“VAI DAR ERRADO”

Muitos de nós testemunhamos quando o ministro Gilmar Mendes, por ocasião do julgamento que restringiu o alcance do foro privilegiado, teceu críticas severas contra os juízes de primeiro grau, os quais, como sabido, em face do julgamento em comento, devem assumir os processos deflagrados contra políticos agora sem prerrogativa de foro, nas hipóteses contempladas na decisão.

Em determinado momento de sua fala, o ministro disse, dentre outras coisas, que o sistema de Justiça Criminal, nos diversos estados da Federação, é disfuncional e não está preparado para julgar os detentores de foro.

Mais adiante, de forma, para mim, pouco respeitosa, disse que, com “essa gente”, se referindo ao juízes e membros do Ministério Público, a situação vai ser pior que no Supremo, para, adiante, prognosticar: “Vai dar errado”.

Abstendo-me de julgar o ministro em face da maneira deselegante como se dirigiu a nós outros, acho que, em face de sua afirmação, é preciso uma seríssima reflexão, pelo que ela contém de verdadeiro.

É necessário, sim, sem falsos pruridos, sem fazer beicinho e sem fingir indignação, admitir que a afirmação do ministro, conquanto pouco respeitosa, traduz, sim, uma realidade que precisa ser encarada, se pretendemos mudar a realidade.

A verdade é que, com a restrição do foro privilegiado, jogou-se sobre os ombros dos juízes, promotores e polícia judiciária dos estados uma enorme responsabilidade que, confesso, não sei se estamos preparados para enfrentar, como advertiu o ministro, em face, dentre outras razões, das nossas reconhecidas limitações estruturais.

Não bastasse o reconhecimento das nossas limitações estruturais, é bem de se ver, com mais preocupação que, historicamente, não temos dado aos feitos criminais, pelo menos na Justiça Estadual, o mesmo tratamento que tem sido dado aos feitos cíveis, a contribuir decisivamente para impunidade.

Não fosse suficiente esse histórico “desprezo” para com os feitos criminais, é forçoso admitir, de mais a mais, que, também historicamente, as instâncias de controle dos Estados – aqui considerados Poder Judiciário, Ministério Público e Polícias – não têm sido rigorosas, como deveriam, com os criminosos do colarinho branco, os quais, como regra, pelos mais diversos motivos, têm passado à ilharga das instâncias de controle.

Por essas e outras razões, existe no ar, exalando péssimo odor, uma forte probabilidade de a população se decepcionar com a expectativa de que, aqui embaixo, longe do foro por prerrogativa de função, os processos andarão e que, como num passe de mágica, a turma do andar de cima será penalizada exemplarmente. Contudo, não será assim, posso garantir, se persistirem – e a tendência é a manutenção do status quo – as coisas como sempre foram.

Posso afirmar, com pouca probabilidade de estar errado, que tudo ficará como antes: aqui, assim como no Supremo, as demandas em desfavor dos que se acostumaram a passar à ilharga das ações dos órgãos de controle continuarão sem uma resposta efetiva, imunes, portanto, às nossas ações, salvo uma ou outra punição, aqui e acolá, pontualmente, para confirmar a regra.
Torço, sincera, mas desesperançadamente, para que o ministro não tenha a oportunidade de, daqui a alguns anos, dizer que tinha razão quando afirmou que não ia dar certo, e que não se podia mesmo contar com “essa gente”.

Eu espero, sim, com sofreguidão, mas ao mesmo tempo tomado da necessária prudência, que, sobretudo os juízes e promotores estaduais, deem uma resposta positiva à sociedade, devido à expectativa que se criou em torno da questão, conquanto desconfie dessa possibilidade, uma vez que, mesmo os processos criminais contra os desvalidos, não têm merecido de nós a necessária atenção, muitos deles sendo levados à prescrição.

Importa anotar que, quando falo em resposta positiva à sociedade, como o fiz acima, não me refiro, necessariamente, ao desfecho condenatório. Refiro-me, sim, à solução do conflito, seja para condenar, seja para absolver, pois, afinal, a justiça não é eficaz apenas quando pune, mas também quando é capaz de, a tempo e hora, decidir as questões submetidas a julgamento, sem tardança e sem delongas, pronta e eficazmente.

À luz do que expus acima, a minha esperança agora é que, numa guinada exemplar, as instâncias de controle dos Estados, comandadas por “essa gente”, apliquem um duplo twist carpado na indolência, um upper de esquerda no queixo da indisposição, um cruzado à altura do fígado da acomodação e um salto mortal na indiferença, dando, com essa necessária mudança de conduta, uma resposta exemplar à sociedade, em face das expectativas criadas em torno da nossa ação, pois só assim reverteremos o quadro de impunidade que ainda é uma regra entre nós, em se tratando de criminosos do colarinho branco.

