É PRECISO RESISTIR

Para ilustrar, um fato histórico.

Adolf Eichmann, como sabido, foi o principal responsável pelo transporte de milhares de judeus para os campos de concentração. Ele estava radicado em Buenos Aires desde 1950, onde vivia com identidade falsa sob o nome Ricardo Klement.

Contra Eichmann, no entanto, havia um inquérito instaurado com provas de sua contribuição para o massacre do povo judeu. Ao lado disso, havia a determinação de David Ben-Gurion – primeiro chefe de governo de Israel, como sabido – de levar todos os nazistas a julgamento no território israelense. Com esse objetivo, Ben-Gurion encarregou a polícia secreta israelense (A Mossad) de sequestrar e levar Adolf EIchmann para ser julgado em Israel, o que efetivamente foi feito.

O julgamento de Adolf Eichmann, no entanto, em face de suas peculiaridades, recebeu inúmeras críticas, dentre elas a falta de legitimidade de se submeter alguém a julgamento, sendo conduzido à força ao Tribunal, contra as vigentes regas de Direito Internacional. Além da questão atinente à violação das normas, o governo argentino protestou formalmente pela violação de sua soberania.

Na Alemanda Ocidental, o chancelar Konrad Adenaur repreendeu publicamente Israel pelo sequestro, e os editores dos principais jornais do país exigiram que o criminoso nazista fosse extraditado e julgado por juízes e não por vingadores. Como sabido, o caso foi levado pela Argentina à Organização das Nações Unidas, cujo Conselho de Segurança condenou a ação israelense e recomendou que fosse feita a devida reparação.

Contudo, de nada adiantou, pois, apesar de lamentar a violação das leis argentinas, Ben-Gurion anunciou que Eichmann seria, sim, julgado em Israel, o que efetivamente ocorreu.

Mas o questionamento mais importante em face desse fato histórico, e que me levou a essas reflexões, foi a posição assumida por Hannah Arendt, judia de origem alemã, filósofa política e uma das pessoas mais influentes do século XX. Ela sustentou, com efeito, que o réu não era propriamente um monstro, mas um homem que se considerava mero cumpridor de ordens ou uma simples engrenagem da máquina estatal que produziu o Holocausto.

Na visão de Arendt, qualquer pessoa poderia agir como Eichmann, desde que se encontrasse imersa num ambiente destituído de questionamentos quanto à violação dos direitos humanos, pois nesse ambiente há uma inversão de valores, e a brutalidade passa a ser vista como algo normal. Nesse sentido, estaria consolidada a banalização do mal, uma espécie de letargia na qual a pessoa se exime da capacidade de pensar e de questionar tudo o que se passa em sua volta.

Na visão particular de Arendt sobre essa questão, a referida passividade pode produzir uma massa de seres incapazes de formular juízos críticos (Os Grandes Julgamentos da Historia, by José Roberto de Castro Neves), o que me leva a algumas reflexões, como anotei acima, em face da realidade que se descortina sob os meus olhos.

No caso brasileiro, por exemplo, em face da corrupção endêmica que tomou conta do país, o cidadão, diante desse cenário moral devastador, estaria autorizado a também se engajar nesse processo, impedido de exercer um juízo crítico e de se insurgir em face dele?

A engrenagem estatal brasileira que institucionalizou a corrupção impediria que as pessoas de bem resistissem as investidas dos corruptores, em face de, contaminadas pelo ambiente pernicioso, terem perdido o juízo crítico?

Num ambiente contaminado pelos desvios de conduta, todos que nele vivessem teriam, inapelavelmente, que a ele aderir, segundo se pode inferir – num juízo preliminar, claro -, em face das conclusões de Arendt?

Nas pugnas eleitorais, onde prevalece o uso de expediente pouco recomendáveis, para dizer o mínimo – compra de votos, falsas promessas, acordos espúrios etc –, todos estariam compelidos à adesão como um imperativo moral, impedidos, assim, de pensar, em face de um gravíssimo estado de letargia e degeneração moral?

Diante de tais questionamentos, eu, de meu lado, compreendo, inobstante, que a história está aí para provar em sentido diverso do que pensou Arendt, pois não foram poucos os que, mesmo sob pressão, não cederam à tentação de desviar a conduta, refutando, nesse afã, as práticas morais reprováveis.

 E os exemplos são vários, não comportando mencioná-los nesse espaço, bastando dizer, entrementes, para ilustrar, que no ambiente moral devastador revelado pela Lava-Jato, não foram poucos os que, tendo oportunidade, se abstiveram das práticas morais condenáveis

Posso dizer, com convicção, que não foram poucos – e não são poucos nos dias atuais – os brasileiros que, mesmo vivendo em ambientes impregnados de desvios morais, exerceram – e exercem –  um juízo crítico atilado, se recusando a aderir às práticas imorais que contaminam vários ambientes corporativos em nossa sociedade.

Portanto, diante dessa constatação, eu, cá do meu lado, sem pretender parecer arrogante e prepotente, me permito discordar, respeitosamente, da grande Arendt, por entender que se não formos capazes de resistir, mesmo em ambientes onde preponderam os desvios de conduta, não mudaremos o curso da história, pois, mesmo entre os contaminados pelo ambiente nazista, para ficar no exemplo que me levou a essas reflexões, houve os que emprestaram o seu dissenso em face do holocausto.

Nós não devemos, sob qualquer pretexto, emprestar a nossa aquiescência em face do errado. Errado é errado e ponto, e em face do erro, mesmo estando contaminado o ambiente, devemos reagir sempre, com a necessária obstinação.

Logo, é preciso, sim, resistir. E resistir com tenacidade, sob pena de banalizarmos o errado.

