A BESTA HUMANA SE REVELA

 

No romance A Besta Humana, de Emile Zola, o protagonista, Jacques Lantier, vive atormentado pelo desejo de matar as mulheres com as quais se relaciona.  Essa perversão, esse desejo, contido, algumas vezes, com muita dificuldade – e que constituem os momentos mais tensos e eletrizantes do livro  – não são, obviamente, do conhecimento dessas pessoas.

O romance referido trata, portanto, do caso típico de pessoa – no caso um maquinista respeitado e sedutor – que se relaciona com os semelhantes com aparente normalidade, sem que estes se deem conta da sua perigosidade, sem que sequer imaginem o perigo que permeia a relação.

No filme Dormindo com o inimigo, protagonizado por Julia Roberts, Martin Burney é um homem de boa aparência, bem sucedido e sedutor, que a princípio parece ser o homem que Laura (personagem de Júlia Roberts) sempre quis ter. Ocorreu, entretanto, que após o casamento, ele se mostrou um marido ciumento, compulsivo e violento. A conduta de Martin atormenta a esposa a ponto de esta, determinado dia, quando velejavam durante uma tempestade, aproveitar a oportunidade para simular o seu afogamento, para, com isso, desaparecer da vida dele.

Apanho, ao acaso, as duas obras em eferência, do cinema e da literatura – ambas símbolos das minhas paixões – apenas para reafirmar aquilo que não é mais que uma obviedade, ou seja, que convivemos com pessoas muitos próximas, às vezes dividindo o mesmo leito, sem que as conheçamos de fato. São verdadeiras bestas humanas – para usar o título da obra monumental de Zola – capazes de um desatino, a qualquer momento.

A outra obviedade que decorre das obras em comento é que, verdadeiramente, só conhecemos o ser humano quando convivemos mais amiúde com ele, pois não são poucos os que só revelam a sua personalidade (a besta que há dentro dele), passados longos anos de convivência.

Nos ambientes que favoreçam a reunião de pessoas diferentes tem de tudo. As bestas humanas neles habitam, se manifestando das mais variadas formas. Tem as persuasivas, as dispersivas, as arrogantes, as que se julgam donas da verdade, as que não respeitam a posição dos colegas, as que não gostam de ser contrariadas, as que se julgam superiores,  as que detestam ter os seus argumentos confrontados, situações que, de rigor, não deveriam surpreender, pois, afinal, o ser humano existe mesmo é para surpreender,

Somos assim! Paradoxalmente, da mesma forma que julgamos, precipitada e equivocadamente, quem não conhecemos, somos surpreendidos quando nos defrontamos com o verdadeiro perfil psicológico de pessoas que imaginamos conhecer muito bem. Daí por que não devemos nos iludir com as aparências, com as falsas cortesias, com os abraços que são disfarces, com o sorriso que não passa de dissimulação, com o beijo que não traduz o verdadeiro sentimento, situações que, todos haverão de concordar, permeiam a convivência do ser humano em sociedade.

A verdade é que ninguém, pelo menos ao primeiro contato, se mostra por inteiro. As circunstâncias, às vezes, nos impõem uma conduta que não retrata o que somos ou pensamos, como se pode inferir dos trechos de uma carta enviada a Deus, por Celie, protagonista do romance A cor púrpura, de Alice Walker, na qual ela confessa: “Todo mundo fala do tanto queu sou boa pros filho do Sinhô___. Eu sou boa pra eles. Mas eu num sinto nada por eles. Fazer carinho nas costa do Harpo num é nem como acarinhar as costa de um cãozinho. É mais como acarinhar um pedaço de madeira. Não uma árvore que vive, mas uma mesa, um guarda-roupa. De toda maneira, eles também num gostam de mim, por melhor queu seja.”

