O CUIDADO QUE DEVEMOS TER COM AS EXPECTATIVAS QUE CRIAMOS

Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

Membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão

 

Todos nós, admitamos ou não, vivemos, aqui e acolá, momentos de pura elucubração, de muita imaginação, de fantasias e de sonhos. Nos nossos sonhos e fantasias, elucubrações e imaginação, muitas vezes, pontificam personalidades do mundo real, com as quais não temos o menor contato, mas sobre as quais fazemos as mais diversas e esquisitas especulações, os mais esquisitos juízos, imaginando-as assim ou assado, até o dia em somos instados a confrontar a realidade e, nesse passo, compelidos a reavaliar, positiva ou negativamente, os juízos pré-concebidos que formulamos.

O primeiro encontro de Stalin com Lênin se deu na Finlândia, em dezembro de 1905, numa conferência semiclandestina da qual Stalin participaria como delegado do partido georgiano. Consta que a primeira impressão de Stalin em face de Lênin foi de pura decepção; muito distante, com efeito, daquilo que havia imaginado e idealizado sobre o líder.

Consta, nesse sentido, que Stalin, depois do primeiro encontro, teria dito: “Eu esperava ver a águia do nosso partido, o grande homem, grande não só politicamente, mas, por assim dizer, também fisicamente, porque Lênin se apresentava à minha imaginação como um gigante de bela figura, com um ar imponente. Qual não foi, porém, a minha desilusão, prosseguiu, quando vi um homem dos mais comuns, de estatura inferior à média, que não se distinguia em nada, em absolutamente nada, dos simples mortais”.

Lênin, da mesma forma, não deve ter se impressionado com o que viu, afinal, segundo uma ficha de dados compilada pela policia czarista depois de sua primeira prisão, Stalin era, da mesma forma, um tipo comum, atarracado, de estatura média, com cerca de 1.62, barba e bigode escuros, a fisionomia marcada pela varíola e uma singular particularidade: tinha o segundo e o terceiro dedos do pé esquerdo unidos.

José de Alencar subiu à tribuna para o seu primeiro discurso como deputado, sob enorme expectativa, em face da sua reputação como literato. Todos esperavam um excelente orador, com boa dinâmica de fala, convincente, capaz de galvanizar as atenções. Foi uma enorme decepção. Tropeçou nas palavras, não foi convincente, não mereceu aplausos. Foi o oposto de tudo que se imaginou, que se criou, enfim, em face da sua fama de literato. É que as pessoas não foram capazes de, ao alimentarem a sua imaginação, perceber que um literato não é, necessariamente, um grande orador, daí o equivoco de se elucubrar, de se imaginar, de se sonhar descurando que, acima disso, além dos nossos preconceitos, há uma realidade que não pode ser desconsiderada.

O que revelam esses episódios é o obvio: devemos ter cuidado com as expectativas que criamos em torna nas pessoas, da mesma forma que temos que ter cuidado redobrado com a primeira impressão, pois nem sempre o que parece é. Essas são lições comezinhas, mas que, pela que testemunhamos todos os dias, poucos a aprenderam. Eu próprio, muitas vezes, sou tomado de desalento, ao fazer um julgamento precipitado do que vi no primeiro momento ou em face das expectativas que criei em torno de determinadas pessoas; como ocorreu, por exemplo, com Euclides da Cunha que trazia consigo uma falsa impressão sobre Canudos, que só se dissipou quando se defrontou com a realidade.

Pelo fato de ser muito fã de um determinado cantor popular, de ter sido embalado na minha juventude – e até hoje, já na terceira idade – pelas suas canções, sempre guardei em mim a esperança de um dia poder estar com ele. Descobri, já maduro, que o melhor mesmo é que esse dia nunca chegue, pois, para mim, tendo-o como um mito, tendo-o idealizado como um quase deus, seria muito difícil concluir que ele é uma pessoa igual a mim. É preferível, pois, que eu guarde dele apenas a imagem que criei, pois, para mim, seria um desalento se, conhecendo-o de perto, descobrisse que ele é gente igual a gente; e um ídolo, um mito como ele, não pode ser igualzinho a mim, simples mortal.

