EGOS DESCONTROLADOS

 

7243789636_50a2d6cd91Vou iniciar essas reflexões, lembrando de uma lição que extraí do romance Casei com um comunista, de Philip Roth: “Temos de tirar o chapéu para a vida, em homenagem às técnicas de que ela dispõe para despojar um homem de toda a sua relevância e esvaziá-lo completamente do seu orgulho” (personagem Murray Ringold, professor de inglês, irmão de Ira Ringold, destruído em face de suas convicções, no pós-guerra, quando a febre do anticomunismo contaminava a política americana).

Vou relembrar, também, uma expressão que minha mãe gostava muito, sempre que nos flagrava num desvio de conduta: “Nada melhor que um dia atrás do outro”, ou então, “a vida é quem ensina a viver”, nos advertindo sobre o que mundo reservava aos que agem impensadamente ou que se deixam levar pelo orgulho e/ou pela vaidade.

Feitas essas observações, à guisa de ilustração, para que nos lembremos sempre de que nenhum orgulho resiste às vicissitudes da vida, devo dizer que, como todos sabem, conviver com os contrários, com quem pensa e age diferente de nós, é um aprendizado que requer paciência e exige de todos nós uma certa dose de perseverança. Todavia, todos nós sabemos que não é fácil contemporizar com posições antípodas, que tendem a ser mais frequentes, quanto mais plural for a sociedade.

No mundo plural em que vivemos, portanto, é preciso saber ouvir, refletir, com respeito e sem prepotência, sobre o que dizem aqueles que pensam diferente de nós. Não é humilde, mas uma lamentável e abominável arrogância, só dar ouvidos à sua própria voz, ofertando ao interlocutor “ouvidos de mercador”.

Qualquer pessoa minimamente atenta já deve ter percebido que habitamos num mundo onde pontificam, para o desconforto das relações, os que não sabem ouvir, os que desprezam os argumentos do interlocutor, como se fossem senhores absolutos da razão, a reclamar, urgentemente, uma revisão de conceitos, pois, muito provavelmente, quando se derem conta de que a verdade não tem dono e que talvez tenham se apropriado de uma mentira, ao fazerem tabula rasa das verdades que tentaram neles introjetar, sentir-se-ão como aquele sujeito que, apesar do poder que tinha, não podia mudar a cor da luz do semáforo, se submetendo, nesse cenário, às mesmas restrições impostas ao mais humilde semelhante, como de resto acontece em várias passagens da vida.

Não é democrático, nem razoável, definitivamente, o não saber ouvir, o não tolerar a adversidade. O pensamento único e a verdade absoluta não habitam o mundo da relatividade, que não tolera os que só olham o mundo de acordo com as cores da sua lente, conforme as suas idiossincrasias, com os valores que incorporou e a partir dos quais forjou a sua personalidade.

Viver, conviver, compartilhar as inquietações, as angústias com os que pensam de modo diferente, com os que têm visão de mundo oposta à nossa, é um exercício de humildade que todos nós deveríamos cultivar.

É um erro grave de convivência não aceitar a divergência, a tentativa de impor um ponto de vista. Não é, definitivamente, construtivo nem faz bem para a relação quando uma das partes pensa ser dona da verdade, sabido que a verdade não tem dono. Entrementes, todos os dias, ainda nos deparamos com essas pessoas, como se existissem verdades expostas para a venda numa gôndola de supermercado.

Na construção de uma tese ou na sua antítese, é bom para as relações e engrandece as amizades a compreensão de que discordar faz parte da vida e que é a partir da aceitação das divergências de ponto de vista que podemos, definitivamente, construir uma sociedade fraterna e plural.

Tenho uma especial admiração pelo Doutor Dráuzio Varela, o que me leva a acreditar facilmente em tudo o que ele diz. As posições dele, as recomendações que ele faz, tudo que ele diz eu assimilo como se fossem conselhos de um amigo fraterno.

A minha admiração pelo Dr. Dráuzio Varela se solidificou quando, em seu livro Carcereiros, deparei-me com a passagem em que ele lamentava ter perdido contato com o mundo marginal.

Diz ele, a propósito, que a falta de contato com os presídios deixava a sua vida mais pobre, pois, de tão envolvido com esse universo,não suportava ter que passar agora o resto da vida convivendo exclusivamente com pessoas da mesma classe social e valores semelhantes aos dele, sem a oportunidade de se deparar com o contraditório, com o avesso da vida que levava, sem poder conviver com a face da mais indigna desigualdade social, sem poder ouvir histórias que não passariam pela cabeça do ficcionista mais criativo, sem conhecer a ralé desprezível que a sociedade finge que não existe, a escória humana que compõe a legião de perdedores que um dia imaginou realizar seus anseios pela via do crime, e acabou enjaulada num presídio.

Essa, sim, é uma lição de vida para os que só querem ouvir a sua própria voz e abominam, no mesmo passo, os argumentos contrários. Esses, tenho dito, têm o ego descontrolado.

NÃO QUERO PERDER A DIREÇÃO

justiça por marília chartuneDa obra de Lewis Carol, a imortal e atemporal Alice no País das Maravilhas, há dois personagens que gosto de destacar. Um deles, o coelho, que assim como nós, ou, pelo menos, como eu, vive correndo, olhando sempre para o relógio, assumindo estar sempre atrasado. Eu também sou assim. Não transijo bem com atrasos, não gosto de impontualidade. Acho uma falta de respeito não cumprir horário.

