A cultura da impunidade

Todos que cometem crimes devem – ou deveriam – receber o mesmo tratamento das instâncias de controle social. É assim que penso, é nesse sentido que tenho agido. Por isso me causa certo desalento, por exemplo, colocar  em liberdade um meliante perigoso por excesso de prazo ou quando tenho, pelo mesmo decurso do tempo, que reconhecer uma prescrição e extinguir a punibilidade de um criminoso, sejam quais forem os crimes a ele imputados, por entender que é dever do Estado julgar a tempo e hora os que transgridem a ordem pública.

É mais comum do que as pessoas possam estar informadas a extinção da punibilidade e o relaxamento da prisão de meliantes por inação, descaso, incúria dos responsáveis pelas instâncias formais de controle social, o que é de se lamentar.

Nesse cenário, confesso, com ênfase, o meu especial desalento, a minha quase revolta quando me deparo, por exemplo, com a falta de zelo e de rigor dos agentes do Estado, diante, por exemplo, de crimes que condizem com o desvio de verbas públicas ou praticados com violência, pondo em relevo, neste artigo, os primeiros, em face dos efeitos danosos para o conjunto da sociedade.

Na condição de magistrado, tenho me defrontado com vários processos que traduzem bem a conduta imoral e irresponsável de gestores do dinheiro público, e, no mesmo passo, com a inércia, com o descaso e a falta de zelo dos responsáveis pelas agências de controle, que deixam, injustificadamente, que as ações se prolonguem no tempo, com indiscutíveis prejuízos à persecução criminal. Por isso a tenaz fiscalização do CNJ em torno desses processos.

Em casos desse jaez, o dado que me chama mais a atenção, portanto, é a morosidade da justiça – injustificável, desde a minha compreensão -, disso resultando a impunidade dos gestores, em face das consequências que dimanam do tempo transcorrido, por mais nociva que tenha sido a sua ação na administração da coisa pública. Logo, diante dessa sedimentada cultura de impunidade, eles se sentem estimulados a continuar transgredindo, cientes de que só por acidente serão responsabilizados criminalmente.

Decerto que as instâncias persecutórias não podem fazer corpo mole, sobretudo, diante de crimes dessa coloração, em face, repito, dos efeitos devastadores desse tipo de ação para o conjunto da sociedade. Por isso, nos julgamentos dos quais faço parte, tenho reiterado que, se é verdade que um assaltante merece ser tratado com todo o rigor – e merece mesmo, pois é, para mim, acima de tudo um covarde -, merece maior rigor, ainda, o gestor que desvia verbas públicas, pois as consequências da sua ação são mais danosas que as de um assalto à mão armada, por mais que o assalto nos cause indignação.

Diante desse cenário, causa-me indignação ter que reconhecer a prescrição e extinguir, na mesma balada, a punibilidade de um criminoso que tenha, no exercício de uma outorga, enriquecido à custa da desgraça e do abandono dos que lhes confiaram um mandato.

Por isso, tenho reafirmado ser necessário que todos – Ministério Público, Polícia, Poder Judiciário, dentre outros -, diante de casos dessa envergadura, nos empenhemos ao máximo para julgar a tempo e hora processos que cuidem dessas questões, envidando esforços para que não fiquem impunes, pelo decurso do tempo, os que fazem mau uso do dinheiro público.

A verdade é que, na quase totalidade das vezes, por omissão das instâncias persecutórias, os crimes praticados em detrimento do Erário ficam impunes, estimulando, nesse passo, a sua prática.

Em face da má gestão, do desvio de verbas públicas, do enriquecimento ilícito no exercício do poder, posso constatar, triste e quase revoltado, que a cultura da impunidade irradia os seus efeitos para outras instâncias, com as mesmas consequências práticas. E assim, muitos que ascendem ao poder, acreditam por ciência própria ou por ouvir dizer, que enriquecendo no exercício desse mesmo poder, pelos mais diversos meios, têm assegurada a garantia da impunidade, ou seja, que nada lhes ocorrerá, pois, conforme pensam, cadeia mesmo é só para os miseráveis.

Portanto, se é verdade que as franquias constitucionais permitem, muitas vezes, que os processos se encaminhem para a prescrição – e para consequente impunidade -, não é menos verdade que, pelo que tenho testemunhado nessas décadas de exercício judicante, com um pouco mais de boa vontade é possível fazer muito mais do que fazemos.

Proponho, pois, que façamos uma corrente positiva para reverter esse quadro desalentador. Vamos envidar esforços no sentido de fazer com que os processos que cuidam de questões desse matiz sejam julgados com brevidade,  para absolver ou para condenar; mas que cheguem ao fim, que não seja pela prescrição, pois  depõe contra as instituições de controle o favorecimento dos acusados em face do transcurso do tempo.

Ladrões de sonhos

Decerto que muitas das minhas reflexões não são aceitáveis, sobretudo para aqueles que se contrapõem às minhas ideias, Sei, portanto, que o que escrevo não é bem recebido por muitos. Todavia, isso não me preocupa, pois, como dizia Sócrates, uma vida sem exame, ou seja, sem reflexão, sem indagações, sem que se busquem novos ideais, novos caminhos, nova direção, não merece ser vivida.