É isso.

A PRISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA E A SELETIVIDADE DO DIREITO PENAL

“[…]Falo isso em face do conhecimento que tenho amealhado nos mais de trinta anos lidando com a criminalidade miúda, para a qual as instituições penais sempre destinaram todo o seu rigor, conquanto tenham sido, historicamente, cordadas, lenientes, covardes e indispostas quando se trata de punir os do andar de cima, cujos crimes, reconheçamos, causam muito mais danos à sociedade que a soma total dos crimes praticados pela clientela miserável do Direito Penal, muitas vezes presa em face de um crime menor e, em seguida, jogada em verdadeiras masmorras, esquecida, vilipendiada, desassistida e abespinhada em sua dignidade, ante o silêncio, algumas vezes covarde e não raro cúmplice, de grande parte da sociedade[…]”

 

Volto ao tema porque ainda persiste, infelizmente, como um pesadelo para quem almeja uma sociedade mais justa e menos seletiva, a possibilidade de ser revista pela nossa Corte Suprema a prisão em segunda instância, medida que, desde o meu olhar, chegou em boa hora, pois, com ela, finalmente, estamos testemunhando reais perspectivas de as instâncias de controle alcançarem, como nunca o fizeram realmente, os que sempre se valeram das deficiências e da falta de efetividade do sistema, para se safarem da persecução penal, conquanto tivessem praticado crimes de especial gravidade, de consequências imensuráveis/deletérias para o conjunto da sociedade.

Muitos, incontáveis são os artigos escritos sobre a seletividade do sistema penal. Eu mesmo, neste mesmo espaço, e no meu blog – www.joseluizalmeida.com –, já tive a oportunidade de, reiteradas vezes, denunciar essa deformação/seletividade do nosso sistema, que, como lembrou Luís Roberto Barroso, no julgamento do HC 152/752, só prende menino pobre com 100 gramas de maconha, fechando os olhos para o agente público ou privado que desvia 100 milhões de reais.

Retomo o tema acerca da prisão em segunda instância apenas para reafirmar o óbvio que uns poucos preferem não admitir, por conveniência e/ou por interesse, ou seja, que aguardar o cumprimento de pena para só depois de esgotadas todas as vias recursais, é, tão somente, reafirmar o que o mais ingênuo dos mortais já sabe: que o sistema penal brasileiro, disfuncional como é, voltará a ter as suas ações destinadas, como sempre foi – por isso o registro que fiz no parágrafo anterior -, apenas para a sua clientela preferencial, para a qual, de forma evidente, não são assegurados, objetivamente, os mesmos instrumentos recursais que favorecem a uma minoria que, de tão privilegiada pelo modelo, se considera e se assume imune às ações das instâncias de controle.

Nessa perspectiva, ou seja, da iminente volta ao modelo anterior que tanto mal fez ao Brasil, ao consagrá-lo como país da impunidade, consolidar-se-á uma outra obviedade, qual seja, a existência, por essas bandas, de duas classes distintas de criminosos, numa clara e frontal ofensa ao princípio da igualdade: i-a classe dos que sucumbem/sucumbirão diante do sistema, que sempre existiu para punir pobres, e ii -a classe dos que sempre se safaram/safarão, como regra, em face da ação persecutória estatal, tendo a socorrê-los o nosso horroroso/danoso/disfuncional modelo recursal, que tem se prestado a levar os feitos à prescrição, favorecendo, como regra, aos criminosos do andar de cima.

É dizer: voltando-se ao modelo anterior, ou seja, a possibilidade da execução da pena somente depois de esgotadas todas as vias recursais, em face de uma interpretação constitucional que não condiz com a realidade brasileira, o sistema penal, definitivamente, não alcançará os grandes criminosos, aqueles que podem contratar as grandes bancas de advocacia, sabido que, em relação à quase totalidade da clientela do Direito Penal, nada muda, pois a ela (clientela) será sempre destinada – como sem o foi, reitere-se – a prisão em face de uma decisão de segunda instância, que é o que efetivamente ocorre na prática.

A verdade é que essa discussão acerca da prisão depois da segunda instância só ganhou destaque nos dias atuais em face da mudança de paradigma que se deu com a Lava Jato. Continuasse o sistema penal – como ainda se dá na absoluta maioria de casos que chegam ao Poder Judiciário, fruto da nossa proverbial leniência com os criminosos de colarinho branco – agindo seletivamente, como tem feito historicamente, não haveria insurgência alguma em face da prisão em segunda instância, que, de rigor, é o que sempre ocorre em face dos miseráveis, para os quais são negados, na prática, por motivos de todos conhecidos, os mesmos instrumentos recursais que são utilizados, à exaustão, pelos que podem pagar grandes bancas de advocacia.

