrado do enunciado linguístico, levando em conta o caso concreto, a partir dos fatos narrados, fatos da vida, do mundo real; diria, fatos e circunstâncias, como, aliás, lembrou Eros Grau, na Reclamação nº 3.034-2-PB AgR: “[…Permito-me, ademais, insistir em que ao interpretarmos/aplicarmos o direito – porque aí não há dois momentos distintos, mas uma só operação – ao praticarmos essa única operação, isto é, ao interpretarmos/aplicarmos o direito não nos exercitamos no mundo das abstrações, porém trabalhamos com a materialidade mais substancial da realidade. Decidimos não sobre teses, teorias ou doutrinas, mas situações do mundo da vida[…]” (STF, Reclamação nº 3.034-2/PB AgR, Min. Rel. Sepúlveda Pertence, voto do Min. Eros Grau).

Faço essa linha de introdução para realçar, como um tributo, que o nosso estimado colega Desembargador José Bernardo Silva Rodrigues, como um mantra e com o feeling que só os mais argutos julgadores possuem, tem instado os colegas, nas sessões de julgamento, insistentemente, a noticiarem, pormenorizadamente, os fatos e as circunstâncias do crime em julgamento, exatamente para que ele possa construir a sua decisão, com a convicção, que é própria dos bons julgadores, de que eventual norma jurídica só pode surgir à luz de dados do mundo real, tendo em vista que, como leciona Eros Graus, os juízes decidem não sobre teses, teorias ou doutrinas, mas em razão de situações do mundo da vida. É dizer: com a materialidade mais substancial da realidade.

Às vezes, pragmáticos – e, no mesmo passo, equivocados -, insistimos em apresentar, em destaque, a tese jurídica. Mas ele, determinado, obtempera: quero os fatos e as circunstâncias, pois somente a partir deles me posicionarei. É dizer: narrem-me os fatos e darei o direito, noutros termos, narrem-me os fatos e direi qual a norma jurídica a ser aplicada.

A propósito da relevância dessa posição, definitiva e judiciosa, do Desembargador José Bernardo Silva Rodrigues, lembrei, um dia desses, de uma passagem interessante colhida na história da filosofia, que trago à guisa de ilustração, apenas para corroborar a relevância da benfazeja insistência do nosso colega no sentido de não assumir posição sem que tenha o domínio dos fatos e todas as suas circunstâncias.

À ilustração, pois.

Sócrates, como sabido, há mais de 2400 anos, segundo alguns manuais, foi condenado, dentre outros motivos, por perguntar demais. É que, apesar de reconhecerem em Atenas o seu brilhantismo e a sua inteligência, ambos incomuns, muitos o achavam inoportuno, exatamente por perguntar demais, por querer saber além do permitido.

Um diálogo de Sócrates com Eutidemo ilustra bem a importância de se perquirir acerca de fatos e circunstâncias. Pois bem. Certo dia, Sócrates indagou de Eutidemo, na lata, como se diz na gíria, se todo ato enganador poderia ser considerado imoral, ao que respondeu Eutidemo, sem titubeio, que sim, ou seja, que todo enganador é imoral.

Sócrates, então, complementou, trazendo à luz fatos e circunstâncias para facilitar a compreensão da sentença: “Mas, e se um amigo estivesse muito triste e quisesse se matar, e você roubasse-lhe a faca? Não seria esse um ato enganador?

O mesmo Sócrates respondeu: “Sim, sim, com toda certeza”.

E prosseguiu: “Mas fazer isso não seria moral em vez de imoral, afinal, se trata de uma coisa boa, não ruim – embora seja um ato enganador”?

Eutidemo, de pronto, concordou com Sócrates, mudando a compreensão anterior de que todo ato enganador seria imoral.

Resumo da ópera: Sócrates, ao usar um contraexemplo, ao expor fatos e circunstâncias que levaram ao ato enganador, demonstrou que a conclusão de que ser enganador é imoral, diferente do que concluiu Eutidemo, não se aplica a todas as situações.

Repetindo o mantra do desembargador José Bernardo Rodrigues: “Tudo depende dos fatos e das circunstâncias”. É dizer: os fatos e as circunstâncias definem se uma ação é típica ou atípica, se se subsume a um tipo penal ou se está acobertada pelo manto, por exemplo de uma excludente de ilicitude.

