Em direção ao shabat

 

Penso que não são poucas as pessoas que só valorizam as coisas singelas em momentos de muita angústia, de muita aflição, de sérias dificuldades; no momento em que veem, por exemplo, a vida se esvaindo.

Em condições normais, convenhamos, não são poucos os que levam a vida sem valorizar as coisas simples, tomados pela ambição material que lhes domina as ações, contaminados, outras vezes, pelo apego excessivo ao poder.

Eu gosto das coisas mais simples, aprendizado que eu trago comigo desde a mais tenra infância e que me leva a desfrutar prazerosamente do que de mais simples a vida me oferece. E exatamente por isso, as minhas melhores recordações são das coisas simples que vivi e testemunhei.

Oliver Sacks, neurologista e escritor, autor, dentre outros, de “Tempo de Despertar”(1973), “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” (1985) e “Um Antropólogo em Marte” (1995), tendo sido diagnosticado com câncer metastático no fígado, que o levou à morte, aos 82 anos, escreveu quatro ensaios, que publicou no livro intitulado Gratidão, dos quais apanho e transcrevo alguns excertos, para reafirmar o óbvio, qual seja, de que o homem, de regra, somente diante de dificuldades insuperáveis olha o mundo de forma diferente do que via até então.

“[…] Quanto a mim, não creio (nem desejo) uma existência após a morte, exceto na memória dos amigos e na esperança de que alguns dos meus livros ainda possam ‘falar’ às pessoas quando eu morrer […]”. (Ensaio Mercúrio).

“[…] Não penso na velhice como uma fase cada vez mais penosa que é preciso suportar e levar o melhor possível, mas como um período de liberdade e tempo descomprometido, sem as infundadas urgências de outrora, livre para explorar o que eu quiser e para amarrar os pensamentos e sentimentos de toda uma vida”. (Ensaio Mercúrio).

“[…] Agora devo escolher como viver durante os meses que me restam. Tenho de viver do modo mais rico, profundo e produtivo que puder[…]”. (Ensaio My Own Life).
“[…] e desejo e espero, no tempo que ainda me resta, aprofundar minhas amizades, dizer adeus àqueles a quem amo, escrever mais, viajar, se tiver forças, atingir novos patamares de compreensão e descortino […]”. (Ensaio My Own Life).

“[…] Sinto uma repentina clareza de enfoque e de perspectiva. Não há tempo para o que não é essencial. Devo me concentrar em mim mesmo, no meu trabalho, nos meus amigos. Não assistirei mais ao noticiário toda noite.. Não vou mais prestar atenção em política ou em discussões sobre o aquecimento global…[…]”. (Ensaio My Own Life)

“[…] Não consigo fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é de gratidão. Amei e fui amado, recebi muito e dei algo em troca, li, viajei, pensei, escrevi… Tive meu intercurso com o mundo, o intercurso especial dos escritores e leitores. Acima de tudo, fui um ser senciente, um animal que pensa, neste belo planeta, e só isso já é um enorme privilégio e aventura. (Ensaio My Own Life)

“[…] Encontro consolo, desde que escrevi em fevereiro sobre meu câncer metastático, nas centenas de cartas que recebo, nas expressões de amor e apreço e no sentimento de que (apesar de tudo) eu talvez tenha tido uma vida boa e útil. Continuo a me sentir muito feliz e grato por tudo isso, mas nada mais me afeta como o céu repleto de estrelas daquela noite[…]”. (Ensaio Minha Tabela Periódica).

“[…] Deram-me, assim, não uma remissão, mas uma intermissão, um tempo para aprofundar as amizades, ver pacientes, escrever e viajar de volta ao meu pais natal, a Inglaterra […]” (Ensaio Minha Tabela Periódica).

“[…] E agora fraco, sem fôlego, os músculos antes firmes derretidos pelo câncer, encontro meus pensamentos cada vez mais, não no âmbito sobrenatural ou espiritual, e sim no que se quer dizer com levar uma vida boa, que valha a pena – alcançar a sensação de paz dentro de si mesmo. Encontro meus pensamentos rumando em direção ao Shabat, o dia do descanso, o sétimo dia da semana, e talvez o sétimo dia da nossa vida também, quando podemos sentir que o nosso trabalho está feito e, com a consciência em paz, descansar […]”. (Ensaio Shabat).

Oliver Sacks, com a morte batendo à porta, como se conclui dos excertos acima transcritos, passou a cogitar mais amiúde das coisas mais simples. Vê-se, claramente, nas passagens acima, que o que mais lhe importava, diante da morte que se aproximava inclemente, era aprofundar as amizades, atingir patamares de compreensão e descortino.

Era seu desejo, ademais, ser lembrado apenas pelo que escreveu, externar o seu amor às pessoas que lhe são caras, buscar a paz interior para a qual talvez não tenha se dedicado, atentar para as coisas simples como o céu repleto de estrelas, o qual talvez tenha esquecido de fazê-lo, quiçá por acreditar que a vida não era finita.

Definitivamente, o que a vida não é capaz de demonstrar, a proximidade da morte tem o condão de ensinar. Mas aí já pode ser tarde demais.

É isso.