Eu guardei na minha lembrança, por muitos anos, a imagem da casa que morava com a minha família em Vitorino Freire. Na minha retina ficou guardado, por muitos anos, o campo de futebol, em frente a uma usina de beneficiamento de arroz, onde jogávamos futebol. Eu sonhava muito em voltar um dia para rever a casa e o campo mencionados, pois eles, como tantas outras coisas de lá, não habitavam, de forma inclemente, as minhas mais lúdicas lembranças.

Determinado dia, muitos anos passados, voltei na esperança de matar a saudade dos momentos vividos na minha infância. Criei expectativas várias. Meus pés e as minhas mãos gelaram ao entrar na cidade. Mas foi enorme a decepção: nem o campo de futebol e nem a casa em que morávamos existiam mais. Frustrado, decepcionado, triste, voltei para São Luis, prometendo a mim mesmo que tudo faria, doravante, para não destruir os meus sonhos, as minhas fantasias, a imagem guardada, pois o que vi diante dos meus olhos pode ser medido, em proporção, à decepção de Stalin ao deparar-se com a figura minúscula e inexpressiva de Lênin, ou de Euclides da Cunha, ao testemunhar os seus equívocos em torno de Canudos.

Não custa nada guardar as boas lembranças no aconchego da alma. Não faz mal sonhar, imaginar e elucubrar. Faz parte da vida. Melhor sonhar, viver das boas lembranças que pura e simplesmente se decepcionar ao confrontar a realidade; pelo menos até aonde é possível sonhar, afinal, como diz o poeta, “sonhar não custa nada, não se paga pra sonhar”. Mas, do mesmo modo, é preciso muito cuidado com as ideias pré-concebidas, para não ter se decepcionar, como se decepcionaram os que confundiram José de Alencar escritor com o José de Alencar orador.

 

O PREÇO DA AMBIÇÃO

Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

Membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão

 

Clay Carter, advogado público, aparentemente, não tinha ambição, uma vez que se dedicava, exclusivamente, à defesa de pessoas pobres e marginalizadas, parecendo do tipo acomodado, apesar de ser reconhecidamente brilhante. Clay, inobstante, conforme se verá adiante, assim como muitos, cede à primeira tentação, pois, sem formação moral consolidada, não é capaz de suportar a primeira provocação, ao primeiro aceno.

Apesar de brilhante, Clay era do tipo mal remunerado, malsucedido, visto que só trabalhava em casos ruins, daqueles que ninguém queria. Ele parecia conformado com a vida simples que levava, em que pese ser filho de um grande e bem-sucedido advogado, que por um deslize moral, caíra no ostracismo e já não era mais lembrado por ninguém.

Clay namorava Rebecca, cujos pais não aceitavam a sua condição de malsucedido profissionalmente. Contudo, ele parecia não estar nem aí para o fim do namoro, que se deu por pressão dos ambiciosos pais de Rebecca, os quais, ricos, prepotentes e sem pudores, queriam o “melhor” para a filha.

Influenciada pelos pais, Rebecca deixava claro a Clay que gostava do que era bom, daquilo que só o dinheiro podia proporcionar, razão pela qual, por influência destes, deu por terminado o namoro com Clay, que ficou arrasado com o desfecho, fato que, muito provavelmente, o impulsionou rumo à ambição que terminaria por lhe trazer fortes dores de cabeça.

Confesso que, à proporção que eu conhecia a vida de Clay, ia me identificando com as suas desventuras, com as suas frustrações, supondo, numa primeira impressão, que se tratava de uma pessoa que não se deixaria levar pela ambição, e que, honestamente, venceria e daria uma lição a Rebecca e a seus pais.

