As maiores e mais instigantes experiências que tive no exercício do múnus público, como promotor de justiça e magistrado, foram as que resultaram do meu convívio com os seres humanos dos mais diversos matizes.
Dessa convivência enriquecedora, a grande lição que assimilei foi a de que do ser humano podemos esperar tudo, uma vez que, todos haverão de concordar, ele não cansa de se superar. Nesse sentido, quando pensamos já ter visto de tudo, o ser humano, para surpreender, aparece com alguma novidade.
Ante essa elementar constatação de que o ser humano vive para surpreender, é que o legislador deve estar sempre atento, pois, afinal, as novas figuras típicas aparecem exatamente em face da capacidade que o homem tem de inovar nas trapaças, de se superar nas suas ações.
Outra lição que assimilei nessa convivência com pessoas das mais variadas colorações é quanto à incapacidade que temos de incursionar sobre a alma do ser humano.
Dessa incapacidade resulta que, na nossa convivência com o semelhante, julgamos, precipitada e impiedosamente, a sua conduta, mesmo que seja necessário perceber as razões pelas quais ele agiu assim e não assado.
Às vezes, nas conversas informais, digo que a minha especialidade, depois de mais de trinta anos convivendo com criminosos dos mais diversos perfis, com testemunhas e com profissionais do direito das mais diversas colorações, é conhecer gente, para, em seguida, racionalmente, concluir ser essa uma tarefa quase impossível.
Digo isso porque, na verdade, conhecer a alma do ser humano é tarefa quase impossível mesmo para os profissionais que se prepararam para essa faina, pois, afinal, como diz o ditado popular, o lobo pode perder os dentes, mas a sua natureza jamais.
Diante dessa constatação, sou forçado a reconhecer que, apesar do tempo de convivência com pessoas dos mais diversos perfis, nem eu e nem ninguém é capaz de dizer, verdadeiramente, que conhece o ser humano.
E isso é fácil de constatar, posto que os exemplos dessa impossibilidade permeiam a nossa vida.
Com efeito, nos mais diversos ambientes somos instados, a toda hora, a reafirmar a nossa incapacidade no que diz respeito a conhecer o ser humano. Logo, essa é a razão de nos surpreendermos, a cada momento, com reações de congêneres que imaginávamos não ser possível.
Por isso, invariavelmente, diante da notícia dessa ou daquela atitude do ser humano, tomados de surpresa, costumamos, numa exclamação, simplesmente dizer: “Não é possível!”.
Apesar das dificuldades que todos nós temos de conhecer o semelhante, insistimos, por teimosia ou necessidade, nessas tentativas quase vãs. E o que é ainda mais grave: insistimos em julgá-lo, mesmo sem dever fazê-lo, porque, efetivamente, não somos capazes mesmo de conhecer a alma de ninguém; às vezes, até a nossa própria alma nos surpreende.
A verdade é que, reconheçamos, temos por hábito julgar o ser humano, apesar de não conhecê-lo.
Eu, você, todos, enfim, estamos sendo submetidos, a todo momento, aos julgamentos do semelhante. E, o mais grave, é que somos julgados, sempre, a partir das idiossincrasias de quem nos julga; e, da mesma forma, agimos em relação ao semelhante a partir das nossas pré-compreensões.
Não há uma só ação de um ser humano que não passe pelo filtro censório de outro ser humano.
Para julgar um colega, um vizinho, um irmão, um desafeto, temos sempre o espírito atilado, como se fossemos capazes, insisto na afirmação, de conhecer a alma das pessoas que julgamos.
Mas é preciso ter presente, e digo isso em face da minha experiência de vida e não em face de qualquer conhecimento teórico acerca do tema, que, para julgar um semelhante com grande probabilidade de minimizar os erros de avaliação, só se fôssemos capazes, o que não somos, de ver o mundo a partir dos seus olhos.
O mundo que meu semelhante vê sob os seus olhos não é, definitivamente, o mundo que vejo, disso resultando que quando me atrevo a julgar uma atitude do semelhante, eu o faço com grande possibilidade, quase inevitável possibilidade, de julgá-lo muito mal. Daí porque, quase sempre, cometemos injustiça quando nos atrevemos a condenar essa ou aquela atitude do semelhante, à vista do que os nossos olhos enxergam.
É por isso que se diz que, diante de um fato, a lente, os olhos do intérprete fazem a diferença.
Diante do mesmo fato, da mesma atitude, dependendo da posição do intérprete, podemos ter compreensões diferentes.
Para ilustrar como o homem, julgando o ser humano a partir da sua lente, da sua visão de mundo, pode cometer injustiça, cito o exemplo a seguir:
Um soldado americano foi condecorado por ato de bravura, na Guerra do Vietnã, e expulso das forças armadas americanas por sua orientação sexual.
É dele a frase definitiva e que bem retrata o que pretendo refletir nessas linhas:
“Por matar vários homens fui condecorado; por amar um homem fui expulso das forças armadas”.
O mundo visto pela lente do soldado, como se vê, diferia, diametralmente, do mundo visto pelos olhos dos seus comandantes, tendo sido ele julgado não em face do mundo que seus olhos enxergavam, mas pelo mundo que enxergavam os olhos dos seus superiores.
É isso.