SOBRE MENTIRAS

Nada é mais nefasto para as relações que travamos, seja em casa ou no trabalho, do que não acreditar no interlocutor. Daí porque é desalentador ouvir uma história e não poder confiar naquele que a conta, assim como é desanimador constatar que, dependendo do interlocutor, não é possível acreditar na desculpa que apresenta.

Decerto que, algumas vezes, é preciso apresentar uma desculpa, tergiversar aqui e acolá, no afã de preservar uma relação ou de evitar um aborrecimento. Mas isso não pode ser a regra, pois mentira deve ser sempre uma excepcionalidade.

A regra em face da qual não se pode fazer concessões é a verdade, uma vez que não convivemos bem com o tipo mendaz, aquele dado a conversa fiada, conversa para boi dormir, como se diz na minha terra.

Mas até aí, quando se tratam de relações interpessoais – privadas, portanto – não há maiores consequências. A gente pode, ou não, crer no interlocutor, e a vida segue, sem maiores consequências.
Todavia, quando o vetor da mendacidade serve a um processo, como testemunha, por exemplo, a situação exige redobradas cautelas, em face das consequências que decorrem de uma mentira formalizada nesse ambiente, o que pode, sim, levar à condenação um inocente ou à absolvição um culpado.

Aí, estimado leitor, o bicho pega, para usar uma linguagem coloquial. Por isso é que, diante de uma prova testemunhal, exige-se do magistrado algo que vai muito além da sua capacidade técnica.
Muitas vezes, precisamos penetrar na alma da testemunha, nas suas entranhas, sob pena de corrermos o risco, sempre presente, de prolatar uma decisão dissociada da realidade, posto que uma testemunha mendaz pode decidir, como dito acima, a vida de um acusado.

Logo, para acolher um depoimento que possa estar contaminado por algum interesse, o magistrado tem que agir com muito zelo e atenção. Nesse sentido, é necessário perscrutar, analisar com o necessário rigor, por exemplo, quais as forças exógenas e endógenas que possam ter desvirtuado esse ou aquele depoimento; desvirtuamento que pode levar uma testemunha a mentir para favorecer ou prejudicar um determinado acusado.

Não é tarefa fácil, nada obstante. Daí que, algumas vezes, apesar da íntima convicção que temos acerca da culpa de um determinado acusado, somos compelidos a absolvê-lo por falta de provas ou por insuficiência das provas produzidas.

Todos os juízes criminais já se defrontaram, incontáveis vezes, com esse dilema, ou seja, de ter que decidir, para absolver ou condenar, com base, primordialmente, em provas testemunhais, a mais falível, volúvel e perigosa das provas.

Diante desse quadro, o que se espera é que o juiz se esmere, até onde é possível em face dos comandos legais, no momento da produção da prova testemunhal e na sua avaliação.

Nesse sentido e a par dessa realidade, é que não se pode inquirir – e aqui me reporto especialmente às partes – testemunhas com o piloto automático ligado, com indiferença ou falta de disposição.

Nenhum juiz, nem o Ministério Público e nem a defesa podem sentar a uma mesa de audiência para inquirir uma testemunha sem antes ter analisado, com percuciência e vagar, o processo, para se cientificar, em profundidade, daquilo que convém indagar das testemunhas, sem o que não haverá condições de aferir, ao fim e ao cabo da instrução, quanto à veracidade do depoimento que está sendo tomado.

O que vi a minha vida inteira foi o total desprezo dos autos até o início da audiência – consideradas, claro, as exceções de praxe -, motivo pelo qual não foram poucos os que, nesse panorama, só tiveram conhecimento dos fatos ao tempo da realização da audiência, dando lugar a erros judiciários e injustiças.

Não dá bom exemplo o promotor, o juiz ou o advogado que só manuseia os autos no momento da audiência, pois, quem pretender fazer um trabalho minimamente escorreito, deve se antecipar às audiências, para saber acerca da prova a ser produzida.

O que têm a dizer as testemunhas em um processo não pode ser, como ensina Leandro Karnal, apenas uma explosão de som. Mas para que isso não ocorra, a responsabilidade é toda dos atores do processo, principalmente das partes, em face da vigente legislação, que relega a atividade do juiz a um segundo plano quanto a audição das testemunhas.

Em face de uma inquirição descuidada é que, muitas vezes, a despeito do estrépito do crime, a despeito das cobranças da sociedade, somos obrigados a absolver determinados acusados, à míngua de prova induvidosa acerca da sua participação na empreitada criminosa, a considerar, nessa perspectiva, a relevância da prova testemunhal.

Uma testemunha mendaz pode levar o acusado ao inferno ou ao paraíso. Por isso o zelo, a perseverança, a sofreguidão com que deve ser colhida a prova testemunhal, exigindo-se do MP e da defesa, que, antes das audiências – bem antes mesmo! – leiam os autos do processo, para terem firmeza sobre as questões que formularão, pois só assim é possível, com razoável probabilidade, saber se a testemunha falseia a verdade, para o bem ou para o mal.