O ser humano – tento, aqui e agora, refletir sobre a questão, sem nenhum conhecimento teórico, à luz apenas da minha experiência de vida e profissional, quer como promotor de justiça, quer como magistrado – não cansa mesmo de surpreender. Por isso, tenho dito que ele pode ser, ao mesmo tempo, o pior e/ou o melhor animal sobre a terra, em face mesmo de sua capacidade de dissimular, de escamotear, de fingir, de apunhalar o igual pelas costas, de abraçar, beijar, ainda que o seu desejo mesmo seja de escarrar no rosto de quem elegeu como desafeto. Nenhum outro animal é capaz de agir assim.

Há sempre no recôndito da alma de alguém algo desconhecido, um lugarzinho impenetrável, imperturbável que guarda só pra si, até o dia em que aflora, de súbito, surpreendendo as pessoas que estão em seu entorno, revelando, por inteiro, a besta humana que sempre foi.

MORALMENTE CONDENADOS

 

Não se pode negar. Em todos os lugares, em todas as corporações, em todas as instituições, onde houver gente, enfim, haverá sempre os que não têm boa conduta, embora sejam minoria, felizmente.

No Poder Judiciário não podia ser diferente, como diferente não é nos demais Poderes, conquanto se tenha a impressão de que o Poder Legislativo concentre o maior numero de autores de condutas desviantes, que pode ocorrer, sim, porque os políticos são sempre os mais expostos e têm sempre um desafeto a lhe infernizar a vida.

Na nossa corporação, como em qualquer outra, é muito provável que convivamos, sim, com malfeitores, ou seja, com os que não se comportam com dignidade, cuja conduta termina por jogar lama em toda instituição, atingindo todos os seus membros mesmo os de conduta ilibada.

E quando falo em comportamento indigno eu não me refiro apenas aos que recebem propinas, aos que vendem suas decisões, aos que mercadejam o direito do jurisdicionado, auferindo vantagens materiais.

Refiro-me, ademais, aos que traficam influência, descarada e acintosamente, ou seja, os que usam o poder sem escrúpulos, os que, nessa faina, não se constrangem em fazer mercancia com o direito de uns para servir aos amigos, exorbitando, abusando do poder, sem se importarem com o mal que possam estar fazendo ao semelhante; semelhante não tão semelhante assim, pois que a maioria, desprotegida, não tem a quem apelar, sendo vitimada pela ação nefasta de quem, com poder, não se impõe limites.

O que alivia e conforta, em face da constatação acima, é que, conquanto muitos dos malfeitores incrustados nos Poderes não sejam flagrados e desmascarados, e que, por isso, persistam formalmente impunes em face de sua sanha criminosa, eles não passam ao largo da condenação moral, do julgamento popular e de seus próprios pares, pois, afinal, todos cometam essas más ações, todos falam, todos cochicham, todos condenam o tráfico de influência, todos condenam, por exemplo, os sinais exteriores de riqueza, todos se  agastam com a vida esnobe que uns levam, incompatível com os ganhos consignados nos seus holerites.

A verdade é que ninguém é tolo a ponto de não perceber que uns poucos parecem sempre estar podendo mais do que os seus iguais, os quais, de rigor, estão na mesma posição dentro da pirâmide social, daí a estupefação, a condenação moral a que são submetidos, conquanto consigam passam à ilharga das ações dos órgãos persecutórios.

Com efeito, embora se imaginem imunes às ações das agências de controle – judicial e/ou administrativa – porque, afinal, todos sabem, em face dessas condutas desviadas, raramente os seus autores são punidos exemplarmente, é bom que sejam lembrados de que, por onde passam, são julgados moralmente pelo cidadão de bem, pois todos comentam, todos têm uma história pra contar a desabonar-lhes a conduta, todas destacam uma falcatrua protagonizada por um malfeitor; não passam, portanto, incólumes do julgamento popular, pois sempre haverá quem ouviu falar ou mesmo tenha testemunhado uma ação marginal, a qual, por ser marginal (a ação), não chega, formalmente, ao conhecimento das instâncias de controle.