A verdade é que, se as instâncias de controle não tivessem, num determinado momento da nossa história, abandonado um pouco a seletividade do Direito Penal, que, efetiva e prioritariamente, pune apenas os miseráveis, ninguém estaria se insurgindo contra a prisão em segunda instância, que, repito, sempre foi a regra, ainda que não escrita, para a quase totalidade dos condenados, egressos, como regra, das classes menos favorecidas.

É bem de ver-se, pois, que essa luta renhida que se trava em face da prisão em segunda instância não decorre do apego empedernido ao texto constitucional, ao princípio da presunção de inocência, pois, o que se pretende mesmo, é livrar da cadeia uma elite criminosa, que historicamente passou à ilharga da persecução criminal.

Falo isso em face do conhecimento que tenho amealhado nos mais de trinta anos lidando com a criminalidade miúda, para a qual as instituições penais sempre destinaram todo o seu rigor, conquanto tenham sido, historicamente, cordadas, lenientes, covardes e indispostas quando se trata de punir os do andar de cima, cujos crimes, reconheçamos, causam muito mais danos à sociedade que a soma total dos crimes praticados pela clientela miserável do Direito Penal, muitas vezes presa em face de um crime menor e, em seguida, jogada em verdadeiras masmorras, esquecida, vilipendiada, desassistida e abespinhada em sua dignidade, ante o silêncio, algumas vezes covarde e não raro cúmplice, de grande parte da sociedade.

A verdade é que o modelo que estava aí – prisão somente depois de esgotados todos os recursos – não serve à sociedade. Ao contrário, esse modelo era um incentivo à prática de crimes de corrupção, pois a certeza de não ser alcançado pelos órgãos persecutórios é um estímulo à criminalidade, estímulo que se revitalizará tão logo se retome o modelo anterior, de triste memória, mas que ainda se coloca sobre a sociedade como uma espada prestes a lhe decepar a esperança.

Como bem anotou Luís Roberto Barroso, em seu magistral voto no HC acima mencionado, a Nova Ordem que se criou com a mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal criou condições para que fossem alcançadas pessoas que sempre se imaginaram imunes e impunes. A volta da Velha Ordem, como bem lembrou o douto ministro, só beneficiaria duas categorias de malfeitores: i)a dos que não querem ser punidos pelos malfeitos cometidos ao longo de muitos anos; e ii) um lote pior, que é dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente.

É isso.

BANDIDOS SÃO OS OUTROS

 

“[….]Nesse panorama, é de rigor a constatação de que, em todos as circunstâncias, em todos os eventos, em todas as oportunidades, os equívocos são sempre dos outros, ou seja, dos que estão do outro lado, dos que assumem posições que não se prestam aos interesses dos que estão do lado oposto ou que possam afetar, de qualquer modo, os interesses dos seus amigos, – pois, afinal, para os que se julgam mocinhos, para os que estão em lado oposto, aqueles que não pensam, não agem e não decidem como eles gostariam, devem mesmo ser espezinhados. E as redes sociais, nesse sentido, são o melhor palco, são o ambiente ideal, são o local mais propício, ambiente no qual se pode assacar, com grandes possibilidades de não ser alcançado pelos órgãos de controle social, as críticas mais acerbas, as acusações mais descabidas, daquelas que beiram à incivilidade e à ignomínia, muitas vezes atingindo a honra e o decoro daquele que se elegeu como bandido[…]”.

Dê uma olhada nas mensagens e comentários postados no Facebook, leia as curtas mensagens no Twitter, atente para o teor das cartas enviadas para as redações dos jornais e revistas, observe a participação de ouvintes em rádios AM/FM, ouça os discursos políticos, atente para o que dizem as mais destacadas lideranças nacionais/locais, converse nas filas de banco, dialogue numa mesa de um restaurante ou de um bar, convide os amigos para assistirem a uma partida de futebol, se reúna em volta de uma mesa para uma rodada de vinhos ou para degustar um bom churrasco e constatará, inapelavelmente, pelos discursos/comentários que ouvirá/lerá, pelas posições assumidas, enfim, que vivemos no país dos mocinhos, os quais são sempre os do lado de cá, enquanto os bandidos são os outros, os do lado de lá.

