SOLIPSISMO JUDICIAL

 

Ferreira Gular, na Crônica intitulada “Dos três poderes sobrou um”, publicada na Folha de S. Paulo, dia 14 de fevereiro, sentencia: “Não há duvida alguma: o Executivo e o Legislativo perderam a autoridade que a Constituição lhes outorgou. Dos três poderes, o único que merece a confiança do povo – porque responde às suas expectativas e ante a sobrevivência do Estado brasileiro – é o Judiciário, que, aliás, assusta aos outros dois”.
Essa é a visão, portanto, do grande poeta maranhense sobre os três Poderes da República, que, de resto, tem sido a percepção da maioria dos brasileiros. E é, afinal, o mínimo que se deseja nos dias atuais, com as instituições em estado de quase putrefação.
“A exacerbação das individualidades, em detrimento da colegialidade, além de ampliar a instabilidade política, pode colocar em risco a própria autoridade da corte. E tudo o que não precisamos neste momento é de um tribunal vulnerável”. Oscar Vilhena, Colunista Folha de S. Paulo, edição de 06 de abril de 2016.
Essa é a síntese do artigo de Oscar Vilhena, a propósito da liminar do Ministro Marco Aurélio, determinando o processamento do pedido de impeachment do vice-presidente da República Michel Temer, pela Câmara dos Deputados, decisão muito combatida pela comunidade jurídica nacional. Mas também é tudo que não se deseja do Poder Judiciário, em sua instância colegiada, pois as condutas individualistas, solipsistas, egoístas e egocêntricas não contribuem para o fortalecimento da instituição; antes, a depreciam, a fragilizam, causando-lhe indesejável instabilidade.
Ferrreira Gular sintetiza tudo o que os magistrados de bem desejam para o Poder Judiciário: que ele seja mesmo respeitado pelos jurisdicionados, sobretudo nos dias atuais, donde exsurge, a olhos vistos, a descrença, quase generalizada, dos Poderes Executivo e Legislativo; Já Oscar Vilhena, de seu lado, resume tudo o que devemos abominar num colegiado, a propósito das ações individualistas, personalíssimas dos que, num sodalício, numa casa (que deveria ser) marcada pela pluralidade, parecem(?) não ter a exata noção da importância das decisões plurais.
As decisões marcadamente individualistas, com o consequente abespinhamento do sistema colegiado, como ocorre, por exemplo, com as decisões monocráticas, devem ser evitadas, tanto quanto possível, porque, além de expressar um labor solitário, deixam má impressão junto aos jurisdicionados e à própria comunidade, sobretudo se sem as cautelas legais.
Esse individualismo egoísta e malsã, em boa hora restringido no novo CPC, mostra a sua face mais aguda e mais danosa quando se cuidam de decisões liminares, inaudita altere partes, no segundo grau, gestadas durante o plantão, sem que, muitas vezes, se observe, como tem ocorrido, o pressuposto da urgência, com flagrante menoscabo, repito, do sistema colegiado.
A gravidade se avulta ainda mais grave e preocupante quando se constata que, em alguns casos, o recurso – ou ação, nas hipóteses de competência originária – já está em curso, inclusive com relator definido, a quem cabe, ex vi legis, examinar eventuais pleitos, a roborar, a fortiori, a inocorrência da urgência que pudesse justificar a ação de outro julgador que não o magistrado para quem o feito foi antes distribuído.
Não é possível a uma nação se conduzir, crescer, se fortalecer, desempenhar a contento o seu papel, corresponder às expectativas da população, nos campos econômico, político e social, se apenas um dos três Poderes tiver credibilidade. A fortiori, será muito mais difícil se o Poder que ainda detém alguma credibilidade vier a sucumbir em face da ação desavisada e nefasta de uns poucos.
Contudo, o que temos testemunhado, nos dias presentes, a fragilizar as nossas esperanças, é o esfacelamento dos Poderes Executivo e Legislativo: aquele em menor escala; este de forma mais acerba e preocupante.
Entrementes, não nos iludamos: o Poder Judiciário, persistindo a ação nefasta dos que atuam sem nenhuma preocupação com a sua credibilidade, mais cedo do que se imagina fará companhia aos demais poderes, cujas consequências é impossível avaliar.
Nesse cenário, é de bom alvitre que o Judiciário, por seus membros mais descuidados, se aperceba de que, a cada decisão heterodoxa, seja uma liminar, seja uma definitiva, ele se fragiliza ainda mais; e a sua fragilização é o que de pior pode ocorrer para uma nação, cujos poderes Executivo e Legislativo gozam de nenhuma, ou de diminuta credibilidade.