É bobagem, portanto, achar que as bandalhas que protagonizam os malfeitores passam à margem da condenação pública. Ninguém faz nada escondido nos dias atuais. Os corruptores, não se iludam, são os primeiros a comentar os desvios de conduta, pelo prazer de desmoralizar, ou mesmo para contar vantagem, para demonstrar estar podendo.

Nesse sentido, eles, os de condutas heterodoxas, podem até imaginar estar agindo às escondidas – nas sombras, sorrateiramente, como o fazem os assaltantes que agem na calada da noite, em lugar ermo, furtivamente, sem se dar conta de que pode estar sendo flagrado por uma câmera qualquer -, mas suas falcatruas, na verdade, já caíram – ou cairão, mais dias, menos dias – no domínio público, por isso eles já receberam a condenação moral que mereciam, pouco importando as aparências, as falsas pregações que façam no afã de iludir os incautos.

A verdade é que, ainda que não sejam desmascarados publicamente, eles não passam, não passarão incólumes do julgamento moral; este é inevitável, inapelável, não falhará, pois, como disse acima, essas ações malsãs são comentadas em todas as rodas, em todos os lugares, aonde há gente reunida, tudo furtivamente, na base do cochicho, como convém, pois, afinal, ninguém, por mais inconsequente que seja, ousará fazer uma denúncia formal sem provas.

Faço esse desabafo porque me agasta as notícias sobre corrupção envolvendo homens públicos, sem que se apontem os nomes dos malfeitores, disso resultando que todos nós, indistintamente, ficamos sob suspeita, ainda que se saiba que os desvios de conduta entre nós estão restritos a uma minoria; minoria que, no entanto, com a sua ação malfazeja, se encarrega de aspergir nódoa  sobre todos nós, a manchar a nossa história de vida, a nossa luta, o nome que construimos.

ENQUANTO ISSO A VIDA LÁ FORA, IMPÁVIDA, DESFILAVA

 

Muito jovem, na adolescência, vi, com agastamento natural, a vida (sentido lúdico) lá fora desfilando, impávida, arrogante e prepotente em face daqueles que, como eu, não tinham condições materiais de participar, minimamente, da festa por ela patrocinada, compelido que fui a conviver apenas com as “sobras” do que ela oferecia, decorrência natural das dificuldades materiais pelas quais passei, sem me sentir tentado a praticar nenhum desatino, como fazem muitos jovens nos dias de hoje, quando decidem, por exemplo, pela prática de um assalto, para compartilhar dos bens de consumo aos quais não têm acesso.

A verdade é que, na sua ação discriminadora, pelos mais diversos motivos, a vida desfilava intrépida – como desfila até hoje para muitos –, diante dos meus olhos e de muitos que se encontravam na mesma situação que eu, só oferecendo os seus prazeres – plenamente, despudoradamente – a uma minoria, com a mesma arrogância e prepotência com que negava a muitos – como, de resto, nega até hoje – o direito de vivê-la com igualdade de condições, como era de se esperar numa sociedade que pretendemos justa.

É verdade sabida que ser jovem é muito diferente de ser adulto. Daí que, quando jovem, numa visão equivocada e egocêntrica, a gente pensa que tudo tem que ser para hoje, como se não houvesse amanhã, razão pela qual muitos, como eu, se incomodavam com a vida que se vivia lá fora, alijados, perplexos e, de certa forma, inconformados por não poder participar da festa promovida para uns poucos.

Nesse panorama, estar – ou sentir-se – marginalizado, colocado de lado em face da festa que é viver (sempre no sentido amplo), para os jovens, sobretudo nos dias presentes, bombardeados pelas propagandas que são veiculadas, ad nauseam, nos veículos de comunicação e nas mídias sociais, às quais quase todos têm acesso, pode ser decisivo quanto a atitude a ser adotada doravante – muitos infletindo para a marginalidade –, sobretudo se falham – e eles quase sempre falham – as instâncias de controle, com especial destaque para a família.