Com a devida atenção, pode-se observar, nesses ambientes – especialmente nas redes sociais (propícias ao escárnio e ao vilipêndio) -, que o vizinho, o torcedor rival, o motorista que disputa o mesmo espaço, o juiz que concedeu ou negou uma liminar, o ministro que soltou ou o que mandou prender, o deputado que votou contra ou o que votou a favor, o promotor que denuncia ou o promotor que não denuncia, o delegado que prende ou o delegado que não prende, todos, enfim, que não pensam e não agem e/ou não decidem de acordo com o que pensam e querem os que se imaginam mocinhos, são sempre os bandidos, são o alvo a ser defenestrado, o alvo a ser atingido, a ser massacrado, a ser enxovalhado, convindo anotar que os mocinhos, sobretudo os que pontificam nas redes sociais, que têm sempre uma crítica mordaz a fazer aos que não pensam da mesma forma que eles, são os que, na vida pessoal, na maioria das vezes, relativizam a moral, que não se acanham de, quando lhes convém, dar um jeitinho, fazer uma traquinice, cujo senso crítico só se mostra atilado quando lhes apraz.

Nesse panorama, é de rigor a constatação de que, em todos as circunstâncias, em todos os eventos, em todas as oportunidades, os equívocos são sempre dos outros, ou seja, dos que estão do outro lado, dos que assumem posições que não se prestam aos interesses dos que estão do lado oposto ou que possam afetar, de qualquer modo, os interesses dos seus amigos, – pois, afinal, para os que se julgam mocinhos, para os que estão em lado oposto, aqueles que não pensam, não agem e não decidem como eles gostariam, devem mesmo ser espezinhados. E as redes sociais, nesse sentido, são o melhor palco, são o ambiente ideal, são o local mais propício, ambiente no qual se pode assacar, com grandes possibilidades de não ser alcançado pelos órgãos de controle social, as críticas mais acerbas, as acusações mais descabidas, daquelas que beiram à incivilidade e à ignomínia, muitas vezes atingindo a honra e o decoro daquele que se elegeu como bandido.

Definitivamente, para os que pensam e agem a partir dos seus interesses, de sua visão unilateral de mundo, à vista de suas idiossincrasias, cujo centro do universo é o próprio umbigo, os mocinhos são eles próprios e os que se alinham ao seu pensamento, ou seja, os que decidem como eles gostariam que decidissem, os que pensam de igual modo ou, numa outra perspectiva, os que defendem e se alinham aos seus interesses. Nesse cenário, os que ousam contrariar os mocinhos, são os néscios que estão a merecer o seu desprezo. Nessa senda, eles, os mocinhos, não perdem a oportunidade de atacar os que julgam ser os bandidos, ou seja, os outros; bandidos por pensarem de modo diverso, por ousarem assumir posições diferentes.

E, nesse afã, para escarnecer o inimigo, nada melhor, repito, que uma página na internet, ambiente ideal para desancar quem pensa diferente, quem ousa discordar, ainda que, nesse alvitre, seja preciso manchar a honra daqueles que são eleitos desafetos, os quais, afinal, aos olhos dos mocinhos, não são dignos de respeito.

No mundo dos que usam as redes para destilar ódio e espargir veneno, constata-se que, do lado de cá, definitivamente – e assim parece estar dividida a sociedade –, estão os mocinhos; do lado de lá, estão os bandidos, considerados como tais até que adiram ao pensamento dos mocinhos ou até que decidam de acordo com as expectativas desses mesmos mocinhos.

Nesse mundo perverso e maniqueísta, o mal está sempre nos outros. Só os mocinhos professam e agem de acordo com o bem, o bom e o justo. Os desonestos são sempre os outros; os honestos são só os que se imaginam mocinhos, pois só estes têm pudor, agem com acerto. E os outros? Bom, os outros, até prova em contrário, são de honestidade duvidosa, a menos, repito, que se aliem ao pensamento dos mocinhos, que cerrem fileiras na defesa dos interesses dos que, imaginando-se mocinhos, são impiedosos com os que elegem bandidos.

No mundo dividido entre mocinhos e bandidos, a tendência é de os primeiros fecharem os olhos para os erros dos seus congêneres – e os seus próprios – e dos que pensam e agem da mesma forma que eles, para, noutro giro, permanecem com os olhos bem abertos e censuradores para os erros dos que elegeram como bandidos.

E assim, nos mais diversos ambientes, o que se ouve é sempre crítica aos outros; sempre aos outros. Nada de autocrítica, uma vez que os erros estão sempre nos outros, assim como os desvios de conduta são sempre protagonizados por estes. Por isso, as redes sociais parecem abrigar um exército de arcanjos, onde vicejam as críticas acerbas e as infâmias assacadas contra os que não rezam pela cartilha dos que se julgam donos da verdade. E tomem críticas e aleivosias, sobretudo aos homens públicos, muitas das quais assacadas por quem, na vida privada, vive protagonizando deslizes morais que só consegue perceber e condenar nos outros.

É isso.