Eu, viciado

 

O pintor francês Jean-Baptiste Debret chegou ao Rio de Janeiro em 1816, a convite de D. João VI, para fazer registros oficiais da vida na então capital do reino português. Contudo, foi muito além e documentou, ademais, maus-tratos e humilhações aos escravos. Graças a Debret, portanto, foi registrado o triste cotidiano dos escravos, uma vez que são muitas as pinturas de Debret dando conta das idas e vindas do dia a dia escravo no Rio de Janeiro do século XIX.
As informações dão conta de que, graças à ação de Debret, tivemos notícias do que ocorria no cotidiano da então capital do império. Todavia, constam das mesmas informações que, pelo fato de Debret ser um só, muitas coisas importantes deixaram de ser registradas por ele.
Fico pensando, cá com os meus botões, o quanto saberíamos da história desse período, se Debret tivesse às mãos essa “praga” chamada smartphone, que flagra e registra nos dias presentes as situações mais inusitadas, como se deu recentemente com um senador da república, um boquirroto inconsequente, que se viu preso por conta de uma gravação feita num aparelho celular, quando exercia, imprudentemente, a prática da bravata, para dizer o mínimo.
A verdade é que, nos dias de hoje, em face do smarthphone e em vista da instantaneidade da internet, quase ninguém faz mais nada escondido, sendo recomendável, no mínimo, que redobre os cuidados com a bisbilhotice alheia, pois, afinal, ninguém nunca sabe quando o interlocutor tem um diabinho igual a esse ligado, captando uma conversa. E uma vez ocorrido o flagra, e este caindo nas redes, pronto: a desdita é para sempre, sem controle, sem peias e sem limites.
O aparelho celular existe hoje para o bem e para o mal. Às vezes, fico me perguntando como se vivia antes sem esse ele, que a muitos vicia, que a outros tantos entorpece; que tira o sono, que grava, que filma, que publica, que modifica o mundo exterior.
Não sou viciado (?) em celular e nem em internet. Mas confesso – olha que bela contradição! – que não sei como viveria sem saber que tenho à minha disposição um tablet e um aparelho celular, sobretudo para o envio de mensagens e para as minhas leituras diárias, já que praticamente aboli os livros e os jornais físicos.
Um episódio interessante, a propósito, que bem retrata a importância do celular nos dias atuais, ainda que o seja em face de um episódio incomum. Tenho um compadre e amigo que, quando ia ao shopping, antes da era do celular, curiosa e inusitadamente, localizava os filhos pequenos e a esposa com um apito, pouco se importando com as interpretações que pudessem ser dadas a essa modalidade curiosa de busca. Hoje, com o aparelhinho, tudo mudou. Um toque, uma mensagem, e pronto!
Outro episódio tão inusitado quanto. Um irmão meu de sangue, não usava apito, mas se comunicava com um estridente assovio. Era assoviar, no shopping ou na Rua Grande, e seus filhos apareciam em desabalada carreira.
Hoje, essas práticas estão obsoletas. Um clic no celular e pronto:
-Onde estás?
-Estou próximo do supermercado.
-Estou indo para aí.
Simples assim.
Mas o mesmo aparelhinho, cuja utilidade é indiscutível, é, muitas vezes, fonte de irritação. Fico agastado, sim, quando alguém esbarra em mim por conta da desatenção em face do aparelho celular. Fico estupefato quando vejo, numa academia, as pessoas correndo na esteira ou se exercitando no elíptico, fazendo a leitura concomitante das mensagens recebidas no viciante e, quase sempre, irritante aparelho.
E quando deixam o personal esperando enquanto respondem às mensagens? O personal olha para um lado, olha para o outro, coça a cabeça, dá uma olhada nos presentes, curte a morena que passa nas proximidades, cumprimenta um colega de academia, e nada: o aparelho hipnotizou a aluna. Pronto! O programa de treinos para aquele dia já está prejudicado.
Fico olhando, perscrutando, mas fazer o quê?
E quando os mesmos alunos param na frente do bebedouro ou na porta de entrada ou nas escadas, atrapalhando as pessoas, concentrados e perdidos em face da magia proporcionada pelo famigerado e irritante aparelho?
Você já viu coisa mais estranha que um grupo sentado numa mesa de bar ou de restaurante, todos conversando com quem não está lá, via whatsapp, como se o amigo – ou amigos – da mesa não existissem?
E quando a gente se depara, como ocorreu comigo, recentemente, no São Luis Shopping, com alguém andando com o celular nas mãos, esbarrando nas pessoas, lendo as mensagens e rindo sozinho?
A minha dúvida é se Debret tivesse vivido essa mesma experiência faria um bom ou mau uso do celular. Confesso que não tenho dúvidas. O aparelhinho vicia. Debret seria, nos dias atuais, apenas mais um viciado, mas certamente saberia fazer um melhor uso do instrumento, como fez com o pincel, dando a sua contribuição à construção da historia do nosso país.
Mas, convenhamos, apesar das muitas inconveniências proporcionadas por uso abusivo, a verdade é que nem eu saberia como viver nos dias presentes sem os meus dois aparelhos de celular e meus dois tablets.
Sim, tenho dois aparelhos de cada. É que tenho receio de que acabe a bateria de um, e eu fique sem comunicação, apesar de andar com um carregador de bateria para não correr nenhum risco.
Como assim? Eu, viciado?
Sei lá!