É isso.

QUEM PODE MAIS CHORA MENOS

A seletividade do Direito Penal no Brasil sempre esteve presente em nossas vidas, como uma chaga difícil de ser expungida.

Antes, para ilustrar, um dado histórico, para reafirmar a seletividade do sistema penal no Brasil, ao que tudo indica, tende, depois de um período de alvíssaras (Lava Jato), a se perpetuar, em face de algumas posições adotadas nas mais diferentes esferas de poder e sobre as quais farei menção adiante.

Pois bem. No Brasil colônia, a seletividade da Justiça não era apenas escancarada, mas também prevista em lei. Assim sendo, em 1731 foi criada em Vila Rica (olhem só) uma Junta dedicada exclusivamente “aos“ delinquentes bastardos, carijós, mulatos e negros”. Trinta e oito anos depois, o governador de Minas Gerais baixou instruções determinando a prisão imediata dos “vadios e facinorosos” sem qualquer formalidade anterior. Já os “homens bons”, os “bem reputados” e as “pessoas bem morigeradas”, esses não deveriam ser incomodados com processos judiciais e muito menos com prisão, mesmo que por algum “caso acidental” tivessem cometido crimes. (from “O Tiradentes: Uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier” by Lucas Figueiredo).

Em que difere o país atual do Brasil de antanho? No que se refere à seletividade do Direito Penal, estou convicto, muito pouco. É que por aqui a igualdade penal é mera formalidade, para ludibriar mesmo. Dessa forma, tudo está como sempre foi; prende-se muito e prende-se mal –  preferencial, e prioritariamente, os miseráveis.

Aos miseráveis, reconheçamos, destinamos, quase com exclusividade e até com certa obsessão, as nossas forças, as nossas energias, sem o menor constrangimento, e com isso incutimos nos desavisados a falsa sensação de que estamos operando para combater a criminalidade.

Depois do período de esperança sobre o qual me reportei acima, é bom que não nos iludamos quanto à expectativa que criamos de combate linear criminalidade, de destinação da lei penal a todos indiscriminadamente.

É que há, sim, nos dias atuais, à vista de todos, um panorama que permite entrever que, doravante, será quase impossível – a não ser excepcionalmente –  punir os tubarões da criminalidade. E os exemplos estão aí, à vista de todos: fim da prisão em segunda instância; lei de abuso de autoridade; limitação das deleções premiadas; restrições à prisão preventiva; juiz de garantias etc.

A prisão, tão somente depois de esgotadas as vias recursais, por exemplo –  uma jaboticaba brasileira – inviabilizará inapelavelmente, a punição dos criminosos do andar de cima, ainda que se considere a relevância da recente decisão do STF, num caso isolado, de interrupção do prazo prescricional após a condenação em segunda instância.

Diante de tudo isso, é bom encarar a realidade: nenhum criminoso que disponha de condições financeiras será preso no Brasil, a não ser, repito, excepcionalmente, a persistir – como tudo indica persistirá –  a necessidade de esgotamento das instâncias recursais.

A propósito da prisão em segunda instância, que tanto contribuiu nos anos pretéritos no combate aos crimes de colarinho branco, importa anotar, à guisa de ilustração, que nações do mundo civilizado a contempla –  Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, França e Espanha. Daí a minha conclusão de que a sua implementação no Brasil, antes de se constituir um abespinhamento de garantias penais, como se tenta fazer crer, se constitui, sim, num excepcional instrumento a serviço do tratamento igualitário aos transgressores da ordem.

Noutro giro, no que condiz com o juiz das garantias, o que se pretende, da mesma forma, é dificultar o combate à criminalidade graúda, pois com ele cria-se uma esdrúxula instância que contribuirá para a postergação dos processos. Ademais, pondere-se que esse famigerado juiz das garantias jamais seria cogitado se as instâncias persecutórias não tivessem ousado atingir os criminosos do andar de cima, uma vez que a sua implementação, só não ver quem não quer, não passa mesmo de mais um antídoto a inviabilizar o tratamento igualitário de todos perante a lei penal.

Chamo a atenção para o fato de que a prova antes produzida pelo mesmo juiz a quem cabia julgar a causa penal, aos olhos dos mais destacados juristas, nunca tinha sido, antes da Lava Jato, alvo de preocupação de ninguém, até que, finalmente, chegou-se ao andar superior da criminalidade; e lá chegando, descobriu-se que o juiz que produz a prova com ela se contamina.

É bom que se diga, e aqui falo em face da experiência acumulada em mais de três décadas julgando na área criminal, que em face do mau julgador, do julgador venal, faccioso e descomprometido, nada se pode fazer. E não será com a figura do já famigerado juiz das garantias que se assegurará a sua imparcialidade, que já nasce comprometida em face do seu caráter.

O juiz das garantias, podem crer, é apenas mais um engodo, um instrumento por meio do qual obstáculos serão criados à persecução penal, em face dos grandes criminosos, cumprindo lembrar, a propósito, o que disse o Ministro aposentado Carlos Veloso, segundo o qual tratar-se-ia de uma excrescência surgida sabe Deus ou o diabo por quê.

Sob ataques inauditos, é bom que se diga à guisa de alerta, que a primeira instância, de onde ainda saem decisões corajosas de combate à corrupção, nunca mais será a mesma, sobretudo se for aprovada, como parece que será, a proibição a juízes de primeiro grau de decretarem medidas cautelares contra deputados e senadores, outra excrescência também gestada para perpetuar a impunidade da classe de cima.

No Brasil, infelizmente, ainda prepondera – e preponderará por muitos anos – a velha máxima de que quem pode mais chora menos.

É isso.