Bastou, inobstante, que se abrisse a primeira oportunidade para que ele revelasse seu lado ambicioso e despudorado – como costumam fazer muitos com os quais às vezes convivemos -, e se aliasse ao misterioso Max Pace, para, em nome de uma grande firma de advocacia, patrocinar ações indenizatórias coletivas, com base em artimanhas e falcatruas, a partir das quais ganhou muito dinheiro, sem nenhuma restrição moral, deixando-se levar pelos interesses mais mesquinhos.

Clay Carter, assim como tantos que conhecemos, acabou totalmente absorvido pela ganância e pelo dinheiro fácil, sempre querendo mais, numa sequência de grandes ações coletivas contra grandes empresas que jogaram no mercado fármacos com algum efeito colateral danoso.

As passagens acima mencionadas – sem spoiler, pode constatar, depois, quem vier a ler o romance -, à guisa de ilustração, são do romance O Rei das Fraudes, de John Grisham, obra ficcional que não está distante da realidade, segundo testemunhamos todos os dias, em face da ambição desmedida de alguns, sobretudo os que exercem cargos públicos, os quais, pelas suas ações, se expõem e expõem, sem pudor, a sua própria família à execração pública.

O lamentável é que essas pessoas, sem freios e sem peias morais, equivocadas, com a mente obliterada pela ambição, pensam que, no exercício do poder, tudo podem – e agem como se tudo pudessem mesmo -, até o dia em que são flagradas e desmoralizadas publicamente (vide o exemplo da Operação Lava Jato), levando na onda desmoralizante os seus filhos e seus parentes mais próximos, que, sem apelo e sem culpa, passam a sofrer as consequências, os efeitos de sua ação incontrolada, que termina por espargir sobre todos os membros da família a lama fétida sob a qual resultou mergulhado, por pura ambição.

Fico me indagando, diante dos exemplos que tenho assistido, em face das notícias sobre corrupção em todas as esferas de poder, o que leva um homem público, bem remunerado, vivendo, como poucos, uma vida com muito conforto, com um bom saldo bancário, dando o que há de melhor aos filhos, consumindo o que se destina a poucos, a se corromper, mercadejar decisões e influências, desmoralizando a si e à instituição a que pertence, além de levar de roldão os que o cercam, impiedosamente.

Para os que pensam e agem assim, sem controle, sem amarras, dispostos a tudo pelo vil metal, é sempre prudente lembrar que ambição tem preço, e que quem opta por desviar a conduta, deve estar ciente de que o preço a pagar pelo luxo que ostenta, à vista de todos, despudoradamente, é muito mais alto do se que possa imaginar, em face dos efeitos que dela (da ambição) irradiam.

Ambição todos nós temos. O termo, de grande abertura semântica, permite  várias acomodações. É quase uma ficção viver sem ambicionar alguma coisa. Eu também tenho as minhas, mas não as permito sem controle. Eu gostaria, por exemplo, de ser um filho, um pai e esposo melhor do que sou. Também gostaria de ter a capacidade, que poucos têm, de me conduzir sem deslizes morais, mesmo os irrelevantes, que todos nós, em determinadas circunstâncias da vida, nos permitimos. Isso, todavia, vejo não ser possível, uma vez que esses pequenos deslizes são próprios do homem. Basta olhar em volta de si mesmo e examinar a sua conduta quando está diante da possibilidade de levar vantagem, seja furando uma fila de atendimento ou usando do poder e prestigio que o cargo oferece.

Por ter ciência de que o homem tende ao desvio moral, penso que é preciso que, no exercício de um múnus público, que busquemos, com sofreguidão, controlar os nossos impulsos, conter a nossa vaidade, pois, sem controle, podemos ser levados aos grandes desvios de conduta que podem nos levar, inapelavelmente, à derrocada moral, à desmoralização definitiva.

Aos que integram uma corporação e fazem uso do poder para levar vantagens, fiquem certos de que nada é mais desgastante para uma instituição, em qualquer instância de poder, do que ter entre seus membros pessoas ambiciosas e sem escrúpulos, que estejam a serviço apenas de seus interesses pessoais, pois que, nesse cenário, levam consigo parte da credibilidade da instituição a que pertencem, deixando a malévola e equivocada impressão de que todos têm a mesma tendência, que são todos movidos pelos mesmos interesses.

