Reconheço que, como qualquer pessoa, sou muitas vezes contraditório. Além de contraditório, sou idiossincrático o, como, de resto, todos somos.
De tão idiossincrásico fica difícil, num espaço tão pequeno, enumerar algumas particularidades da minha personalidade, as quais, decerto, me distinguem de tantos outros viventes, todavia, claro, me aproxima dos que pensam como eu.
Na maioria das vezes – absoluta maioria, registro-, tenho procurado, na medida do possível, adotar uma linha de coerência de modo a não deixar que as minhas idiossincrasias assomem a ponto de dificultar as minhas relações com o semelhante.
Ao admitir e enumerar algumas das minhas idiossincrasias, como o faço agora, só reafirmo o óbvio, ou seja, de que cada um, diante das vicissitudes da vida, reage de acordo com o seu temperamento, sendo certo que aquilo que me incomoda pode não incomodar o meu semelhante, a reafirmar a nossa individualidade.
Começo por afirmar, em face do meu temperamento, que não suporto pessoas dissimuladas; tenho verdadeira aversão ao tipo dissimulado. Não é do meu temperamento aceitar, sem algum sofrimento, conviver com gente desse tipo. É que não dá pra crer no tipo dissimulado. O dissimulado, tenho dito, não se revela, não deixa seus sentimentos fluírem, não se percebem os seus desígnios, o que lhe apraz e o que lhe causa desconforto. E assim fica difícil lidar com gente desse tipo.
Só sei ser claro. Assim sendo, me revelo logo por inteiro. Escancaro o peito, deixo a emoção fluir, não trago ninguém enganado sobre o que sou e como me posiciono diante dos mais variados temas.
O dissimulado vai levando, vai deixando a vida lhe levar, fingindo aqui, fingindo acolá. Não se deixa compreender. Difícil, para mim, conviver com tipos assim.
Digo mais. É próprio da minha personalidade não suportar bravatas, conquanto tenha que conviver, aqui e acolá, com bravateiros.
A verdade é que o bravateiro é um chato. A fanfarronice, a vangloria, tudo isso é uma chatice. Por isso tenho ojeriza ao bravateiro.
O bravateiro, sem se dar conta, se desqualifica por si só. Ninguém crê no bravateiro. O bravateiro é medonho. Chato, chatíssimo. Pensa que engana. Difícil conviver com pessoas assim.
Da mesma forma, não suporto o contador de lorota, que é que, na minha avaliação, uma espécie do gênero bravateiro. Bazofia, treta, patranha, conversa fiada tudo isso é insuportável. É desgastante ouvir lorotas. É como ouvir piadas sem graça ou fora de hora. Aliás, o loroteiro, para mim, é um contador de piadas sem graça. Tudo nele é uma piada.
O fanfarrão, o farofeiro, o gabola são tipos insuportáveis. O traço comum em sua personalidade é que não se mancam, não têm discernimento. O contador de lorotas é um tipo bravateiro que se distingue pela arrogância, pois pensa que todos os que ouvem as suas mentiras são bobos; só ele é vivo, atilado, inteligente. O resto é rebotalho, mercadoria de segunda.
O mentiroso é sempre do tipo insuportável, daqueles que a gente convive por educação. A mentira, a final, salvo situações excepcionais, é sempre um despropósito, a qualquer hora, em qualquer lugar. É chato ouvir uma mentira, saber que é mentira e não poder dizer, por educação, na cara do mentiroso, que sabemos que ele mente.
A situação de que ouve uma mentira, sabendo-a mentira, é desconfortante. Fico pensando, nesse cenário, por que a gente não pode dizer pra pessoas aquilo que a gente está pensando e sentindo, ou seja, que a gente sabe que ela mente, que não estamos sendo enganados, que as ouvimos por educação.
Prosseguindo o desfilo de idiossincrasias, quero dizer, ademais, que não suporto quem conta vantagens, que, afinal, se parece, também, com o contador de lorota e de vantagens, que se parece com o bravateiro.
Definitivamente, não tenho boa relação com o esnobe, aquele sujeito para quem o melhor carro é o dele, o melhor vinho é ele quem toma, de whisky só ele entende, que só o terno dele é bem cortado.
Como a maioria dos mortais, convivo por educação com o esnobe. Para salvar a relação, sou compelido a fingir, mesmo tendo enormes dificuldades para disfarçar. Mas, muitas vezes, por educação, somos todos obrigados a fingir diante desse tipo de gente.
Reafirmo que tenho medo da mentira, ojeriza ao esnobe, aversão ao bravateiro, repulsa ao contador de piadas que não saber a hora de fazê-lo.