PEDE AUXÍLIO AO GOOGLE, MEU IRMÃO

É de J.R. Guzzo a seguinte constatação:

“Previsões sobre o que vai acontecer amanhã sempre ficam melhores quando são feitas depois de amanhã. O que temos na vida real é o hoje, só isso – e o grande problema é chegar a alguma conclusão coerente sobre o que está realmente acontecendo hoje. Há uma sugestão honesta para resolver isso; porém, infelizmente, ela dá trabalho, exige esforço mental e não pode ser encontrada no Google. Como não há o mais remoto acordo sobre o dia de hoje – as coisas estão melhores que ontem, ou nunca estiveram tão horríveis? – a única ferramenta disponível para ter alguma ideia decente das coisas é pensar. E pensar, como se sabe, é uma das atividades humanas mais odiadas neste país, sobretudo por aqueles que imaginam saber o que estão falando”.

Perfeito! Mais preciso impossível!

As pessoas se recusam a pensar sobre o hoje. E, para as que se recusam a pensar sobre o hoje, não há o recurso que resolva; nem mesmo o Google é capaz.

Se é verdade que sobre o hoje e sobre o estímulo à reflexão não há disponibilidade nesse site, as informações sobre o ontem estão escancaradas nessa importante fonte de pesquisa.

O grave, daí a razão pela qual estou fazendo essas reflexões, é que, segundo parece, há muitos que, além de se recusarem a pensar sobre o presente, se recusam a dar um passeio no passado, ainda que disponham – e quase todos dispõem – de uma ferramenta de pesquisa da envergadura de um Google.

Creio que se os que pregam hoje – e são muitos! – a volta da ditadura, talvez pensassem melhor se voltassem ao passado, se acessassem o Google e se inteirassem das consequências nefastas de um regime de exceção.

Aquele que pede a volta da ditadura decerto que, ou não a vivenciou, ou não tem a mínima noção do que significa um regime de força, pois, se tivesse, não apelava para a sua volta – nem de brincadeira.

Ditadura não faz – e nem fez – bem a ninguém, em nenhuma parte do mundo. Só mesmo quem não tem a dimensão do que seja uma ditadura pode apelar pela sua volta. Só quem não sabe o que é censura, falta de liberdade de expressão, processos sumários, torturas, desrespeito aos direitos mais elementares pode pedir a volta da ditadura.

É verdade que há em todos nós um sentimento de desesperança em face da ação – ou inação – de muitos que estão no poder, sem a exata dimensão do que significa o exercício desse mesmo poder. Todavia, ainda assim, é melhor que busquemos o aperfeiçoamento da nossa democracia, que construamos uma nova realidade, mas sob o signo de liberdade em vez de um regime de força.

Aos que apelam pela implementação de um regime de força, faço as seguintes indagações:

Você tem a exata dimensão do que significa um regime de exceção, máxime se sob o comando de um desequilibrado e inconsequente?

Você já parou para pensar, desapaixonadamente, que esse desequilibrado pode sufocar a sua liberdade de pensamento e que eventuais mazelas decorrentes do exercício sem peias do poder sequer podem ser denunciadas?

Você já parou para pensar do que é capaz um homem que legisla, julga e executa ao mesmo tempo?

Você nunca se informou do que fizeram as ditaduras sanguinárias pelo mundo?

Você nunca parou para pensar que liberdade não tem preço e nem condição?

Que tal, então, ir ao Google?

Que tal se inteirar sobre o que ele tem a dizer sobre ditaduras pelo mundo?

Você acha justo não eleger seus representantes, ainda que eles não sejam lá essas coisas?

Você já pensou que, se não forem bons, você pode substitui-los no próximo pleito e que isso não seria possível num regime de exceção?

Você já parou para pensar que os nossos problemas decorrem muito mais da nossa incapacidade de escolher bem que em face do regime democrático?

Você já parou para pensar que democracia não tem preço e nem condição?

Você prefere viver em um Estado que protege os seus direitos ou num Estado que os solapa, sempre de acordo com a vontade de um ditador de plantão?

Você tem noção da relevância de poder protestar, gritar e de se insurgir contra o que não concorda ou você prefere ter seu grito contido pelas forças repressivas do Estado?

Se você tem dúvidas, dê um Google aí, amigo.Volte ao passado, via Google; é fácil e está ao seu alcance, bastando um clic no seu smartfone.

Não precisa esforço mental descomunal.

Não precisa sair da cadeira.

Não precisa de força física.

Antes de pedir ditadura, golpe militar, regime de força etc., pegue o seu aparelho celular e vá ao Google para que você tenha uma dimensão do que representa um regime sem liberdades.

Pesquisando sem muito esforço em face do mesmo tema, você poderá conhecer um pouco de Mao-Tsé-tung, de Joseph Stalin, de Adolf Hitler, de Kubiai Khan, de Leopoldo II, de Chiang Kai-shek, de Gengis Khan, de Hideki Tojo e de Pol Pot, só para mencionar apenas nove dos mais sanguinários ditadores que o mundo já abrigou.

Contudo, se depois de auxiliado pelo Google, ainda assim persistir clamando por um ditador, aí o quadro é mais grave.

Eu, de meu lado, com todas as mazelas, com todas as dificuldades, ainda que considere a deformação da nossa representação, ainda assim prefiro um regime democrático, pois quero ter o direito de errar e me corrigir.

Ademais, quero ter o direito de me expressar e responder pelos meus excessos, sempre ao abrigo da lei e em face da ação das instituições democráticas.

Eu quero ser julgado por uma lei que não foi o juiz quem fez.

É sob o império da lei que quero viver.

Se você é do tipo que, como anotou Guzzo, tem preguiça de pensar no presente, que, pelo menos, tenha a humildade de pedir auxílio ao Google para se inteirar do passado.