A CRISE PRISIONAL É CULPA DE TODOS

Carrlos Eduardo Pinheiro Rocha

Bacharel em Direito – Pós-Graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Estácio -Servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão.

Em meio ao caos que se instalou no sistema carcerário brasileiro, observo, após a leitura de vários sites, revistas, blogs e colunas, a busca incessante pela responsabilização do atual momento vivenciado.

Culpa-se o Executivo porque nunca investiu no sistema. O Judiciário se mantém determinado indivíduo preso de forma prolongada, é moroso, e se o põe em liberdade é conivente com a criminalidade.

Culpa-se ainda o Ministério Público e sua “sede” por condenação, além da polícia que é mal preparada e corrupta. Sobra até para Defensoria Pública, pois a mesma não é capaz de atender a demanda crescente. Aos advogados reserva-se o estigma de mercenários que por dinheiro defendem os piores criminosos.

Por fim, vem o poder Legislativo, responsável em elaborar leis penais brandas, o que estimula o crescimento da criminalidade. Resumindo, o problema, genericamente falando, é das autoridades e do sistema como um todo, independente do poder a qual pertençam.

Pronto. Encontrou-se a causa das mazelas atuais. A crise é lá e não aqui, afinal, eu não tenho a caneta em minhas mãos para autorizar, nomear, decidir, requerer, determinar, denunciar, peticionar ou executar qualquer ato inerente às autoridades públicas no cumprimento de seu dever. Sou apenas um cidadão de bem e nada disso me diz respeito.

A questão crucial, a meu ver, e que muitos devem se indagar principalmente na hora de atribuírem a culpa a determinado órgão é: porque que não se investe no sistema carcerário? Porque o governo não constrói presídios se a superlotação prisional debatida exaustivamente é de conhecimento de todos?

A resposta é simples: presídio não dá voto. Imagine você, um candidato em plena campanha, tendo como um dos seus temas “NO MEU GOVERNO, IREI INVESTIR 200 MILHÕES NA CONSTRUÇÃO DE NOVOS PRESÍDIOS”. Puro suicídio político. Derrota certeira. Num estado (e país) onde a carência por serviços básicos é precária, a educação é falha e a saúde pública é uma verdadeira antecipação de morte, não há espaço para se investir um real na melhoria de morada provisória de preso.

A população anseia por melhores condições de vida, saúde, educação, infraestrutura e, na rabeira dos investimentos públicos, melhorar o sistema carcerário não deve sequer fazer parte da lista de investimentos a serem efetuados.

Sinceramente, não quero a construção de presídios quando inexistem hospitais e escolas para atender a população de forma eficaz, e tenho certeza que este pensamento reflete o de muitos cidadãos. Porém, esta postura me responsabiliza, em conjunto com as demais autoridades, pelos fatos vivenciados atualmente.

Conforme dito antes, presídio não dá voto, não elege, e, via de consequência, não é importante para aqueles que estão ou pretendem um dia exercerem um cargo eletivo, sendo dispensável para o destinatário final de uma campanha política, o eleitor. Uma boa forma de um marqueteiro político perder seu emprego é informar ao candidato que parte de seu programa de governo será voltado para a melhoria carcerária. Demissão imediata.

A melhoria no sistema prisional não se dá apenas por parte de investimentos, se dá pela mudança no pensamento de todo cidadão, tendo a consciência de que a questão carcerária é de importância fundamental para toda a sociedade, afinal, ninguém que está privado de sua liberdade ficará eternamente neste estado de custodia, ou seja, um dia você estará do lado de uma pessoa que já permaneceu detida.

Agora vejamos, de quem é a culpa? Do governo que não investe ou da população que não quer este investimento? Quem votaria num candidato ao afirmar, em plena campanha, que pretende executar o maior investimento da história em presídios, quando o Estado sequer garante o mínimo de atenção básica para a população?