A vida não pode ser um blefe. Eu não posso ser um blefe. Não posso ser uma mentira. Tenho que ser crível. Todos devemos ser críveis. As pessoas precisam acreditar no que dizemos. Temos que ter o sentido da conveniência. Temos que saber que há tempo pra tudo: para plantar e colher, para rir e chorar.
É evidente que não se pode exigir das pessoas que elas sejam sempre como a gente espera que elas sejam. Sinceridade, por exemplo, tem preço. Mas não se pode ser insincero a vida toda só para não pagar o preço da sinceridade.
Um registro histórico, para ilustrar. Ernesto Geisel, quarto presidente do período revolucionário, pelo menos publicamente, foi o único dos presidentes militares a defender, sem enleio, a tortura. Disse ele, em entrevista publicada após a sua morte, que achava que “a tortura, em certos casos, torna-se necessária, para obter confissões”.
É claro que em face dessa sinceridade ele pagou em vida um preço alto, como de resto ainda paga, mesmo depois de sua morte, pois essa afirmação infeliz é muito mais enaltecida que as ações desenvolvidas por ele para, na condição de presidente, acabar com a tortura.
Quiçá tenha feito essa afirmação por ser do tipo que não tolerava mentira, como, afinal, a maioria de nós não tolera. Dizem que um dos seus maiores medos era ser flagrado na mentira, e que, por isso, nos jogos de pôquer, nunca fora flagrado blefando. Palavras textuais do ex-presidente: “Eu nunca blefei. É um jogo que você joga com as cartas, com as fichas e com o temperamento dos parceiros. Aí é que entra o blefe. Para mim seria uma decepção tão grande ser apanhado blefando que nunca blefei.”
Se eu fosse tão sincero quanto o falecido presidente eu já teria desmascarado, sem pena e sem dó, os bravateiros, os mentirosos e os esnobes, só para deixar claro que, diferente do que eles pensam, não somos tolos.
Mês: janeiro 2016
Discricionariedade vinculada
Tem sido uma quase rotina, ou seja, em quase todas as apelações, a defesa questiona, prevalentemente, a (falta de) fundamentação da qual resultou a fixação da pena ou a fundamentação gestada com termos que retratam a própria tipicidade, tipo “o réu agiu com violência e emprego de arma”, no caso do crime de roubo, por exemplo.
Os magistrados, é lamentável dizer – sem deslembrar das exceções -, no trabalho de individualização da pena, olvidam-se de que a discricionariedade na aplicação da pena é vinculada, e que essa operação mental só pode ser controlada, evitando-se que descambe para o arbítrio, que seria a negação do próprio Estado de Direito, se for devidamente fundamentada, por força do que contempla a nossa Carta Magna, como é do conhecimento de todos os operadores do Direito.
Para nós – julgadores do segundo grau, em particular, e para sociedade em geral – essa é uma situação inquietante, porque dela resulta que as penas acabam sendo fixadas aquém da resposta penal que deveria ser infligida – em face da reforma das decisões -, com o que se afronta o principio da proporcionalidade.
O mais grave, nessa constatação, é que o órgão acusador só excepcionalmente recorre das decisões de primeiro grau, ainda que sejam flagrantes os equívocos operados na dosimetria da pena, o que, evidentemente, impossibilita que, em sede recursal, a pena seja revista em desfavor do acusado.
Disso decorre que, aplicada a pena, inferior à necessária à reprovação do delito, introduz-se no espírito da população, já calejada e descrente de tudo, um malsã sentimento de impunidade.
O legislador, todos sabem, estabelece, abstratamente, os limites mínimos e máximos para os delitos. O juiz trafega dentro desses limites, elegendo o quantum ideal, valendo-se, claro, do seu livre convencimento. Contudo, não deve fazê-lo de forma arbitrária, desmotivadamente, em tributo mesmo ao Estado de Direito, e ante a certeza de que o réu, antes de ser objeto, é sujeito de direito, ou de que se as coisas têm preço, o ser humano, ainda que acusado da prática de um crime, tem dignidade, devendo ser tratado sob essa perspectiva.
Conquanto tenha uma margem de liberdade para fixação da pena ao autor de um crime, o juiz, além dos parâmetros estabelecidos no preceito secundário do tipo penal malferido, está preso à vinculação da sua decisão, sabido que, em face da individualização judiciária da sanção penal, está diante de uma discricionariedade que é vinculada (Luiz Luisi).