É isso.

SEM RADICALIZAR

A inspiração para essas reflexões surgiu em face do ambiente de radicalismo que se instalou no país, onde despontam, em linhas opostas e inconciliáveis – ainda que em jogo o interesse público – os radicais de direita e de esquerda, incapazes, pela obliteração da mente e do pensamento, de verem as virtudes dos que elegeram como adversários/inimigos, bem assim os defeitos daqueles que elegeram como aliados/amigos.

Feito o registro, passo às reflexões.

Antes, considerando eventual incompreensão em face da minha condição de magistrado, a exigir de mim muito mais cautela e recato na emissão do pensamento, devo dizer, como Eugênio R. Zaffaroni, jurista argentino de nomeada, que é insustentável pretender que um juiz não seja cidadão, que não participe de certa ordem de ideias, que não tenha compreensão do mundo, uma visão da realidade. Daí que, para o ilustre penalista, juiz eunuco político é uma ficção absurda, uma imagem inconcebível, uma impossibilidade antropológica.

É do mesmo jurista a constatação de que juiz não pode ser alguém neutro, porque não existe neutralidade ideológica, salvo na forma de apatia, irracionalismo ou decadência de pensamento, que não são virtudes dignas de ninguém e menos ainda de um juiz.

À luz das egrégias colocações do ilustrado jurista portenho e sendo elas a minha linha de compreensão, importa dizer que, desde que ingressei na magistratura, venho expondo, destemidamente, a minha visão de mundo.

Eu sempre tive a pachorra de expor o meu pensamento, pois não sou do tipo que guarda no recôndito da alma o que pensa da vida, do mundo e das relações. Também não sou daqueles – que não critico e respeito – que se acomoda apaticamente sob as talares. Ao contrário disso, eu sempre mostrei a minha cara – algumas vezes, até a alma. E por agir assim, já fui, por isso, compreendido e incompreendido. Aliás, mais incompreendido do que compreendido.

Não consigo, definitivamente, ficar sem assumir posição em torno dos mais variados temas. Ademais, não sou do tipo que acha que juiz, pelo fato de ser juiz, só deva falar nos autos, como se fosse um pecado pensar e dizer o que pensa e sente.

Eu só sei ser intenso, forte nas minhas inabaláveis convicções, e sinto necessidade de expor o meu pensamento, como o faço agora, para dizer que estamos carentes de um juízo de ponderação e equilíbrio, a fim de que as relações, mesmo as familiares, não se tornem insuportáveis.

Confesso que, nos dias atuais, com tanto ódio permeando as relações, num ambiente político que já extrapolou os limites do bom senso, do equilíbrio e da sensatez, incomoda-me o fato de ter que ler os meus artigos, incontáveis vezes, com receio de ferir suscetibilidades, de provocar uma reação intempestiva e agressiva, como costuma ocorrer.

Nos dias atuais, por uma imperativa necessidade de preservação em face de ataques inauditos, eu até me recuso a opinar sobre determinados temas de interesse público, para não dar vazão à paranoia que tomou conta do país, com a malfazeja e radical divisão entre os de lá e os de cá, que conduz os radicais mais  inconsequentes a concluírem, sem juízo crítico, que os de cá, ou seja, os que se alinham ao seu pensamento, estão sempre certos e o que deles divergem – estando, portanto, do lado de lá – o fazem porque são seres humanos de pouca ou nenhuma virtude.

Pelo fato de eu não ser um juiz asséptico e acrítico, em incontáveis crônicas e artigos publicados na imprensa local – e no meu blog –  eu já me mostrei por inteiro. Contudo, apesar disso, repito, recuso-me a me filiar, cega e incondicionalmente, a qualquer corrente de pensamento de linha radical. Assim é que, estando certo, aplaudo; estando errado, critico, pouco me importando a ideologia do protagonista do erro ou do acerto.

Dessa forma, faço questão de anotar: eu sou exatamente o que digo, sem tirar nem pôr. Mas, no mundo em que despontam os halters mais afoitos, eu, muitas vezes, prefiro me recolher, para não opinar, para não estimular reações, muitas das quais obnubiladas pelo radicalismo que tem permeado a vida em sociedade, de onde surgem grupos de fanáticos, tanto num quanto noutro espectro político.

Sou intenso, sou veemente, sim, na defesa das coisas nas quais eu acredito, mas sem radicalizar. E nos dias atuais, com muito mais razão, pelo que imponho a mim mesmo uma necessária autocensura.

Mesmo ponderado, ainda há os que acham que sou muito intenso nas minhas posições. Para aqueles que pensam assim, registro que a intensidade com que defendo os meus pontos de vista não é predicado apenas dos homens pouco inteligentes como eu.

A propósito, uma historinha para ilustrar e finalizar.

Certa feita, no STF, Aliomar Baleeiro comentou a intensidade de Evandro Lins e Silva na defesa do seu ponto de vista.

Evandro, diante do comentário, anotou, como eu o faria, certamente:

“Não veja V. Exa. na minha veemência outro motivo que não seja o natural ardor na defesa do meu ponto de vista. É uma convicção firmada como juiz, sobretudo como juiz da Corte Suprema, encarando também o interesse público que está em causa”.

Eu, cá do meu canto, vou, da mesma forma, fazendo a defesa das minhas ideias e crenças, sem receio do que possam pensar os que preferem o conforto do silêncio, os que acham que juiz só fala nos autos, mas sempre com muita cautela para não acirrar os ânimos, num país já conflagrado em face da nefasta da qual falei acima.

É isso.