Como cidadão, confesso que passei a refletir um pouco mais sobre a complexidade do atual momento em que vive o sistema prisional brasileiro, mas infelizmente, e como já é praxe, determinadas questões só são debatidas após mortes, dor e sofrimento. É aquela máxima brasileira de que todo mundo sabe do problema, mas é preciso que uma desgraça aconteça para que se discuta. Vou dar um exemplo pontual para não fugir do tema. Redução da maioridade penal. Aparece e depois some. Discute-se para logo em seguida cair no esquecimento (exemplos: caso Liana Friedenbach de 2003, Victor Hugo Deppman, abril de 2013, universitário morto com um tiro na porta de sua casa e o da dentista Cynthya Magaly, que teve o corpo tomado por chamas após um menor lhe atear fogo, e mais recente, o estupro coletivo em Castelo/PI, dentre inúmeros). Infelizmente e com pesar, eu afirmo que vai ser necessário que um adolescente mate algum cidadão de forma chocante e trágica para que essa discussão volte à pauta, já que a “bola da vez” são os presídios.

Voltando. Praticar um crime é uma opção individual (generalizando, sem adentrar nas questões sociais) e a nossa insensibilidade e desprezo pelo sistema carcerário ocorre pelo fato da imensa maioria dos brasileiros serem pessoas corretas e trabalhadoras, fato que impõe a sensação de relativa imunidade de um dia fazermos parte do contingente carcerário deste país. Mas, se um de nós tivesse algum amigo ou parente preso neste atual momento, a nossa mentalidade provavelmente seria outra e, assim como se faz necessária a melhoria nos serviços públicos básicos, também se mostra urgente e indispensável a realização de investimentos no sistema prisional, afinal, quem está preso, um dia esteve solto e, infelizmente, a custódia restritiva de liberdade deixa sequelas insanáveis que são descontadas em toda a sociedade (reincidência delitiva).

Ademais, foi-se o tempo de nos considerarmos alheios a situação prisional no Estado. Além de cobrar por hospitais e escolas, a população deve cobrar também a melhoria no sistema carcerário, não devendo renegar aqueles que penalmente e provisoriamente, repita-se, foram excluídos do convívio social.

PS: Escrevi esse texto em março de 2014 quando ocorreu o massacre de Pedrinhas. Fiz essas observações de forma particular, apenas como reflexão própria. Incrível como quase três anos depois, tudo que foi redigido se aplica ao atual momento e penso, será que esse texto ainda será atual nos anos vindouros?

UMA CRIANÇA FELIZ; UM ADULTO MAL-HUMORADO

No dia 07 de outubro do ano passado, eu retornava de Brasília, DF, no voo nº JJ3552, assento 01C, no chamado assento +, da TAM, hoje LATAM, depois de ter participado da II Conferência Nacional de Mediação e Conciliação, nos dias 05 e 06 de outubro do corrente passado, na sede do Tribunal Superior do Trabalho.

Na fileira 02, lado oposto, assento D, havia uma senhora loira, de 25 a 30 anos, com uma criança morena, de cerca de 2 anos, que, percebi logo, era sua filha. Essa criança, certamente muito saudável, deslumbrada com o ambiente, corria e gritava muito. Era só alegria. Chamava a atenção de todos com os seus gritos estridentes, os quais, decerto, podem ter causado algum desconforto aos ouvidos mais sensíveis.

Pelo fato de eu gostar muito criança, comecei a me divertir com a alegria da garotinha, pouco me importando com os seus gritos, pois, afinal, ver uma criança feliz é um alento, tanto que parei de ler para curti-la

A comissária de bordo, contagiada pela alegria da criança, começou a fazer acenos para ela, o que açulou ainda mais a sua desenvoltura, a sua contagiante alegria. Nesse sentido, corria até determinada parte da aeronave, para, em seguida, voltar em desabalada carreira, gritando, claro.