É dizer: o juiz não trafega entre o mínimo e o máximo da pena de acordo com seu bom ou mau humor, de acordo com os seus sentimentos pessoais, com a sua formação moral, com as suas pré-compreensões, com os valores que eventualmente tenham sido incorporados à sua personalidade. Não. O juiz, longe disso, está vinculado a uma obrigação que não comporta tergiversação, isto é, tem que motivar a sua decisão.
O juiz, todos sabem, ou deveriam saber e lembrar, não pode fixar uma pena além do mínimo legal, um dia sequer, ainda que o faça dentro dos limites mínimo e máximo fixados pelo legislador, se não o fizer motivadamente; afinal, “o estabelecimento da sanção penal é uma operação lógica pautada pelo principio da individualização da pena e do dever de motivação das decisões judiciais.” (STJ. HC 73470)
Essa é uma lição elementar que todos já tiveram, mas que muitos a esquecem quando se decidem pela aplicação da pena, razão pela qual, repito, temos modificado tantas decisões, sempre em favor do acusado, sobretudo, repito, em face de os recursos serem manejados quase sempre pela defesa.
Ainda que admitamos, com sói ocorrer, o caráter criador das decisões judiciais, não se pode deslembrar, reitero, do caráter vinculado da criatividade do juiz, que não pode, como se fosse num jogo de dados, decidir acerca da pena a ser aplicada, a qual, muito ao contrário, deve ser sempre concebida à luz do caso concreto, atento o togado, ademais, às suas singularidades.
A força argumentativa de uma decisão penal condenatória deve ir além da força criadora do Poder Legislativo (individualização legislativa), que fixa os parâmetros, que traçam os contornos, que fixa os mínimos e máximos, mas que não desobriga o julgador, sob qualquer perspectiva, de argumentar, fundamentadamente, as razões pelas quais fixou a pena nesse ou naquele quantum, decorrência lógica da vinculação da sua decisão aos preceitos legais, com realce para a Constituição Federal, que exige a fundamentação de todas as decisões judiciais, a partir da qual o réu poderá, numa outra perspectiva, exercer com maior amplitude a sua defesa.
O tipo penal delineia os parâmetros. Contudo, isoladamente, eles não são um passaporte para que o juiz fixe a pena sem qualquer fundamentação, à luz tão somente de suas intimas convicções, com frases do tipo “o crime é grave e exige resposta consentânea do estado”, ou do tipo “o réu almejava com o crime o lucro fácil”, o que, de rigor não dizem nada.
O magistrado, é ressabido, deve ir além, examinando com o máximo e inexcedível desvelo todos os elementos que digam respeito ao fato, para, só então, em face das diretrizes legais (cf. artigo 59 do CP), de forma justa e fundamentada, fixar a reprimenda que seja necessária e suficiente para reprovação do crime.
A caminho da barbárie
Voltaire dizia que a tolerância nunca provocou guerras civis, nem cobriu a terra de morticínio. Mas, nos dias presentes, com tanta violência, com tantos desvios de conduta, convenhamos, está difícil ser tolerante. Os tempos são outros. Vivemos dias de quase escuridão, de descrença, de desamor. Não é possível ser tolerante com a criminalidade que nos constrange a todos, com a impunidade e o enriquecimento ilícito.
É abominável, execrável, digno do mais efusivo repúdio a cara de pau de quem enriquece com o dinheiro público, enquanto se nega a esse mesmo público o direito à saúde, à educação e à segurança.
O povo, descrente, vê diante dos olhos uma situação de degradação moral das instituições. Ninguém acredita em mais ninguém. Ninguém acredita mais em promessas.
Estamos todos cansados de tudo que está aí. Por isso mesmo é que tudo é motivo de revolta, de reação.
Ninguém acredita mais em conversa fiada. O povo cansou. Todos cansamos. Tudo agora é motivo de revolta.
Foram-se a sensatez e a prudência. Só não vê quem não quer. Basta ouvir os que as pessoas mais humildes têm a dizer de nós todos que estamos no poder.
Para o povo somos todos iguais; somos todos farinha do mesmo saco. Ele, povo, de tanta desilusão, não vê mais exceção, radicalizou.
A verdade é que ninguém vê mais nos olhos do vizinho um irmão.
Como diz Edilson Mougenot, somos mais sozinhos que vizinhos, mais solitários que solidários.
E por aí vamos, todos na mesma direção, no caminho que nos leva à descrença.
Tudo no mundo de hoje é competição. É tudo uma mescla de podridão com degradação.