O VÍRUS DA INSENSATEZ

Ao lado da pandemia proporcionada pelo novo coronavírus, testemunhamos, no Brasil, com consequências graves,  a contaminação do ambiente político pelo do vírus da insensatez, da ignorância, da arrogância e da prepotência, tema sobre o que pretendo refletir, aqui e agora.

Pois bem. Basta confrontar as notícias, ou dar um passeio nas redes sociais, para constatar que, no Brasil, vivemos em permanente estado de guerra; e não somente aquelas protagonizadas pelas facções criminosas, bandos associados ou facínoras individualmente considerados. Ademais, vivemos, em tempos de coronavírus, uma grave guerra de informações, de orientações e de posições, travada, daí a sua especial gravidade, por determinados atores políticos, com os olhos fincados, lamentável constatar, nas próximas eleições, pouco lhes importando o interesse público.

Ainda que as manifestações/orientações/posições decorram de garantias constitucionais – liberdade de culto e de expressão, por exemplo -, muitas são irresponsáveis – quando não criminosas-, pois que, por mais paradoxal que possa parecer, desinformam e desorientam, levando os incautos e crédulos a crerem, por exemplo, que, como disse um determinado bispo de uma determinada igreja evangélica – consta que depois se retratou -, o novo coronavírus é tão somente coisa do Satanás, que se combate apenas com orações, o que pode ser considerado, para dizer o mínimo, uma irresponsabilidade.

É preciso ter em conta que a sociedade civil entra em colapso quando se descontrola, quando se desorienta, quando é levada ao erro em face das pregações/orientações/posições oportunistas de falsos líderes, máxime quando batem de frente com a ciência, convindo lembrar, para ilustrar, que Yuval Noah Harari já advertia para o menosprezo das conquistas científicas, muito antes da pandemia decorrente do novo coronavírus.

Nesse cenário, todos nós perdemos. Perdem os tolos e os incautos, mas perdem, da mesma forma, os que estão no entorno destes, os quais são levados, do mesmo modo, na correnteza de insensatez da qual resultam desinformações ou das informações oportunistas, as quais, de rigor, só interessam mesmo àqueles que delas se beneficiam.

 A constatação é que estamos diante um inimigo invisível, como especial poder de destruição,  que tem tirado a vida de muitos dos nossos irmãos, mas que tem servido, no mesmo passo, aos interesses de uns poucos espertalhões/oportunistas/negacionistas/, nos mais diversos espectros, como testemunhamos no programa Fantástico do último domingo, e como temos testemunhado, de resto, no noticiário em geral, donde se constata que nem mesmo a responsabilidade do cargo impõe limites aos que não têm nenhuma grandeza diante de situações de tamanha gravidade.

É triste constatar que, sobretudo nos momentos de dificuldades pelos quais passamos, ainda tenhamos que conviver com a tenacidade dos aproveitadores, que, sem peias e sem recato, tentam, seja qual for o espectro em que atuem, tirar uma lasquinha, uma vantagem indevida, um proveito político ou material, pouco importando as consequências, os efeitos daninhos de sua ação, como ocorreu, por exemplo, com o prefeito de Teotônio Vilela, AL, fato amplamente noticiado.

Em momentos difíceis como os que enfrentamos nos dias presentes, não precisamos de espertalhões/oportunistas/negacionsitas/terraplanistas, os quais as pessoas de bom senso abominam. Precisamos, sim, de solidariedade, de altruísmo, de boa vontade, de empatia, de liderança e, sobretudo, de lucidez.

Conhecendo o ser humano como conheço não tenho dúvidas de que há muitos que flertam com o caos para, objetivamente, tirar proveito da situação, o que é grave e detestável, a fazer nascer em todos nós um inexorável sentimento de repulsa, quando não de revolta.

A verdade é que situações graves como as que testemunhamos nos dias presentes desafiam os nossos sentimentos e a nossa capacidade de amar o semelhante, de sermos solidários com esse mesmo semelhante. Daí que, em nome da tolerância e em favor da nossa felicidade e do semelhante, devemos, com todas as nossas forças, desprezar os que só pensam com os seus botões, no seu beneficio pessoal ou em face de um projeto de poder.

Noutro giro, mas efeito da mesma causa, tenho lido nas redes sociais muitas manifestações de pessoas que se dizem agastadas pela imposição da convivência mais amiúde com os membros da sua própria família, o que, para mim, é de uma gravidade muito próxima da incivilidade, que não difere em nada da falta de pudor que açula as ações oportunistas às quais fiz menção acima, e que, por isso, está a merecer, da mesma forma, destaque nessas reflexões.

No cenário acima descrito, sou instado a concluir que o homem, definitivamente, perdeu a capacidade de conviver com o semelhante, de respeitar o próximo, ainda que este seja integrante de sua própria família, a reafirmar que situações como a que estamos passando desafiam a nossa capacidade de compreender e ser compreendidos.

Definitivamente – e admito ser mera obviedade -, é diante das adversidades que testamos os nossos níveis de tolerância, pois é em face delas que nos é imposta a necessidade de abrir o corpo e a mente para o vírus da sensatez, da benevolência e da temperança, sem receio de contaminar o semelhante.

Em situações como a que enfrentamos no momento é  que testamos a nossa capacidade de renunciar aos nossos interesses pessoais, ou até mesmo à nossa liberdade individual, em favor da coletividade; e o que vale para qualquer cidadão vale, no mesmo passo, e com muito mais razão, para quem circunstancialmente exerça o poder, cujas palavras/orientações sempre repercutem, positiva ou negativamente, o que resulta na necessidade de pensar, refletir, contar até mil antes de falar uma bobagem ou de  colocar projetos pessoais acima dos interesses da coletividade.

 É isso.