O outro personagem é um gatinho esperto. Pelo fato de eu amar gatos, não tive dificuldades para me apaixonar pelo gatinho da obra, que protagoniza uma passagem interessante. Ele vive no alto de uma árvore. Há momentos em que desaparece; outros em que se mostra por inteiro. Há momentos, no entanto, que exibe apenas a sua vistosa calda.

Há uma cena em que Alice, desorientada, vê o gato na árvore e pergunta aonde vai dar a estrada pela qual estava passando. O gato formula outra indagação, antes da resposta:

-Para onde você quer ir?

Ela responde:

-Não sei; estou perdida.

O gato, esperto, não titubeia:

-Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve.

A lição que se extrai dessa passagem da obra de Lewis Carol – pelo menos essa é a interpretação conveniente que me permito fazer desse fragmento para ilustrar essa crônica – é que não são poucos os que, nos momentos de dificuldades pelos quais passam, terminam perdendo o rumo, o prumo, a direção, e seguindo por caminhos que antes não imaginavam passar, o que, muitas vezes, em face das circunstâncias, é até perdoável e compreensível.

Ademais, de rigor, ninguém pode dizer que diante de uma dificuldade da vida não seria capaz de se perder, de seguir sem direção, às escuras, por um caminho que não idealizou, mas que é uma consequência inevitável em face das escolhas que fez.

A verdade é que ninguém pode afirmar que, por essa ou aquela razão, jamais mudará de direção, o que não é de causar nenhuma inquietação, no caso de saber aonde quer ir, ou se houver razões que autorizem a busca de uma via alternativa.

Conforme já disse acima, a mudança de rumo está a depender das circunstâncias. Sendo assim, feliz daqueles cujas vicissitudes da vida não os tenham compelido a mudar de rumo, levando-os às cegas a lugar nenhum.

Decerto que alguns mudam de direção porque anteveem um caminho menos íngreme, que possa levá-los às conquistas que almejam, às ambições que o atormentam, à realização dos seus sonhos. Essa é a mudança de direção que tenho com benfazeja, suscetível de ocorrer com todos nós, indistintamente.

Contudo, há, também, os que mudam de rumo, não em face de uma intercorrência, de uma intempérie ou por motivos de força maior, mas porque optam, voluntariamente, pelo caminho mais rentável do ponto de vista material, o caminho que os levam à obtenção de vantagens indevidas, sem se importarem com as consequências em face das escolhas que fizeram. E, quando se dão conta, estão sem rumo, sem direção, sem saber para onde ir, sem opção, perdidos e, talvez, arrependidos pelas escolhas equivocadas que fizeram.

E são muitos os que fazem escolhas erradas, levados por impulso, por vaidade ou ganância, para, depois, lamentarem pelas escolhas que fizeram. Mas aí, com muita probabilidade, pode ser muito tarde, como ocorreu, por exemplo, com os que optaram por assaltar a Petrobras, muitos dos quais só depois de presos, sem poderem optar por outra direção, lembraram, tardiamente, que tinham famílias e que elas precisavam ser preservadas.

Esses são os inescrupulosos, os oportunistas para os quais o que vale mesmo é levar vantagem.  Para eles, mudar de rumo, seguir na direção equivocada, sem pensar nas consequências das escolhas que fizeram, pouco importa, desde que, nessa senda, alcancem os seus objetivos.

Muitos desses, todos haverão de concordar, só depois de encalacrados, desmoralizados e expostos à execração pública se arrependem do que fizeram, pois, afinal, expuseram a si e a sua família à exposição pública que podia ter sido evitada.

Para esses, a ganância é tamanha, que eles chegam a se perder pelo caminho, perdem a noção do sentido da ética e da honradez, pela busca frenética e tenaz do ganho fácil; perdem a dimensão das coisas e, dessa forma, pavimentam o caminho que os levará ao cadafalso.

Por esperteza e ambição, eles se perdem nos labirintos do poder, são engolidos pelo sistema, e quando, finalmente, percebem os erros das escolhas, aí já é tarde, restando, nessa hora, apenas apelar para que as ignomínias praticadas não os façam perder o caminho da volta, pois, além deles, são as famílias que terminam por pagar o preço das escolhas erradas, embora que, muitas vezes, elas próprias compactuem com os desvios de conduta, por comodidade ou vaidade, por prazer ou mesmo por ganância.

O Brasil é, culturalmente, um país que favorece esse tipo de mudança de direção, sendo que só recentemente uma determinada casta se deu conta de que, ao se perder pelo caminho, terminou se encontrando na carceragem da Policia Federal.

A vida pública, é consabido, proporciona a muitos uma mudança de direção, sobretudo aos que, estando nela, agem como meros oportunistas, os quais, no primeiro impulso, à primeira facilidade, trilham o caminho da perversão, da licenciosidade, da corrupção, da exação ou tráfico de influência.

Espero nunca ter que mudar de direção. Mas se mudar, por alguma razão maior que as minhas forças, prefiro não saber aonde ir, como personagem de Alice, pois, pior do que perder a direção, é, de forma consciente, percorrer o caminho que possa levar à perversão ou degradação moral.