Diante desse quadro de quase descalabro, o povo se revolta e faz justiça com as próprias mãos, sempre que for possível, pois se sente desestimulado de viver num país no qual vivemos sempre de expectativa do que virá amanhã; de uma amanhã que nunca chega.
A reação do povo, a sua revolta tem se traduzido na vingança privada. Tem acontecido aqui e algures, como têm noticiado os jornais.
Essa situação de absoluto descalabro, é um reflexo das nossas mazelas, da falta de educação e de inação das agências persecutórias, que têm o olhos voltados apenas para pequena criminalidade – e mesmo assim de forma deficiente – , que prende sem pena e sem dó o miserável, mas é incapaz de agir, com a mesma sofreguidão, quando se trata de um bem aquinhoado.
A verdade é que o povo já não tem nenhum apreço pela ação do Estado.
O transgressor contumaz
Convivendo com o semelhante, chega-se à conclusão – elementar, sublinho – de que há pessoas que se julgam capazes de discernir as coisas melhor que as outras, de compreender os fatos melhor que ninguém, de ser mais espertas que o vizinho ou mais vivazes que o colega de profissão – julgam-se, enfim, mais atiladas, mais sagazes; mais tudo, enfim. Assim pensando, vão armando, aprontando, achacando, extorquindo, vilipendiando – dentre outras ações igualmente nocivas.
E os outros, aos seus olhos? Bem, os outros são, para elas, uns simplórios, ingênuos, bobalhões. Espertas, inteligentes e sagazes mesmo, só elas.
Convictos, cientes de sua sagacidade, os trapaceiros vão vivendo e tirando proveito das facilidades que, muitas vezes, só o exercício do poder pode proporcionar. Inicialmente, uma sacanagemzinha aqui; uma bandalha acolá. Em princípio, timidamente, até perder, de vez, o pejo, o recato.
A partir de um certo momento, passam a agir às escâncaras, à vista de todos, como o faz o mais abjeto, o mais reles batedor de carteira (punguista). De tão sôfregos e mal-acostumados, os trânsfugas, os desertores, os detratores da moralidade, já não se intimidam com a luz do dia. Nem a condenação que cintila nos olhos do próximo e nem mesmo a indignação moral deste arrefecem o seu ímpeto, a sua volúpia para a transgressão.
De forma incontrolável – vorazes, sedentos, ignóbeis, desmedidos e destemidos -, chegam, enfim e inevitavelmente, à concussão, estágio mais avançado da degradação moral de um agente público.
O enriquecimento ilícito desses bandidos travestidos de autoridades, agora, é apenas uma consequência. E com a fortuna amealhada afloram, inelutavelmente – inicialmente à sorrelfa e, depois, sem disfarce -, o esnobismo, a jactância, o ar de superioridade. Concomitantemente e com a mesma sofreguidão, consolida-se na personalidade do calhorda, como conseqüência irrefragável, o desprezo pelas instituições e, até, pelos colegas de profissão, máxime se não comungam de suas trapaças e se pensam e agem de maneira diametralmente oposta.
Essas pessoas, os antigos diziam, são capazes de dar nó em trilho. E vão aprontando, amealhando um naco aqui, colacionando um fragmento acolá, consolidando, enfim, a fortuna material almejada, vivendo nababescamente, debochando do semelhante, jactando-se em face das transgressões que protagoniza, contudo, destituídas de qualquer qualidade moral.
A contumácia no transgredir, a constatação de conseguir se esquivar de qualquer ação tendente a obstar a sua ação, obnublina a sua mente, não lhe deixando perceber que o cerco vai se fechando. Quando, finalmente, acordam para a realidade, estão algemados e desmoralizados, sem condições de olhar nos olhos dos seus filhos.
Esses espertalhões são como uma infantaria, confinada numa área de conflagração, à espera do momento de atacar e sobrepujar o inimigo. Os seus integrantes, cegos, em face da soberba que lhes seduz a alma, confiantes na vitória, na sua superioridade, em razão da convicção que sedimentaram de que são mais adestrados e mais bem preparados que o inimigo, ao olharem para o céu, com aparente desdém, imaginam estar vendo andorinhas e permanecem inertes. Todavia, para sua surpresa, são os inimigos que se aproximam. E quando, finalmente, tentam se posicionar para o confronto, é tarde demais: os seus componentes são abatidos e dominados, muito mais em face de sua soberba, de sua prepotência, que em decorrência do adestramento do inimigo.