É isso.

MELHOR INVESTIGAR

Tenho dito que se houver fundadas suspeitas da prática de ilícitos – penal ou administrativo – por um homem público, o melhor que se faz é investigar da forma mais ampla possível, para que todas as dúvidas sejam dissipadas.

É o preço que todos nós pagamos pela opção que fizemos, pois, sobre a honradez de um homem público, não devem existir dúvidas, ainda que razoáveis. Logo, é preciso deixar que as ações das instâncias de controle fluam naturalmente, porque é do interesse público que as suspeitas – eu disse suspeitas, das quais pode ou não haver indiciamento, que é ato posterior ao estado de suspeito – sejam esclarecidas.

O mais relevante patrimônio de um homem público, todos haverão de concordar, é a sua honorabilidade, que não deve estar sob questionamentos. Daí que, havendo razoável dúvida de desvios de conduta, não pega bem criar óbices às investigações.

Investigação em face de suspeitas razoáveis de má conduta do homem público é um imperativo impostergável e traduz o estágio de evolução de um povo, tanto que, em países civilizados, a simples suspeita impõe ao investigado o dever ético de sair da ribalta, renunciando ao cargo que eventualmente ocupe.

Dessa forma, o melhor que se faz, com todas as consequências que isso encerra, é deixar investigar, se colocar à disposição das instâncias de controle para quaisquer esclarecimentos, pois, afinal, se o indiciamento pressupõe um grau elevado de certeza da autoria, elas, a autoria e a materialidade do ilícito, só podem ser aferidas em face das investigações que forem levadas a cabo.

Desde a minha compreensão, não pega bem o uso de artifícios, mesmo os legais, para impedir que as investigações fluam. Tratando-se de homem público, sobretudo o que têm uma outorga popular, com muito mais razão deve se submeter, naturalmente, às eventuais investigações.

Eu, cá do meu canto, tenho sérias restrições aos que pregam inocência, mas que, no mesmo passo, mesmo ante veementes indícios da prática de algum ilícito, criam empecilhos às investigações, deixando uma amarga sensação de que podem, sim, ter alguma dívida a ser reparada, pois, respeitadas as balizas legais, nada justifica criar estorvas às investigações, máxime quando precedidas de fortes suspeitas de que possa ter havido mesmo algum desvio de conduta.

Ante fundadas suspeitas, por exemplo, de aumento patrimonial incompatível com os rendimentos auferidos por determinado homem público, o correto mesmo é investigar; e, nesse sentido, o maior interessado nas investigações deveria ser a pessoa suspeita, pois que somente em face delas pode-se dirimir eventuais dúvidas acerca de sua conduta, malgrado os dissabores que decorrem da condição de investigado.

Nada obstante os dissabores, todos – eu disse todos! – sobre os quais recai alguma suspeita de enriquecimento ilícito, ou qualquer outro desvio de conduta, devem suportar o desconforto de uma investigação, como todas as suas consequências.

Se, desde meu olhar, as coisas devem ser assim, tenho enorme dificuldades em compreender por que os investigados, de regra, mesmo ante a presença de fortes indícios do cometimento de um ilícito, ultrapassado umbral da mera suspeita, insistem em obstaculizar as investigações.

É preciso ter em conta que não se inicia, pelo menos não tenho notícias nesse sentido, nenhuma investigação, em face de um ilícito, seja penal, seja administrativo, sem que haja, no mínimo, suspeitas relevantes da prática de ilicitude. Se é assim, por que então as pessoas insistem nesse argumento pueril e ridículo de que tudo não passa de uma vindita, como se pretendessem dar à fumaça de gelo um efeito que ela não tem?

Ninguém sai por aí escolhendo, aleatoriamente, quem deva ser investigado; a menos que se trate de um insano, um perseguidor implacável, irresponsável e inconsequente. Da mesma forma, as instâncias de controle não saem por aí investigando à vista tão somente de uma elucubração.

Tentar obstaculizar uma investigação, presentes fortes suspeitas da prática de uma ilicitude, é, para mim, mera escamoteação; uma tentativa pueril de negar as evidências, escondendo-a sob uma cortina de fumaça, olvidando-se que a consciência culpada, ainda que consiga se proteger da persecução, como ocorre algumas vezes, não deixará de ver, em cada sombra, um policial a tirar-lhe a paz.

É isso.

HIERARQUIA DA CRUELDADE

Os livros Spotlight, Segredos Revelados, de uma equipe de investigadores do The Boston Globe, O Homem Inocente, de John Grisham; Diário de Guantánamo, de Mohamedou Slahim, preso no campo de detenção da Baia de Guantánamo, em Cuba; Marighella, o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, do jornalista Mário Magalhães; Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, de Adriana Negreiros; O Livro Negro do Comunismo, Crimes, Terror, Repressão, editado por Stéphane Courtois; e Brasil: uma Biografia, de Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, têm em comum o fato de estarem permeados de narrativas sobre a crueldade do homem, o que me induziu a essas reflexões, pois que, à medida que me aprofundava na leitura dos títulos acima citados, ia sendo tomado de desalento – e, algumas vezes, até revolta -, ante a constatação do que o homem, sobretudo em condições de superioridade, é capaz de fazer em detrimento do seu semelhante.