A conclusão óbvia a que se chega, em face do acima exposto, é que, tendo os fatos às mãos, e somente à luz deles, ter-se-á condições de fazer um julgamento tão próximo quando possível do que seja mais justo.

Logo, de nada adianta a exposição de teses jurídicas, por mais inteligentes e bem concebidas que sejam, se o julgador não tiver absoluto domínio dos fatos e das circunstâncias, pois são eles, fatos e circunstâncias, que possibilitam ao julgador a construção do direito, a fixação da tese, a definição da norma jurídica a ser aplicada.

Ademais, o julgador que não tiver total domínio dos fatos e daquilo que o circunda, nunca terá condições de fazer um julgamento justo; não terá como fazer um juízo de subsunção; não terá como aplicar a pena de forma justa, proporcional e razoável.

Para definição da autoria, fixação de uma pena, definição do grau de censurabilidade desse ou daquele acusado, só mesmo mediante fatos e as circunstâncias; só, e tão somente só, se eles estiverem expostos, quantum sufficit, pois, em sentido contrário, não será possível a apreensão do objeto do conhecimento.

Portanto, nenhum juiz será capaz de decidir acerca da responsabilidade penal de um acusado, nem será capaz de definir com clareza a sua posição diante de um fato criminoso, se não estiver ciente, o quanto baste, dos fatos e das circunstâncias.

Simples assim.

NAS PASSARELAS DA IMPUNIDADE

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“[…]O que se vê, na prática, é que, sempre que as instituições atuam com alguma sofreguidão, a pretexto de combater a criminalidade, o fazem rugindo como um leão faminto à caça da sua presa, quando se defrontam com os criminosos egressos das classes menos favorecidas, que são a sua clientela preferencial. Essas mesmas instituições, lado outro, apresentam-se frouxas, lenientes e acovardadas, miando como um gatinho encurralado, quando se trata de punir os criminosos do colarinho branco. Nesse panorama, os grandes criminosos, os que assaltam os cofres públicos, ficam impunes, via de regra, recebendo estímulos para permanecerem em cena, roubando os nossos sonhos, minando as nossas esperanças[…]”

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O direito existe como uma necessidade humana decorrente da vida em sociedade. Logo, sem ele e sem o funcionamento das instituições encarregadas de sua aplicação, não há condição de coexistência numa sociedade, pois, afinal, o homem, quando decidiu se submeter ao contrato social, o fez sob a perspectiva de o Estado lhe prover assistência, no sentido mais amplo da palavra.

O crime, que ofende, num primeiro momento, um bem alheio, num segundo momento coloca em xeque a própria vida em sociedade; por isso, quando não pode ser evitado – e não se pode mesmo evitar a sua ocorrência -, deve ser combatido com tenacidade; os infratores, nesse sentido, devem ser exemplarmente punidos, para que outras pessoas não se sintam estimuladas à prática de novos crimes, e assim possibilitar que todos possam viver numa sociedade minimamente pacificada.

Nessa perspectiva de vida pacífica em sociedade, todos nós deveríamos ter compromisso com o cumprimento da lei; seja aplicando-a, indistintamente, a quem compete fazê-lo, ou, simplesmente, se submetendo aos seus ditames, sem restrições, à luz do preceito constitucional segundo o qual todos somos iguais perante a lei.

Pois bem. Se é responsabilidade de todos o respeito à lei e se somente sob o império desta a sociedade pode sobreviver, por que então ainda há pessoas – um milhão de pessoas envolvidas em linchamento no país, segundo o professor José de Souza Martins, da USP – que se socorrem da barbárie a pretexto de fazer justiça, à margem das instituições, numa sociedade que supomos integrada por pessoas civilizadas? Antes de responder a essa indagação, narro um fato que impactou a sociedade maranhense ainda recentemente, e que me levou a essas reflexões.

Todos nós testemunhamos, em face do vídeo veiculado nas mídias sociais, o linchamento de um jovem nominado Wallison Silva Araújo, de 19 anos, vulgo “Zambeta”, na cidade de Araioses, suspeito de ter assassinado uma pessoa com dezessete facadas, fato ocorrido num domingo, mais precisamente no dia 24 de junho próximo passado.

Fatos desse jaez nos remetem, inapelavelmente, a uma necessária reflexão, como antecipei acima, que condiz com a necessidade de se compreender as razões pelas quais, com as instâncias de controle funcionando, há pessoas que ainda preferem agir por conta própria, ou seja, à margem da lei. É essa sobre essa inquietante questão que pretendo esgrimir as minhas impressões, na certeza de que, em face delas, haverá dissenções, como sói ocorrer.