Esse artigo é um chamado à reflexão, tendo em vista que, deste meu ponto de observação, muito antes do que imaginam, os espertalhões podem ser flagrados. E, nessa hora, quando se derem conta de que não são andorinhas em evolução, mas as instâncias persecutórias do Estado fechando o cerco em sua direção, já sucumbiram diante delas, como se deu como a infantaria ofuscada pela arrogância. Aí, só resta lamentar a perda do cargo e a prisão concomitante.
Estaria o cronista sonhando? Penso que não. Não custa esperar. A ignomínia e a degradação moral não podem prevalecer sempre.
DISCRICIONARIEDADE VINCULADA
Tem sido uma quase rotina: em quase todas as apelações a defesa questiona, prevalentemente, a (falta de) fundamentação da qual resultou a fixação da pena ou a fundamentação gestada com termos que retratam a próprio tipicidade, tipo “o réu agiu com violência e emprego de arma”, no caso do crime de roubo, por exemplo.
De nossa parte, no segundo grau, temos sido compelidos, em tributo à Carta Magna, a dar provimento às apelações, com a consequente modificação das penas, quase sempre em favor do acusado e em detrimento do interesse público e da sociedade, que, como já consignei em artigo anterior, deve, sim ser protegida pelos órgãos de controle; proteção que, inobstante, não se faz ao arrepio da lei, que não se faz a qualquer custo, vilipendiando, malferindo o direito dos réus.
Os magistrados, lamentável dizer – sem deslembrar das exceções -, no trabalho de individualização da pena, olvidam-se que a discricionariedade na aplicação da pena é vinculada e que essa operação mental só pode ser controlada, evitando-se que descambe para o arbítrio, que seria a negação do próprio Estado de Direito, se for devidamente fundamentada, por força do que contempla a nossa Carta Magna, como, de resto, é do conhecimento de todos os operadores do Direito.
Para nós – julgadores do segundo grau, em particular, e para sociedade em geral – essa é uma situação grave, porque dela resulta que as penas terminam por ser fixadas aquém da resposta penal que deveria ser infligida, em vista da quadra fática delineada, com o que se afronta o principio da proporcionalidade, sabido que a resposta penal deve ser a suficiente à reprovação do delito e, noutra giro, para a prevenção de novas infrações penais.
O mais grave, nessa constatação, é que o órgão acusador só excepcionalmente recorre das decisões de primeiro grau, ainda que sejam flagrantes os equívocos operados na dosimetria da pena, o que, evidentemente, impossibilita que, em sede recursal, a pena seja revista em desfavor do acusado, que, assim, vai se beneficiando, a mais não poder, da fundamentação descuidada na aplicação da pena, disse inferindo-se ofensa aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, como antecipei acima, pois as penas terminam ficando, quase sempre, em patamares inferiores ao recomendável em face da ação reprochável.
Disso decorre que, aplicada a pena, inferior a necessária à reprovação do delito, introduz-se no espírito da população, já calejada e descrente de tudo, à toda evidencia, um malsã sentimento de impunidade que, temos constatado, pode fomentar – e tem fomentado, aqui e algures – o exercício da justiça com as próprias mãos, própria das sociedades primitivas ou nas quais o Estado não se mostra merecedor da sua confiança.
O legislador, todos sabem, estabelece, abstratamente, os limites mínimos e máximos para os delitos. O juiz trafega dentro desses limites, elegendo o quantum ideal, valendo-se, claro, do seu livre convencimento. Mas não deve fazê-lo de forma arbitrária, desmotivadamente, como tem ocorrido, infelizmente, com regular frequência, impingindo às decisões máculas que devem ser expungidas no juízo recursal, em tributo mesmo ao Estado de Direito, e ante a certeza de que o réu, antes de ser objeto, é sujeito de direito, ou de que se as coisas têm preço, o ser humano, ainda que acusado da prática de um crime, tem dignidade, e sob essa perspectiva deve ser tratado.
O juiz, conquanto tenha uma margem de liberdade para fixação da pena ao autor de um crime, está preso, além dos parâmetros estabelecidos no preceito secundário do tipo penal malferido, à vinculação da sua decisão, sabido que, em face da individualização judiciária da sanção penal, está-se diante de uma discricionariedade que é vinculada (Luiz Luisi).
É dizer: o juiz não trafega entre o mínimo e o máximo da pena de acordo com seu bom ou mau humor, de acordo com os seus sentimentos pessoais, com a sua formação moral, com as suas pré-compreensões, com os valores que eventualmente tenham sido incorporados em sua personalidade. Não. O juiz, longe disso, está vinculado a uma obrigação que não comporta tergiversação, isto é, tem que motivar a sua decisão, tem que dizer porque decidiu-se pela pena além do mínimo legal ou porque decidiu-se, no mesmo passo, por regime mais gravoso para início de cumprimento da pena.