Bem sei que, por comodidade e para viver em paz com todos, o ideal mesmo seria guardar as nossas inquietações no recôndito da alma, sem falar, sem dizer o que pensamos – calar, enfim; deixar as coisas fluírem. Contudo, não sei ser assim,. Por isso, vou continuar dizendo o que penso, com a necessária responsabilidade, para não ferir suscetibilidades e nem macular a honra de ninguém.

Padre Antonio Vieira dizia que melhor que luzir todo tempo, é luzir somente a tempo, pois que, assim agindo, se enganam os olhos da inveja, se concilia nos ânimos a estima. Deixar de luzir, na minha interpretação, é deixar a ribalta para não mais lembrado, para espantar a inveja do semelhante. Essa questão, inobstante, passa ao largo das minhas preocupações.

Sei que não sou digno da inveja de ninguém, pois custo muito a acreditar que alguém quisesse ser o que sou: um tipo enfadonho, incapaz de despertar qualquer sentimento que não seja da mais absoluta indiferença.

A minha hora de ser esquecido virá inevitavelmente. Enquanto esse dia não vem, não deixo a ribalta, e vou continuar expondo os meus pensamentos, consignando, em artigos, as minhas inquietações, as minhas reflexões, ainda que, assim o fazendo, corra o risco de ser mal interpretado, repetindo a sábia constatação de Amir Klink, segundo o qual na vida o maior fracasso é não partir.

Como todo jovem, eu também fui um sonhador quase incorrigível. Vivi, como muitos da minha geração, do porvir, pois que, afinal, como diz, com sabedoria, o protagonista de o Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, “é uma estupidez não ter esperança”. E foi esperando e crendo, que sonhei com um mundo melhor, retratado numa sociedade mais fraterna, menos egoísta, com mais solidariedade. Mas errei! E assim como eu, muitos erraram. É que o mundo está ficando cada dia mais difícil, mais desalentador, pelo fato de imperar nele i o oportunismo, a esperteza e o impulso descontrolado dos que almejam mais e mais, os quais, nessa volúpia, vão atropelando as pessoas, levando a vida da maneira que melhor lhes convier, na defesa dos seus interesses.

Flertei com o comunismo, vesti camiseta com a estampa de Che Guevara, apostei em Fidel Castro, pensei em morar em Cuba, sonhei com um mundo justo que, cheguei a supor, se consolidaria na ilha dos irmãos Castro. E assim, criei um mundo de sonho e de fantasia, para, depois, como todos nós testemunhamos, vê-lo ruir.

A verdade é que eles – como tantos outros que estão ou passaram pelo poder – roubaram os meus, os nossos sonhos, e ainda persistem nessa sanha, mesmo nos dias atuais, embora sob outra roupagem, agora sob os dogmas do liberalismo, mas com a mesma volúpia. E assim, vão pelos mesmos caminhos, com armas diferentes, mas da mesma forma, roubando o sonho de todos nós, deixando-nos sem a perspectiva de vislumbrar o futuro.

Hoje, já cansado de sonhar, maltratado pelo tempo que a tudo destrói, estou desencantado com quase tudo, quase perdendo a esperança. Talvez por isso, eu não suporte mais ouvir promessas oportunistas, vindo a sentir até uma certa revolta com as que são feitas a cada eleição; promessas gestadas, pensadas, com inteligência e perspicácia, para enganar, iludir, ludibriar.

Ninguém suporta mais tantas mentiras, tanta enganação. Estamos desiludidos, definitivamente, em face dessa insistência em roubar os nossos sonhos, sem nos deixar enxergar o futuro. Além disso, tudo o que fazem é em beneficio pessoal, já que eles enganam, se irmanam, se unem – e aprontam, em detrimento do coletivo, enriquecendo no poder, sem controle, sem peais, sem escrúpulos, descaradamente, pouco importando as consequências que decorram do dinheiro que subtraem, apostando na impunidade, na leniência das instâncias penais.

Com as suas ações daninhas e com o dinheiro público que subtraem, eles deixam sem perspectiva a nossa juventude, da qual surrupiam o ensino que sonhamos um dia pudesse  ser de qualidade.

Em face da voracidade com que se lançam sobre as verbas públicas, negam ao cidadão saúde, moradia, estradas de qualidades, segurança e, sobretudo, respeito, destinando ao órfãos do Estado apenas as migalhas, que têm servido, a cada eleição, para vilipendiar a consciência dos incautos, dos mais necessitados.

Já não é possível conviver com tanta desfaçatez, tanta volúpia por cargos, não para servir, mas para deles apenas se servirem. Falta aos nossos representantes, como regra, o necessário espírito público. Alheios a essa necessidade, eles deixam transparecer que só pensam em seu próprio bem estar. Afinal de contas, as disputas pelo poder não são – e nunca foram, ao que parece – para servir.

Para ilustrar, trago à colação, porque no sentido das reflexões aqui expostas, a conclusão  de Luiz Fernando Vianna, colunista da Folha de S. Paulo, no artigo intitulado O que resta, edição do dia 08 do corrente, verbis: “O vazio da política – entendida como disputa de ideais e projetos – é o terreno onde vicejam os partidos de aluguel, os chantagistas, os surrupiadores, os fascistas”.

É isso.