Para os adultos, calejados pela vida, já tendo testemunhado as injustiças do mundo e já tendo vivido o suficiente para compreender que só para uns poucos a vida reserva o melhor quinhão, alijando, no mesmo passo, a grande maioria, para a qual nega quase tudo – saúde pública educação de qualidade, e moradia decente, etc –, contemplar a “festa” que a vida promove, sem dela participar, pode ser, a essas alturas do campeonato, pura bobagem, algo indiferente. Muitos, como eu, são cientes de que viver a vida intensamente não se resume aos prazeres do mundo exterior, os quais podemos encontrar, o quanto basta, no ambiente familiar, afinal o lar é onde ocorre a absolvição das lides da vida, lugar onde a gente se despe, muda de pele, tira todos os uniformes que vestiu e os trajes em que se enfiou, onde a gente se desvencilha de todas as feridas e ressentimentos (Casei com um comunista, de Philip Roth).

Para os jovens, entretanto, com os hormônios em ebulição, à flor da pele, a impossibilidade de participar ativamente das festas que a vida promove, pode ser arrebatadora, definitiva, inibidora, preocupante, desanimadora, porque ele pensa, por falta-lhe a exata percepção do que é a vida e seus desdobramentos, que viver se resume aos prazeres que se apresentam agora, o que é próprio da juventude, que imagina que uma oportunidade perdida não se recupera.

Envelhecer, como se vê, também tem as suas vantagens. Quando se é jovem – é claro que estou falando a partir da minha visão de mundo –, é doído ver a vida lá fora desfilando, como muitas vezes vi, sem poder dela participar, daí o sentimento aflitivo, e as vezes incontido, de alijamento, discriminação, impotência, abespinhamento, visão que resulta definitivamente mitigada e arrefecida – quando não expungida – em face do tempo vivido e da experiência acumulada.

Eu testemunhei, sim, muito jovem ainda, da janela entreaberta, a vida lá fora desfilando, impávida (Mia Couto, em Um rio chamado tempo; uma casa chamada terra), sem que tivesse condições de participar da festa, quando incontida era a minha vontade de viver e compartilhar com meus colegas das noites que eles curtiam e sobre as quais eu só ouvia os comentários do dia seguinte, exacerbando a minha inquietação e a minha angústia.

Hoje, cá do meu lado, convivendo com as consequências da passagem inexorável do tempo, não me importo, como fazia na juventude, com a empáfia da vida que desfila lá fora. Se não chego a desprezá-la, posso dizer que a encaro com a mais absoluta naturalidade, quase indiferença. Não estou, na verdade, nem aí para a soberba da vida que se vive lá fora, pois prefiro, sim, ver a vida que desfila, humilde e acolhedora, no interior do meu apartamento, cercado das coisas que gosto, estimo e que me dão prazer.

SOBRE CARROS E PRISÕES

No Brasil, todos os dias, são emplacados milhares de carros novos; e os lançamentos se fazem a todo hora, seduzindo o público consumidor.

Nesse cenário, o estimulo ao consumo é uma constante, e não se vê providências no sentido de viabilizar o tráfego de veículos – nem nas cidades e nem nas estradas.  Persistindo a situação atual, vai chegar o dia no qual não vamos mais poder sair de carro, pois, logo, logo, nas médias e grandes cidades, ter-se-á que apelar, inicialmente, para o rodízio e, em seguida, para um transporte alternativo.

Vejo se multiplicar, por outro lado, com a mesma volúpia, a reclamar, da mesma forma, providências do Estado Administração, a prática de crimes, com inevitável implementação de prisões, provisórias ou definitivas.

Porque crimes vários são cometidos a toda hora, sobretudo os violentos, nunca se prendeu tanto no Brasil. Chegamos, assim, ao esgotamento do modelo. Mas não é colocando em liberdade perigosos meliantes que se resolve o problema.

A prisão, nos dias atuais, é bem de ver-se, ainda é uma amarga necessidade, por isso é que, goste-se ou não, prende-se muito, para o bem ou para o mal. Os presídios, por isso, estão esgotados, e as centrais de recolhimento provisório chegaram à exaustão.