O juiz, todos sabem, ou deveriam saber e lembrar, não pode fixar uma pena além do mínimo legal, um dia sequer, ainda que o faça dentro dos limites mínimo e máximo fixados pelo legislador, se não o fizer motivadamente, afinal, “o estabelecimento da sanção penal é uma operação lógica pautada pelo principio da individualização da pena e do dever de motivação das decisões judiciais.” (STJ. HC 73470)
Essa é uma lição elementar que todos já tiveram mas que muitos se esquecem quando se decidem pela aplicação da pena, razão pela qual, repito, temos modificado tantas decisões, sempre em favor do acusado, sobretudo, repito, em face de os recursos serem manejados, quase sempre, pela defesa, a impedir as revisões das decisões em favor da sociedade, em face do impeditivo do ne reformatio in pejus.
Ainda que admitamos, com sói ocorrer, o caráter criador das decisões judiciais, coeficiente criador muitas vezes até irracional, não se pode deslembrar, ainda o que o faço à exaustão, do caráter vinculado da criatividade do juiz, que não pode, como se fosse num jogo de dados, decidir acerca da pena a ser aplicada, a qual, muito ao contrário, deve ser, sempre, concebida à luz do caso concreto, atento o togado, ademais, às suas singularidades.
A força argumentativa de uma decisão penal condenatória deve ir além da força criadora do Poder Legislativo (individualização legislativa), que fixa os parâmetros, que traçam os contornos, que fixa os mínimos e máximos, mas que não desobriga o julgador, sob qualquer perspectiva, de argumentar, fundamentadamente, as razões pelas quais fixou a pena nesse ou naquele quantum, decorrência lógica da vinculação da sua decisão aos preceitos legais, com realce para a Constituição Federal, que exige, como sabemos, a fundamentação de todas as decisões judiciais, a partir da qual o réu poderá, numa outra perspectiva, exercer com maior amplitude a sua defesa.
O tipo penal delineia os parâmetros. Mas esses parâmetros, isoladamente, não são um passaporte para que o juiz fixe a pena sem qualquer fundamentação, à luz tão somente de suas intimas convicções, com frases do tipo “o crime é grave exige resposta consentânea do estado” ou do tipo “o réu almejava com o crime o lucro fácil”, que, de rigor não dizem nada, ou melhor, apenas traduzem o que já contemplado no tipo penal, daí que o magistrado, ao reverso, deve, ir além, examinando, com o máximo e inexcedível desvelo, todos os elementos que digam respeito ao fato, para, só então, em face das diretrizes legais (cf. artigo 59 do CP), de forma justa e fundamentada, fixar a reprimenda que seja necessária e suficiente para reprovação do crime, estando, nesse sentido, desautorizado a valer-se de expressões “vagas, genéricas, desprovidas de fundamentação objetiva para justificar a exasperação” (STJ, HC 81949), como tem ocorrido, repetidas vezes, lamentavelmente.
Não se deve iludir o povo com falsas pregações
Todos têm conhecimento das tentativas de flexibilização do Estatuto do Desarmamento que estão em curso no Congresso Nacional, sob o argumento, dentre outros, de que, em face do quadro de violência que se descortina sob os nossos olhos, o prudente, o correto mesmo é armar a população para que ela, pelos seus próprios meios, cuide de sua defesa, o que, adianto, é um rematado equívoco, como demonstrarei a seguir, o fazendo apenas sob uma perspectiva, já que é inviável, num pequeno espaço, esgrimir todas as razões pelas quais entendo que não se deva armar a população.
Antes convém anotar que nos Estados Unidos, maior democracia do mundo, país onde as desigualdades sociais são infinitamente inferiores ao Brasil e onde o Estado se faz presente na vida do cidadão com muito mais proficiência, o presidente Barack Obama lidera um movimento, no seu último ano de governo, visando exatamente o oposto do que se pretende no Brasil, ou seja, ampliar ainda mais o controle sobre a venda de armas.
O controle, no caso americano, busca, precipuamente, a ampliação das exigências de licença para vendedores e maiores exigências para os compradores, o que pode parecer, numa primeira análise, um contra-senso, num país cuja Constituição garante a todos os cidadãos o direito de ter armas.
Mas eu antecipei acima que armar a população, desde a minha percepção, fruto da minha longa experiência na área criminal, quer como promotor de justiça, quer como magistrado, não é o caminho, não é a panacéia que alguns oportunistas tentam vender aos descrentes e ávidos pela solução mágica dos seus problemas, sobretudo no que diz respeito à violência.