É claro que em nenhum desses manuais os seus autores pretenderam dar ênfase às crueldades do homem, pois, definitivamente, não elegeram essa questão como tema central das narrativas. Quanto a mim, à proporção que lia – e me envolvia emocionalmente -, fui sendo levado a analisá-los sob essa perspectiva, pois, a cada excerto tratando das maldades do homem, como, por exemplo, em face da escravidão e seus desdobramentos, narrados na monumental obra de Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, me via tomado de indignação.

Por óbvio, não vou fornecer detalhes dos livros. Limitar-me-ei, com efeito, a refletir acerca do que há de comum entre eles, e que me motivou a escrever este artigo, como antecipei acima, ou seja, a crueldade do ser humano, vista e analisada aqui numa perspectiva de poder, não só o conferido pelo Estado – caso dos algozes de Diário de Guantánamo e de O Inocente, por exemplo -, mas também quando ele, o poder, é exercido em razão de uma liderança, caso de Carlos Marighella, de Lampião e Maria Bonita, dos padres pedófilos mencionados em Spotlight), dos ditadores citados no Livro Negro do Comunismo e dos escravizados de que cuidam Lilian Schwarcz e Heloísa Starling em sua obra.

Nos cenários descritos em todos os livros, o que mais estarrece, e sobre o que pretendo esgrimir nessas reflexões, é a constatação de que os protagonistas das injustiças, das violências, das crueldades perpetradas contra o semelhante detinham o poder de mando e, em face desse poder, exorbitaram, levando-me a concluir que a crueldade, muitas vezes, decorre de uma posição de poder, que a torna ainda mais nociva e abjeta, difícil de ser combatida, a reclamar, também por isso, uma atuação mais enérgica das instâncias de controle.

A posição hierarquizada dos algozes torna a crueldade ainda mais abominável, convém reafirmar, porque eles se valem dessa hierarquização para perpetrar as maldades e para, a partir da posição que ostentam, conseguirem se safar das ações dos órgãos de controle, protegidos, quando se trata de agentes do Estado, pelo próprio sistema, que apesar de tudo ver, se omite em face de quase tudo.

Para os que detêm o poder de decidir sobre a vida e a sorte das pessoas, o sistema punitivo, infelizmente, empresta a sua aquiescência, o que resulta na impotência das vítimas diante das ações dos seus algozes, uma vez que, de regra, não têm a quem recorrer, sobretudo quando são pessoas egressas das classes menos favorecidas, para as quais Justiça é apenas uma quimera, um sonho muitas vezes acalantado, mas nunca alcançado.

As crueldades retratadas nos manuais a que me reportei impactam sobremaneira, porque reafirmam aquilo que sempre tenho dito: dos animais que existem sobre a terra nenhum é mais perigoso que o homem; essa perigosidade se potencializa quando ele é detentor de algum poder de mando, seja por estar investido de alguma atribuição conferida pelo Estado, ou porque exerça o poder em decorrência da sua liderança.

A constatação de que crueldade do homem pode vir a ser hierarquizada em face do poder de mando o homem é, de certa forma, um desalento, sabido que, contra isso, a única certeza que temos é a de que todos somos impotentes. Daí por que não são poucos os que, em face de um agente estatal mal-intencionado, sucumbem, podendo, muitas vezes, até ser condenados, como temos testemunhado todos os dias, mesmo nas sociedades que se dizem evoluídas e democráticas como a americana, nas quais os erros judiciários e as injustiças estão presentes, sobretudo em face da população negra e hispânica.

Das narrativas contidas nos livros, restou definitivamente claro para mim que o Estado não protege, definitivamente, o mais débil. Ao contrário disso, se mostra pleno, poderoso, eficaz e altivo quando destina as suas ações para perseguir e punir, sem pena e sem dó, os egressos das classes menos favorecidas, eleitos como alvos preferenciais das vinditas estatais.

Causa estupor e revolta constatar, à luz do que li e do que testemunhado há mais de trinta anos como magistrado, a capacidade que o Estado tem de, ante os mais frágeis, se agigantar, sufocando-os de tal sorte e em tal medida, a ponto de não deixar outra alternativa aos desvalidos que não seja a sucumbência ante as forças persecutórias oficiais, as mesmas forças que são frouxas e lenientes quando se trata de punir os mais poderosos, para os quais as instâncias de controle parecem agir com o único afã de protegê-los, contando com o beneplácito de agentes incrustados na própria máquina estatal, encarregados de fazer o trabalho sujo.

É isso.