OS DONOS DA VERDADE EM TEMPOS DE COVID-19

Nesses dias de pandemia propiciada pelo novo coronavirus o que não faltam são atitudes arrogantes dos que pensam conhecer a verdade e delas ser proprietários, embora a sua verdade conflite com a ciência e que, por prudência e discernimento, devessem agir com mais responsabilidade, em face, sobretudo, das consequências das suas pregações.

As pessoas que se julgam proprietárias da verdade – ainda que a sua verdade conflite com a verdade científica – imaginam, equivocadamente, que se bastam, têm uma visão equivocada do mundo, vivem em conflito, estimulam a discórdia, são narcísicas empedernidas, que só têm ouvidos para escutar o que lhes interessa, elegendo o próprio umbigo como o centro do universo. E nessa lida, acabam se isolando ou falando para um diminuto grupo de sequazes fanatizados para os quais a lucidez e o bom senso são um artigo de luxo.

Não sei lidar bem com esse tipo de situação, pelo fato de ter uma enorme dificuldade de conviver com os que se imaginam proprietários da verdade, como se esta fosse, como qualquer objeto de consumo, colocada à venda numa prateleira de supermercado; que pudesse, enfim, ser comprada no comércio da esquina, ou pudesse ser construída à luz de suas idiossincrasias, dos seus desejos ou de suas equivocadas convicções.

Contudo, não é assim que as coisas funcionam; não é assim que a banda toca. E por mais intensas que sejam as nossas convicções, é preciso ter humildade ante os fatos da vida, é preciso respeitar o que a ciência ensina, mesmo que isso implique em prejuízos às nossas vontades, ou, noutra dimensão, aos projetos de poder de quem quer que seja, pois que, em determinadas circunstâncias da vida, os nossos interesses pessoais devem ceder ao interesse público.

É preciso humildade para ouvir e para decidir, sobretudo se a via de decisões se estreita em face da ciência, em face do conhecimento de quem estudou e se preparou para essa ou aquela finalidade.

Não se constrói o mundo com arrogância, tentando impor as nossas vontades e os nossos desejos pessoais, seja qualquer for a posição que tenhamos na sociedade, sobretudo se as nossas posições/interesses entram em rota de colisão com a ciência, como o fazem, por exemplo, os lideres populistas, cujas energias são despendidas apenas e tão somente em face dos seus projetos pessoais –  de vida e de poder.

 A vida ensina. Mas há os que teimam em não aprender e preferem arrotar incoerência e arrogância, levando consigo, quando se trata de uma liderança, os indefesos e ignorantes, como se deu, por exemplo, em Milão e no México, nesses dias de Covid-19, levados aos caos em face da ação irresponsável de suas lideranças que preferiram dar vazão a sua arrogância em vez de ouvirem os doutos, aqueles que, à luz da ciência, estavam em condições de aconselhar para a adoção das melhores providências ante a ameaça do novo coronavírus.

Na ficção, tudo é possível, mesmo que no mundo dos mortais ainda não tenha nascido um dono da verdade, conquanto haja, sim, os que se arvoram proprietários dela, a ponto de, em defesa do seu ponto de vista, tentar desqualificar o interlocutor, em vez de se deter no objeto do conhecimento.

O que se imaginam donos da verdade crêem, em face de um enorme equívoco de percepção, estar sempre certos; o erro, o equívoco, a percepção equivocada está sempre, desde o seu olhar, com o interlocutor; e se a essa teimosia/arrogância se somam aos interesses pessoais e um projeto de poder, aí não há salvação.  

Nesse cenário, são quase sempre histriônicos, não hesitam em destratar, desmerecer os que pensam de forma diferente; e assim, tentam ganhar no grito, dão murros na mesa, perdem a postura e a compostura, incapazes que são de parar para ouvir o ponto de vista de quem pensa diferente, ainda que mais qualificados para discussão; gritam, agridem os que ousam discordar, em vez de melhorar o argumento (Desmond Tutu).

Esses são do tipo, que, em face da sua conduta, se tornam indomáveis e tendem ao isolamento, porque não sabem, não aceitam mesmo conviver com a diversidade de pensamento; pensam, equivocadamente, que são infalíveis; e, mesmo estando no poder, de certa forma padecem de solidão, tendo a fazer-lhe companhia apenas a sua própria ignorância/arrogância.

Nessa senda, convém lembrar Elio Gaspari, para quem “a convicção de estar sempre certo nos impede de reconhecer que somos capazes de errar”, razão por que, por pensarem desse modo, vivem em permanente solidão, na suposição, também equivocada de se bastarem a si mesmos (Vinicius de Morais).

É oportuno chamar à colação, para ilustrar, a reflexão do ministro Luís Roberto Barroso, segundo o qual “quem pensa diferentemente de mim não é meu inimigo”, para, na mesma linha, argumentar que “a verdade não tem dono e que respeitar o outro e conviver com a divergência não significa abrir mão de si próprio”.

É preciso aprender a conviver com pluralismo e com a diversidade de pensamento, sem  tentar impor um pensamento único. Pena que existem os que não aceitam a diversidade como algo natural; pensam solitariamente, não aceitam a divergência, veem-na como uma afronta, e por isso, ao invés do argumento contrário, focam, muitas vezes, na pessoa de quem o enuncia, numa lamentável reafirmação desse péssimo hábito brasileiro de que é o melhor argumento é desqualificar moralmente quem está do lado oposto.

É isso.

O SILÊNCIO INTELIGENTE

A literatura é uma fonte inesgotável de inspiração. E foi exatamente nela que encontrei a inspiração para esse artigo: Dom Quixote de la Mancha, que revisito nesses dias de reclusão imposta pela ameaça do novo coronavírus.