Nesse panorama, depositam-se os presos nos cárceres, como se fossem artigos de segunda, brutalizando-os, desrespeitando a sua dignidade, emprestando-lhes tratamento desumano e degradante, sob os olhos contemplativos dos que, podendo, nada fazem.

O triste cenário salta aos olhos. Onde cabe um, colocam-se dois, três, quatros, sem as mínimas condições de higiene e saúde. E por aí vamos todos, açoitando, aviltando o ser humano no que ele tem de mais relevante que é a sua dignidade.

Com essas ações (ou inações) danosas, vamos traçando, moldando o perfil do criminoso do futuro, daquele que sairá da cadeia pior do que entrou: revoltado, aviltado, achincalhado, desrespeitado, aniquilado, brutalizado, espezinhado.

.E o Estado, o que esperar dele? Acho que pouco ou quase nada. O Estado, diante dessas e outras tantas questões relevantes, quase sempre se mantém inerte, alegando, em sua defesa, falta de recursos, os mesmos recursos que sobram para a corrupção, para o enriquecimento ilícito.

Nesse cenário, a violência grassa, ao tempo em que impunidade deseduca. E, diante desse quadro, a sociedade, indignada, nos cobra providências, pelo fato de sermos responsáveis pelas agências de controle. E nós temos que fazer a nossa parte, uma vez que o  Poder Judiciário, por seus agentes, não pode quedar-se inerte. Não podemos, simplesmente, colocar em liberdade um meliante, ao argumento de que não há vagas nos presídios, pois, afinal, garantismo penal tem limites, e o limite é a proteção da sociedade.

Que o réu será brutalizado pelo Estado quase não se tem dúvidas. Que a prisão provisória deveria ser evitada todos sabemos. Que a prisão é a última ratio da extrema ratio, temos ciência. Mas o que fazer diante da criminalidade crescente, se nos negam os outros instrumentos de controle? Fechar os olhos? Colocar todo mundo em liberdade, a pretexto de dar ao meliante o tratamento digno e humano que ele não dispensa à vitima, em face da omissão do Estado que não constrói presídios? Vamos exaltar a liberdade individual em detrimento da nossa própria liberdade, quase inviabilizada em face da violência que permeia a vida em sociedade?

Ao Estado não é dado o direito de promover arbitrariedades e por isso devemos condenar toda sorte de abuso. Mas disso resulta o xis da questão, já que ele, Estado, não pode dispensar proteção deficiente à sociedade, privilegiando o direito individual de um acusado, em detrimento das pessoas de bem, conquanto nos aflija – e refutamos, com veemência – o tratamento desumano e degradante a ele dispensado.

A verdade é que, nos dias de hoje, com a violência batendo à porta, e a impunidade estimulando a prática de crimes,  não se há que falar apenas de proteção negativa contra os abusos estatais. O Estado Democrático de Direito tem que cuidar de todos, deve expender esforços para proteger o cidadão de bem de toda sorte de agressão. E nessa faina, se for necessária a prisão, ela deverá ser implementada.

O Estado deve intervir tanto para evitar os abusos em face de um criminoso, quanto no sentido de combater a criminalidade, visando a proteção da sociedade. E do confronto desses dois interesses, deve optar pelo interesse social, conquanto não deva, sob qualquer pretexto, silenciar em face do desrespeito aos direitos humanos.

Contudo, o dilema persiste. E diante disso,, o juiz deve decidir, pois, se, por um lado, o Estado não pode se valer do ius puniendi para praticar arbitrariedades atentatórias aos princípios basilares da Constituição, por outro, no chamado Estado Democrático de Direito, tem o dever de proteção integral de todos os direitos, disso resultando o conflito que deve ser dirimido, entre o direito à liberdade de um meliante reconhecidamente perigoso e o interesse da sociedade em se ver protegida.

Portanto, assim como não se pode pura e simplesmente fechar as fábricas de veículos e nem proibir a sua venda porque as ruas e as estradas já não os suportam mais, não se deve deixar de prender porque as penitenciárias estão lotadas. Numa e noutra hipótese, espera-se do Estado providências no sentido de minimizar as consequências dos excessos.