A verdade é que o cidadão armado pode, até, se sentir confortável psicologicamente, imaginando poder, estando de posse de uma arma de fogo, reagir com eficácia em face de uma agressão iminente ou atual a bem jurídico seu ou de outrem, o que, desde o meu ponto de observação, é uma visão equivocada, de quem conhece minimamente os abalos psicológicos que decorrem de um quadro dessa envergadura.
Explico.
Quando se trata de criminalidade, de violência, enfim, há alguns aspectos – não exaustivamente esgrimidos nessas breves reflexões – que não podem ser descurados quando se projeta, por exemplo, a perspectiva de flexibilizar o uso de arma de fogo, daí a minha convicção de que é falsa a pregação de que, estando armado, tal qual o meliante, o cidadão de bem terá reais condições de por si só enfrentar a violência, suprindo, assim, a omissão do Estado.
As coisas não são tão simples assim. Quando se busca analisar questões desse jaez, não se pode perder de vista aspectos relevantes que estão em seu entorno, questões que subjazem e que são propositadamente esquecidas, mas que não podem ser abespinhadas, porque vão muito além dos interesses puramente comerciais.
É que, diferente do assaltante, para destacar o crime (roubo) que mais nos aflige no dia a dia, nenhum cidadão de bem sai de casa disposto a matar ou morrer; e isso faz toda a diferença no momento da ação e da reação.
Nos corações e mentes do cidadão de bem, daquele que sai, por exemplo, para levar seu filho à escola, não está sedimentado o sentimento de defesa ou de ataque, para os quais devemos estar preparados psicologicamente. É como, guardadas as particularidades, colocar um soldado no campo de batalha sem ter sido antes treinado para a guerra.
É bobagem, falácia, engodo, irresponsabilidade armar a população para uma guerra para a qual ela não está preparada.
Não é dessa forma, definitivamente, que se enfrenta a violência.
É preciso parar de enganar as pessoas.
Armar a população, definitivamente, não é a solução. É muito bom para o comércio de armas. Mas é péssimo para o cidadão, que, mais uma vez, está-se deixando levar por uma propaganda enganosa, suscetível que está em face da violência que bate à sua porta.
É necessário ter presente que quem sai para assaltar, com emprego de arma fogo, por exemplo, o faz disposto a matar ou morrer, o que, convenhamos, é muito, mas muito diferente mesmo, de quem sai para trabalhar, para levar a mãe ou o pai ao médico ou o filho para escola.
Esse estado psicológico, não nos iludamos, faz toda diferença. Por isso é relevante que se pense essas questões antes de se liberar o uso de arma.
Nenhum de nós, como regra, está preparado para reagir a um assalto, por isso a quase totalidade dos que reagem sucumbe.
Definitivamente, quem tem que se armar contra o crime não é o cidadão. Quem deve se arma e combater a criminalidade é o Estado. Amar a população é o mesmo que iludi-la, transferir a ela uma responsabilidade que não é sua.
Experimente, estando armado, a reagir a um assalto. Enquanto tendemos a nos acovardar, diante de um criminoso, também armado, mas desenvolto porque preparado psicologicamente para o embate, ele, de seu turno, tende a agir, como sói ocorrer, com frieza e discernimento diante da situação.
É claro que, na população, há exceções. Há, sim, os que estão preparados para o exercício da autodefesa. Mas são exceções que confirmam a regra.
Por tudo isso, armar a população é um despautério, uma irresponsabilidade. É, mais uma vez, iludi-la, dando a ela a falsa percepção de poder exercer a sua defesa física em face da criminalidade, o que só ocorre excepcionalmente, daí o sentido da obrigação afeta ao Estado de cuidar da nossa integridade física.
É preciso assumir posições com clareza
Uma das maiores dificuldades que vislumbro nas relações que travamos com o semelhante, sejam colegas, amigos, filhos ou mesmo consorte, são as incompreensões, a nossa incapacidade de compreender e de ser compreendidos.
Nesse cenário, não é rara uma desinteligência em face de uma incompreensão, que pode, dependendo da relevância, levar a relação ao paroxismo, disso resultando a reafirmação do óbvio, ou seja, de que, nas nossas relações precisamos ser tolerantes e compreensíveis.
A verdade é que, fácil constatar, as pessoas não conseguem, definitivamente, compreender as outras – por má-fé, maldade ou incapacidade mesmo, incapacidade que, desde o meu olhar, é muito mais significativa quando se tratam das relações que se travam no âmbito das corporações, porque nelas parece não existir predisposição para a compreensão.