Para que não façam uma interpretação equivocada do sentido dessas reflexões, devo me antecipar dizendo que não prego aqui censura ou autocensura. Afinal, o silêncio oportuno e razoável é, também, uma forma de expressão.

O que almejo, tão somente, em face de determinadas lideranças – e aqui antecipo o sentido dessas reflexões – é que pratiquem o silêncio inteligente, ou seja, que falem somente o essencial e com muita responsabilidade; fora disso, nada mais razoável que o silêncio.

Dito isso, à guisa de introdução, trago à colação, agora, para ilustrar, passagem inspiradora, em face dos dias atuais, da monumental obra de Miguel de Cervantes.

Pois bem. Em determinado momento, o estalajadeiro indaga do seu hóspede, no caso Dom Quixote, já suspeitando de sua falta de juízo, se trazia consigo dinheiro.

Don Quixote respondeu que não trazia nem um tostão porque nunca havia lido nas histórias dos cavaleiros andantes que algum o carregasse.

O estalajadeiro disse-lhe, então, que estava enganado, pois, a história nada falava certamente porque aos autores pareceu que não era preciso mencionar uma coisa tão clara e tão necessária de se levar, como dinheiro e camisas limpas, e nem por isso haveria de se acreditar que não os trouxessem.

Prosseguiu o estalajadeiro dizendo que decerto todos os cavaleiros andantes, de quantos livros estão cheios e atulhados, levavam bem forradas as bolsas, para o que desse e viesse; “e que também levavam camisas e uma arca pequena com unguentos para curar as feridas que recebiam…”.

A lição que se pode tirar dessa passagem da obra extraordinária de Miguel de Cervantes, trazendo-a para os dias atuais, nos quais defrontamos com uma pandemia que já roubou a vida de milhares de irmãos em todo o planeta e onde vicejam manifestações ignorantes,  é que, dada a sua obviedade , não precisaria lembrar aos homens públicos, máxime aos que têm papel de destaque, que eles não podem delirar, que não podem escarnecer a ciência, que não podem assumir posições pensando apenas em seus interesses pessoais ou no seu projeto de poder, como o fez – e faz-, por exemplo, o ex-ministro Osmar Terra, que, em rota de colisão com a ciência, terminou por perder a pouco credibilidade que ainda tinha.

Nessa toada, é de relevo anotar que dos homens públicos, sobretudo dos que exercem, com sua fala e suas pregações, certo fascínio em parcela expressiva da sociedade, espera-se, sempre, como um imperativo inescapável, bom senso, sensatez e equilíbrio, e que não se deixem levar pela solerte preocupação com eventuais vantagens que possam ser alcançadas em face de determinadas circunstâncias da vida, como se constata, nos dias atuais, em face da tragédia que assola o mundo decorrente da Covid-19.

Tenho dito que, nas conversas informais, no restrito ambiente familiar, nas rodas de bate-papo, numa rodada de cerveja, numa mesa de bilhar, num carteado, ou em qualquer outro ambiente, todos podemos – conquanto não devêssemos! – , até, delirar um pouco; podemos falar bobagens, dizer asneiras, porque, nessas circunstâncias, das bobagens e das asneiras ditas não resultam maiores consequências.

Todavia, o delírio, as palavras inoportunas, o dizer sem pensar, sem medir as palavras não são aceitáveis, por óbvio, quando proferidas por um líder qualquer, porque o delírio e as palavras ditas sem pensar, sabidamente, podem, sim, exercer certo fascínio em expressiva parcela da população. Daí que, em situações que tais, recomenda o bom senso que o líder busque o silêncio inteligente, que, repito, é, sim, uma forma de expressão, como antecipei no início dessas reflexões.

O homem – e nesse sentido não escapa o líder –, tem-se dito, é dono do que cala e escravo do que fala; mas não só isso. Ele é, também, responsável pelas consequências do que diz e, nesse sentido, tratando-se de uma liderança, precisa pensar antes de falar.

Se as palavras têm poder, como ensinam os sábios, é de rigor que todos devamos ter prudência e descortino no falar, dada as suas conseqüências.

É preciso saber a hora de falar e de calar.

Assim sendo, quando não temos formação profissional em determinada área do conhecimento, não é recomendável que nos deixemos levar pelo instinto ou pela vaidade para sair por aí, num microfone ou nas redes sociais, dizendo e escrevendo bobagens, espargindo mentiras e enganando as pessoas.

Na atual conjuntura, mais do que nunca, é preciso ter cuidado com as palavras; essa conclusão não é minha, mas de todos os que têm bom senso.

Por tudo que temos testemunhado nos dias presentes, é cada vez mais importante que as pessoas que tenham o mínimo de bom senso advirtam, lembrem aos açodados e descomprometidos de que a verdade não pode ser solapada para satisfazer às idiossincrasias de ninguém; e isso serve, no mesmo passo e na mesma dimensão, para os disseminadores de fake news, muitas das quais pensadas para confundir, sobretudo ao cidadão incauto, que, por conveniências e interesses pessoais, se deixa levar por falsas informações, replicando-as nas redes sociais, disso resultando conseqüências muitas vezes imprevisíveis.

A responsabilidade pelo silêncio inteligente é de todos nós. Ademais, a nenhum de nós é dado o direito de, numa situação tão grave como a que nos encontramos, falar bobagens e espalhar fake news na esperança de influenciar os acólitos fanatizados pela refrega política.

Se a prudência recomenda que, nos dias em que vivemos, nós, cidadãos comuns, não disseminemos bobagens pelas redes, em face de suas consequências, como muito mais razão deve silenciar quem exerça uma liderança.