COMO SUPORTAR TANTA REALIDADE

imagesÀs vezes me pego indagando como, nos dias atuais, suportar  tanta realidade, para usar uma expressão de T.S. Eliot (1888-1965), diante, sobretudo, da violência que se alastra e que faz de todos nós reféns de nós mesmos.

A propósito, numa das mais recentes sessões da Câmara Criminal,  fizemos, eu e meus pares, algumas reflexões acerca da violência que grassa na sociedade e em face da nossa situação de impotência diante do crime, que tirou de todos nós a nossa liberdade e o sagrado direito de ir e vir livremente, como, afinal, preconiza a nossa Constituição.

Essas reflexões vieram a propósito de alguns habeas corpus que pretendiam a liberdade de criminosos violentos – latrocidas, assaltantes, estupradores, etc -, os quais alegavam estar submetidos a constrangimento ilegal, em face da demora no encerramento da instrução.

Conquanto reconhecêssemos um pequeno elastério na instrução criminal, entendemos no mesmo passo, à unanimidade, que não deveríamos conceder liberdade aos pacientes, por compreendermos que, diante da realidade que vivenciamos, da periculosidade in concreto dos autores dos delitos e, algumas vezes, em face de sua vida predadora em sociedade, uma decisão que concedesse liberdade aos mesmos seria uma afronta  à sociedade.

Optamos, com efeito, pela manutenção das prisões, na certeza de que, agindo assim, prestávamos um tributo à sociedade, ao tempo em que deixamos transparecer aos acusados que, por serem perigosos, teriam que suportar as consequências de sua ação, ainda que o fosse pela via excepcional da constrição provisória.

Temos consciência de que não se deve abusar das prisões provisórias, em face mesmo da presunção de inocência. Todavia, diante da criminalidade violenta, não se pode simplesmente fechar os olhos para a situação concreta que ensejou a prisão cautelar dos pacientes. Por isso, conquanto se discuta, por exemplo, excesso de prazo, não se pode descurar dos motivos que ensejaram a medida extrema. Não se deve, por exemplo, em face de um pequeno excesso, não atribuível à desídia do magistrado, colocar em liberdade um denunciado por crime extremamente grave (latrocínio com resultado morte), sobretudo quando se trata de recalcitrância delitiva..

A gravidade do delito, é preciso não deslembrar, assim como a reiteração criminosa, são motivos suficientes para a manutenção da prisão preventiva do paciente, como forma de garantir a ordem pública e a paz social, mormente quando se aproxima o julgamento da ação penal, ainda que se verifique uma pequena demora no encerramento da instrução, pois o excesso de rigor formal pode significar uma afronta à sociedade.

Reitero, nessa linha de pensamento, que as circunstâncias relacionadas ao lapso temporal devem ser apreciadas, como sói ocorrer, em conjunto com as especificidades do caso, concernentes à necessidade de acautelamento do meio social.

As decisões judiciais não podem ser meramente técnicas, devendo também ser justas e eficazes, direcionadas ao fim precípuo do Direito Penal, de forma a garantir a harmonia social, desde que, é claro, não se constate ofensa aos direitos fundamentais.

Forte nessas considerações, entendo que um pequeno retardo para o encerramento da instrução não autoriza, ipso facto, ipse jure, a colocação em liberdade de quem tem uma vida perniciosa e perigosa, pois a segregação, nesses casos, é medida que se impõe.

Não está fácil, como se vê, suportar tanta realidade; para suportá-la, no que se refere especificamente à criminalidade, é necessário  que os agentes do Estado responsáveis pela persecução criminal não descurem de suas obrigações e de seu compromisso para com as pessoas de bem, agindo, quando necessário, com o inexcedível rigor, no sentido de punir o criminoso violento e para prevenir, ainda que com o remédio amargo da prisão provisória, a criminalidade recalcitrante.