Eu observava os demais passageiros e percebia que a maioria parecia se divertir com a alegria da criança, que não estava nem aí para o mundo, ou melhor, fechado no seu mundo – o mundo de criança, o melhor dos mundos -, apenas se divertia, pouco se importando com o mau humor dos adultos.

Na minha avaliação, ela, de rigor, apesar da estridência dos gritos, não incomodava ninguém, sobretudo os dotados de alguma sensibilidade. Afinal, poucas coisas no mundo podem ser comparadas ao sorriso de uma criança.

Mas a mãe da criança, apesar de não se tratar de uma situação preocupante – e nem vexatória, pelo menos para os meus olhos -, pois se tratava apenas de uma criança feliz, mostrou-se preocupada com a situação, parecendo até um pouco constrangida com a algazarra que fazia a sua filha; uma criança linda, que tive vontade de colocar no colo e compartilhar com ela a sua alegria.

Preocupada, como anotado acima, a genitora da criança a chamava a toda hora, tentando controlar os seus ímpetos. Debalde, no entanto. Parecia que quando mais pedia para a criança parar, mais ela se divertia com o inusitado do ambiente.

Eu, que observava tudo com razoável atenção, quando percebi que a criança me olhou, esbocei um sorriso em sua direção, tentando ser simpático. Acho que ela entendeu esse meu sorriso como uma autorização para continuar as suas traquinices, próprias de criança saudável, ainda que, repito, sua mãe tentasse a todo custo colocar um basta nas suas estripulias.

Mas o que parecia ser normal para a grande maioria, incomodava, sobremaneira, um passageiro mau humorado que estava no ambiente; pelo menos, foi o único que se manifestou, como vou narrar a seguir.

Pois bem. Da poltrona que se seguia à minha, fila dois, poltrona B, uma pessoa do sexo masculino, incomodada com os gritos da criança, dirigiu-se à mãe dela e lhe disse sem meias palavras, indelicadamente, grosseiramente, deselegantemente:

-Se ela dessa idade não lhe obedece, espere para ver quando ela crescer.

A mãe da criança, estupefata com aquela manifestação – estupefação que, imagino, não foi só dela – olhou para ele com ar de indignação, visivelmente constrangida, mas controlada e educadamente, limitando-se a dizer-lhe:

-Moço, ela é apenas uma criança de dois anos.

O diálogo ficou aí. Mas o constrangimento foi percebido por todos. Eu mesmo fiquei extremamente agastado.

Incomodada, a mãe pediu à comissária que lhe trocasse de lugar, uma vez que, definitivamente, não tinha condições de ficar onde estava, muito próxima do indelicado passageiro, que não soube compreender o que significa para a vida uma criança feliz; quiçá porque ele próprio não seja uma pessoa feliz.

Distante, lá atrás, a criança, como que sentindo o constrangimento pelo qual passara a sua mãe, calou-se o resto do voo; pelo menos eu não ouvi mais os seus gritos. Dessa forma, o cidadão infeliz me privou o voo inteiro de curtir o prazer de ver uma criança feliz.

Assim como tudo na vida, esse acontecimento que testemunhei, e outros tantos que tenho testemunhado, me remetem a uma indagação que tenho feito a vida inteira: será que as pessoas têm o direito de, a qualquer hora, em qualquer lugar, em qualquer circunstância, dizer tudo o que pensam, sem medir as consequências da sua ação?

Não é de hoje, repito, que reflito sobre essas questões, pois, todas as vezes que eu falei sem pensar, que me deixei levar pela emoção, que não refleti antes, me arrependi do que disse, mesmo porque as consequências do que dizemos e fazemos não se medem apenas pelas nossas impressões; as sequelas e a repercussão, em face do que dizemos dependem,  quase sempre, da pessoa para a qual dirigimos as nossas palavras.

Diante dessa constatação, o ideal mesmo é pensar antes sobre o que pretendemos dizer, para não ter que ferir suscetibilidade, pois, definitivamente, nós não podemos, sejam quais forem as circunstâncias, dizer tudo o que pensamos sobre alguém, a menos que sejamos do tipo “num tô nem ai”.