Aquele que não for capaz de agir com bom senso e equilíbrio em face dos momentos difíceis pelos quais passa a humanidade, que seja capaz, pelo menos, de colocar em prática o que denomino de silêncio inteligente. Afinal, como dizia Albert Einstein, a estupidez humana e o universo são infinitos, e nada pior para combater a Covid-19 que a estupidez do homem.

É isso.

É PRECISO AMAR AS PESSOAS

O diplomata Sérgio Vieira de Mello foi enviado ao Iraque, depois da derrubada de Saddam Hussein pela coalizão liderada pelos Estados Unidos, como chefe da missão da ONU, em Bagdá, para ajudar a pacificar o país. Todavia, como sabido, pouco pôde fazer para restabelecer a paz.

É que, no dia 19 de agosto de 2003, um caminhão-bomba foi lançado contra o prédio da ONU, matando 24 pessoas e ferindo outras tantas, naquele que foi considerado o maior atentado até então praticado contra uma representação das Nações Unidas.  Entre as vítimas da tragédia estava o grande brasileiro Sergio Vieira de Mello.

Por óbvio que não é possível resumir aqui a obra desse festejado diplomata carioca, já condensada em documentários – um deles disponível gratuitamente no YouTube  – e biografias alentadas.

E pelo fato de não ser possível sintetizar a sua monumental ação diplomática neste espaço, anoto, apenas, que há um consenso universal em torno de sua ação humanitária: foi um dos homens que mais contribuíram para a paz mundial, cumprindo ressaltar, nesse sentido, como exemplo, as suas destacadas ações no Timor Leste, em Ruanda e na repatriação dos refugiados da Guerra do Vietnã.

Com o lançamento do filme intitulado Sérgio, na Netflix, que conta parte de sua história, – estrelado por Wagner Moura, no papel principal, e Ana de Armas, como Carolina Larriera, esposa do diplomata -,   Sergio Vieira de Mello voltou a ser lembrado e eu voltei a me interessar pela sua história.

Antes de assistir ao filme e para confortar a minha péssima memória, saí em busca de informações sobre o diplomata, já que a sua biografia – o Homem que Queria Salvar o Mundo, de Samantha Power –  eu li há mais de 15 anos.

Encontrei na mesma Netflix as informações por mim pretendidas, e as recomendo. Trata-se do documentário também intitulado Sérgio, a que assisti nesses dias de pandemia.

Trata-se de um documentário denso, profundo, instigante, trágico e inspirador, que vale a pena assistir, conquanto não o recomende aos mais sensíveis, especialmente em face do dramático resgate – e tentativa de resgate – das vítimas do atentado, dentre as quais o próprio Sergio Vieira de Mello.

O detalhe que chama a atenção no documentário e que me levou a escrever estas reflexões, foi que – atenção! –  todas as vezes que o pessoal do resgate conseguia contato com Sérgio Vieira de Mello, parcialmente soterrado –  numa tentativa de regaste que se mostrou debalde -, este, entre a vida e a morte, imobilizado sob os escombros, num atitude que impressionou a equipe de salvamento, perguntava, insistentemente, como estava o resgate dos funcionários da representação, e pedia – acreditem!– que não se preocupassem com ele, e cuidassem dos seus companheiros também soterrados.

Isso se chama empatia, isso é altruísmo, o que parece faltar a algumas lideranças brasileiras e alguns dos seus sequazes mais fanatizados, os quais, nesses tempos de pandemia propiciada pelo novo coronavírus, parecem ter o seu pensamento e suas forças voltadas apenas para os seus próprios interesses, capazes que são de, até, promoverem buzinaços em frente a hospitais  ou de hostilizarem manifestação pacífica de enfermeiros, esses, sim, alguns dos destacados heróis nacionais dos dias presentes.

Menos mal que, noutras esferas, as pessoas têm mostrado a sua empatia e atitudes altruístas para com o povo sofrido do Brasil, como se constata, por exemplo, em face da exuberante rede de solidariedade que se formou para ajudar os mais necessitados, e para dar condições de trabalho aos médicos brasileiros – estes também heróis destacados -, vítimas, como nós outros, do descaso com que sempre foi tratada a saúde no Brasil.

Enquanto o povo sofre – e morre –  por falta de atendimento, algumas destacadas lideranças da nação disputam cargo e poder ou buscam uma boquinha para protegidos, muitos delas (lideranças) saídas do submundo do crime, fazendo-o sem nenhum constrangimento, à luz do dia, naturalmente, numa demonstração abjeta e torpe de que não estão nem aí para o sofrimento do povo.

E que se faça o doloroso registro:  é a classe menos favorecida que pagará, sim, além do sofrimento infligido pela Covid-19, pelos pecados de um sistema injusto e concentrador de rendas.

Diante dessa inevitável tragédia social, precisamos de lideranças fortes e comprometidas, ante a inevitabilidade do exacerbamento dos já desfavoráveis indicadores sociais, agora traduzidos em mais desemprego e mais fome, impondo-se, nesse cenário, a ação efetiva do Estado e sua rede de proteção, para que possam ser minorados o sofrimento e a dor do povo mais humilde.

No cenário desalentador a que me reporto, é inaceitável, sob qualquer perspectiva, que, nos dias presentes, de tanto sofrimento e dor, pessoas irracionais, dignas de desprezo, ainda persistam com ações que traduzem menoscabo pela dor e sofrimento alheios, não só subscrevendo e repassando fake news dolorosas – como a que noticia falsamente o enterro de caixões sem corpos -, mas, sobretudo, apostando no caos para que, depois, possam dele tirar algum proveito político.

Mas do que nunca, é preciso lembrar, com Renato Russo, que é preciso amar as pessoas, como se não houvesse amanhã.

É isso.