Na minha compreensão, quando as pessoas optam pela autotutela, não obstante vivam numa sociedade pretensamente civilizada, estão mandando um recado claro aos agentes do Estado, responsáveis pelas instâncias de controle: não dá mais para suportar a tibieza, a vacilação das instituições quando se trata do enfrentamento de condutas criminosas. Portanto, não é preciso ser especialista para diagnosticar que as pessoas cansaram, perderam a fé e decidiram, em alguns casos, agir por contra própria.

A verdade é que a infinidade de crimes impunes deixa a população com a justificável sensação de que não dá mais para aguardar a (re)ação do Estado, sabido que, muitas vezes, não há (re)ação alguma, bastando para isso a constatação de que são inúmeros, incontáveis os criminosos que desfilam nas passarelas da impunidade, por culpa exclusiva das instituições que não desempenham a contento suas obrigações, ou o fazem mal, de forma leniente, titubeante, frouxa e seletiva, a incutir nas pessoas a falsa percepção de que a solução mais eficaz é mesmo (re)agir por contra própria.

Nesse cenário, certo mesmo é que as vítimas, diretas ou indiretas, de um crime, dos mais diferentes matizes, já não suportam se defrontar com os seus algozes flanando por aí, debochando das instituições, desfilando, como dito acima, nas passarelas da impunidade. As pessoas não aguentam mais a triste evidência de que as instituições, quando punem, convém reafirmar, punem mal, punem seletivamente, sem forças e sem predisposição para punir indistintamente, como se a lei, definitivamente, não valesse para todos.

O que se vê, na prática, é que, sempre que as instituições atuam com alguma sofreguidão, a pretexto de combater a criminalidade, o fazem rugindo como um leão faminto à caça da sua presa, quando se defrontam com os criminosos egressos das classes menos favorecidas, que são a sua clientela preferencial. Essas mesmas instituições, lado outro, apresentam-se frouxas, lenientes e acovardadas, miando como um gatinho encurralado, quando se trata de punir os criminosos do colarinho branco. Nesse panorama, os grandes criminosos, os que assaltam os cofres públicos, ficam impunes, via de regra, recebendo estímulos para permanecerem em cena, roubando os nossos sonhos, minando as nossas esperanças.

A verdade é que, para uma parcela diminuta da sociedade, os que promovem os maiores assaltos aos cofres públicos – sejamos honestos com nós mesmos –, a prisão é, sempre foi e sempre será uma excepcionalidade, como todos nós testemunhamos, em face das mais diversas decisões pretorianas que favorecem criminosos do colarinho branco com a concessão de liberdade, muitas vezes de ofício; liberdade que, admitamos, só fazem por merecer porque, afinal, são o que são, e sendo o que são, no país da impunidade, passam mesmo, como regra, à ilharga das ações persecutórias.

A impunidade, definitivamente, estimula a prática de crimes, verdade sabida que, entretanto, parece não sensibilizar os que têm sempre às mãos, de prontidão, um alvará de soltura para favorecer esse ou aquele marginal o qual, pela posição de destaque que ostenta, se sente imune às ações das instâncias de controle do Estado.

Convém ressaltar que há, sim, causas variadas que fomentam a criminalidade. Mas, seguramente, nenhuma é tão óbvia, tão evidente, tão à vista de todos quanto a certeza da impunidade. E quando se reflete sobre esse tema, a verdade é que, ainda que punamos preferencialmente os mais humildes, ainda assim punimos mal e excepcionalmente, estando as cifras negras da criminalidade a demonstrar que a lei, definitivamente, alcança a poucos e que, os poucos que as instâncias alcançam, esses, comumente, são egressos das classes menos favorecidas. Daí não ser de todo incompreensível que as pessoas, cansadas, busquem fazer justiça com as próprias mãos.

É isso.

ENTRE O RIDÍCULO E O ANTOLÓGICO

Nós, brasileiros, especialmente os que militam na área jurídica, nos acostumamos a assistir, pela TV Justiça, às sessões do Supremo Tribunal Federal. E pelo fato de atuarmos na área do Direito, não temos dificuldades de entender os votos dos doutos ministros. Contudo, o público em geral, pouco afeito ao que se convencionou chamar “juridiquês”, fica, às vezes, a ver navios.