Mas as incompreensões, nessa perspectiva, são, até, irrelevantes, se levarmos em conta que, nessas mesmas agremiações, ao lado delas (das incompreensões), competindo com a mesma tenacidade, viceja, com efeitos muito mais danosos, o mais deletério e nefasto de todos os sentimentos que é a inveja, sentimento menor que, claro, só impregna a alma despossuída de amor e de senso de companheirismo, mas que não é objeto dessas reflexões, pois que sobre ela já refleti em outras oportunidades.
Todavia não custa reafirmar, por ser oportuno, que a incompreensão, desde o meu campo de observação, decorre da cegueira de algumas pessoas, exatamente porque impregnadas desse sentimento menor e danoso chamado inveja, que tantos malefícios trazem às relações e ao desenvolvimento dos próprios trabalhos dos que se predispõem a entrar nessa luta fratricida de disputa de egos.
Mas eu dizia que as pessoas têm uma proverbial “incapacidade” de compreender o semelhante, cuja incompreensão, muitas vezes, decorre mesmo das tentativas do próprio interlocutor de dificultar o entendimento, por interesses muitas vezes inconfessáveis, como se faz, por exemplo, no mundo da política, quando se diz uma coisa pretendendo dizer outra, exatamente para dificultar a compreensão, para não assumir compromisso, para não ser cobrado depois.
O certo e recerto é que, nas relações que desenvolvemos com o semelhante em sociedade, o ideal mesmo era que não se tergiversasse, que se falasse às claras, sem titubeio, sem meias palavras, objetivamente, claramente, de modo que todos entendessem a mensagem que se pretende seja assimilada.
Se é verdade, como antecipei algures, que temos dificuldades enormes de compreender o semelhante – e aqui me refiro aos que não fazem do subterfúgio uma arma -, maiores serão as dificuldades se o semelhante é daqueles de personalidade marcadamente dissimulada, que não dizem coisa com coisa, que afirmam negando e que negam afirmando, o fazendo por via obliqua, sinuosamente, sem expor com clareza as suas ideais, objetivando exatamente confundir, dificultar a absorção da mensagem, com receio do compromisso, de empenhar a palavra.
Só para ilustrar, lembro que, antes da desfecho da revolução de 30, Getúlio Vargas, aluno dileto da escola do caudilho Borges de Medeiros, dissimuladamente, fazia juras de fidelidade eterna a Washington Luis, então presidente da República, de quem tinha sido ministro da fazenda, enquanto que João Neves, por sua determinação, por trás, prosseguia costurando a aproximação com Minas Gerais, dificultando, assim, a real compreensão de sua posição política, que só terminou por se revelar com o desfecho da Revolução que o levou à presidência da República, cumprindo destacar que, quando insinuado o flerte com Minas, João Neves se limitou a dizer que o Rio Grande tinha olhos para todos os lados, à direita e à esquerda, como o fazem os jacarés.
Quando sondado por Chatô sobre a possibilidade de um candidato do Rio Grande do Sul, terceira força eleitoral do país à época, para se contrapor ao candidato de Washington Luis, no caso Júlio Prestes, Getúlio encarregou o oficial de gabinete a providenciar uma resposta imediata. Mas advertiu: era preciso mostrar-se receptivo à ideia de um acordo com Minas, para não denotar desprezo pelo caso, mas também seria temerário demonstrar entusiasmo excessivo, afim de não transparecer avidez pessoal. É dizer: era preciso, segundo orientação de Getúlio, não se fazer entender, não ser compreendido, pois, afinal, no mundo da política, o que, muitas vezes, é até justificável, é assim mesmo que as coisas funcionam.
Mas no mundo do simples mortais as coisas deveriam fluir de outra forma. É preciso ter clareza nas ideais. É preciso ter ciência que nas relações pessoais não se pode viver de tergiversações, de aparências, a partir de frases dúbias, feitas para não ser entendidas, pois isso pode denotar uma esperteza que não se coaduna com o que se espera nas relações das pessoas que se amam e que se prezam.
É chato, é horrível, enfadonho, desgastante, a gente conviver com o semelhante sem perceber nele clareza de posições, objetividade nas colocações, firmeza e determinação, capacidade, enfim, de se fazer compreender.
Tenho procurado ser claro, objetivo e direto nas minhas reflexões. O mundo já não comporta tanta dissimulação. Ninguém gosta do dissimulado, do que não tem posição, de quem não se pode crer no que diz.