ESTADO DE ANOMIA

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“Nos dias presentes, a sensação que tenho é de que o Estado perdeu o controle da situação, favorecendo, com sua omissão, o surgimento de um ambiente propício e deletério, no qual proliferam grupos de criminosos que vivem em função e em razão das ações de um Estado paralelo, criado com o objetivo de dar vazão a suas ações criminosas, não escapando dessa análise nem mesmo os homens públicos que, pela sua posição, poder decisório e influência, deveriam agir de forma escorreita, para não incutirem no cidadão com propensão à anomia a triste sensação de que vale a pena transgredir, e que bobo mesmo é quem, podendo, opta por não desviar a sua conduta, como se viver sob o império da lei fosse mesmo uma exceção”

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Ultrapassada a chamada “primeira fase da criminologia”, com os estudos referentes às Escolas Clássica e Positiva, vieram as chamadas Teorias Macrossociológicas da Criminalidade, com as quais teve início a chamada “segunda fase da criminologia”, iniciada na década de 1920, com a escola de Chicago.

Conforme se sabe, com as Teorias Macrossociológicas, os estudos da criminalidade deixaram de se preocupar com o indivíduo ou com pequenos grupos de indivíduos, para se concentrarem na criminalidade macro, ou seja, passaram a se concentrar nos fatores que levam a sociedade como um todo a praticar infrações penais, com especial atenção aos denominados guetos, surgidos nas chamadas megalópoles, cujos ambientes proporcionariam o “cultivo do crime”.

Segundo a Teoria do Consenso, um dos grupos em que se dividem as Teorias Macrossociológicas, existem certos locais onde o Estado não consegue fazer valer sua força normativa e coercitiva. Nesse sentido, esses lugares seriam guiados por uma verdadeira anomia, por uma subcultura delinquente, por condutas “anômicas” que o indivíduo adota quando se vê privado de referências e controles; condutas marginais, portanto, ligadas à violência.

Diante das reflexões que tenho feito em torno dessas questões, tenho constatado que, efetivamente, vivemos, nos dias presentes, esse estado de anomia, que, segundo Durkheim (1974), é onde as normas de uma sociedade são enfraquecidas, onde o indivíduo parece perder o sentido de pertencer a um determinado grupo.

Devo dizer, inobstante, diferente de algumas conclusões das Teorias Macrossociológicas, que essa situação anômica não se restringe a determinados lugares; a sensação de viver num estado sem lei e sem ordem, pelo menos até onde a minha vista alcança, se esparrama por toda sociedade, faz parte da nossa vida cotidiana, apresentando-se sob as mais diversas feições e nos mais diversos ambientes: em cada esquina, um assalto; em muitos ambientes familiares, a violência doméstica; nas repartições públicas, incontáveis casos de corrupção; em cada prefeitura, uma licitação fraudada; em diversos ambientes de trabalho, a prática do assédio, moral e sexual; no trânsito, a falta de respeito às normas mais comezinhas; nas favelas, a proliferação de milícias; nos presídios, o domínio das facções criminosas etc.

Essa criminalidade – que não é pontual, reafirmo – está em todos os ambientes onde o homem pontifica, introjetando no semelhante o sentimento malfazejo de que o ser humano perdeu, definitivamente, o sentido de viver sob o império da lei, afastando-se, a olhos vistos, das normas da sociedade, para viver em função das normas de grupos de delinquentes, que não têm apreço ao pacto social e pelo coletivo, não raro optando por agir individualmente como ser anômico, sem referências positivas do passado e sem perspectiva de mudança de direção no futuro.

Esse estado anômico, bem se pode ver, estimula o surgimento, como uma panaceia, das mais diversas teorias de pretenso combate à criminalidade (Tolerância Zero, Janelas Quebradas ou Broken Windows Theory, Tree Strikes an You are Out) as quais culminaram com a chamada teoria do Direito Penal do Inimigo, de Günter Jacobs, segundo a qual, um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar do conceito de pessoa, levando-nos a crer, equivocadamente, que determinadas pessoas, pela sua conduta, não merecem a proteção do Estado. Daí por que devêssemos, em nome dos que se submetem às leis estatais, tratá-las de forma diferenciada, restringindo, com efeito, as suas garantias penais e processuais, enfrentando-as com as chamadas “leis de combate”.

É preciso estarmos atentos ao fato de que as teorias que acima mencionei, que tanto fascinam as correntes favoráveis ao maximalismo penal, à conta de leis penais mais severas e de uma cultura imediatista, flertam com a ilegalidade, pois abespinham, malferem princípios comezinhos de direito, sem, entrementes, resolverem o problema da criminalidade.

Tais teorias, que, repito, não resolvem o problema da criminalidade, são apenas, desde o meu olhar, discriminadoras e perpetuadoras do tratamento diferenciado que tem sido dispensado a uma determinada classe social, mesma classe que, à falta de ações estatais, terminaram por prodigalizar o Estado de anomia a que me referi acima, onde cada um defende o que é seu, a seu tempo e modo, com a perpetuação (vide o caso das favelas do Rio de Janeiro) dos grupos criminosos que terminam por substituir o Estado, mesmo Estado que, historicamente, tem sido omisso nas questões mais elementares que permeiam a vida em comunidade, mesma comunidade que, sentindo-se órfão das ações estatais, terminam por se aliar aos grupos de criminosos que o substituem, perpetuando, nesse sentido, o Estado de Anomia a que me reportei acima.

É isso.