Nesse sentido, muitos assistem às sessões do Supremo para, ao fim e ao cabo, se indagarem o que foi mesmo que eles decidiram, o que não espanta, mesmo porque, muitas vezes, eles, os ministros, decidem mesmo que não vão decidir. É que, além do “juridiquês”, os ministros têm a necessidade, para mim injustificável, de alongarem seus votos em demasia, tornando-os cansativos, mesmo aos versados, contribuindo, assim, para o atraso dos julgamentos.

Nesse alongamento excessivo dos votos, alguns deles falam por duas, três, quatro, cinco horas, para, no final do voto, concluírem, simplesmente, que seguem o relator, que, por seu turno, já havia apresentado um voto de duas, três, quatro, cinco horas. Isso nos leva a entender que falta, definitivamente, objetividade nos julgamentos do Supremo; e não só no Supremo, reconheçamos.
Convenhamos, se o voto que se pretende proferir segue, às inteiras, o do relator ou o voto divergente, penso que se poderia ser mais objetivo, salvo uma ou outra observação que se fizesse necessária. Para mim, respeitando quem pensa de modo diverso, só é justificável um voto mais denso, se for para dissentir.

Penso que, se for para seguir a linha de entendimento do relator ou o do voto divergente, pode-se primar pela objetividade; e assim, todos nós ganhamos, conquanto reconheça que o grande saber jurídico dos ministros seja, para quem possa interessar, de grande utilidade.

Se é verdade que não são poucos os que, pasmados, ficam sem saber o que dizem os doutos em seus complexos e alongados votos, não é menos verdadeiro que há unanimidade quanto ao desconforto que causam a deselegância e a descortesia que permeiam algumas intervenções.

Se é verdade – e quanto a isso acho que somos todos acordes – que há discussões ridículas, há, da mesma forma e com igual intensidade, passagens em alguns votos que merecem ser lembradas sempre, numa linha compensatória, já que se tratam de verdadeiras antologias, como as que vou destacar a seguir, do eminente ministro Luís Roberto Barroso, no Habeas Corpus 152.752.

Vejamos, pois, em destaque, as antologias.

“[…] A Nova Ordem que se está pretendendo criar atingiu pessoas que sempre se imaginaram imunes e impunes. Para combatê-la, uma enorme Operação Abafa foi deflagrada em várias frentes. Entre os representantes da Velha Ordem, há duas categorias bem visíveis: (i) a dos que não querem ser punidos pelos malfeitos cometidos ao longo de muitos anos; e (ii) um lote pior, que é dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente[…]”.

“[…] Eu respeito todos os pontos de vista. Mas não é este o país que eu gostaria de deixar para os meus filhos. Um paraíso para homicidas, estupradores e corruptos. Eu me recuso a participar sem reagir de um sistema de justiça que não funciona, salvo para prender menino pobre[…]”.“[…] Quando a investigação começa, o princípio da presunção de inocência tem seu peso máximo. Com o recebimento da denúncia, este peso diminui. Com a sentença condenatória de 1º grau, diminui ainda mais. Quando da condenação em 2º grau, o equilíbrio se inverte: os outros valores protegidos pelo sistema penal passam a ter mais peso do que a presunção de inocência e, portanto, devem prevalecer[…]”.

“[…] Processos devem durar 6 meses, um ano. Se for muito complexo, um ano e meio. Nós nos acostumamos com um patamar muito ruim e desenvolvemos uma cultura da procrastinação que oscila entre o absurdo e o ridículo. O processo penal brasileiro produz cenas de terceiro mundismo explícito. As palavras no Brasil vão perdendo o sentido. Entre nós, a ideia de devido processo legal passou a ser a do processo que não termina nunca. E a de garantismo significa que ninguém deve ser punido jamais, não importa o que tenha feito […]”“[…] O poder, em geral, e o Poder Judiciário, em particular, existe para fazer o bem e para promover justiça, e não para proteger os amigos e perseguir os inimigos […]”.

Essas passagens são dignas de ser lembradas, e por isso antológicas, deveriam inspirar, nortear, iluminar os juízes criminais do século vinte e um, além de poderem contribuir para a construção de uma Nova Ordem.

Logo, se persistimos em manter a mesma mentalidade retrógrada do passado, podemos ficar certos de que não reverteremos o quadro de impunidade que se descortina sob os nossos olhos, prevalecendo, assim, a Velha Ordem que pode ser traduzida como impunidade.