Excertos para refletir. Prisão Provisória. Princípio da Razoabilidade.

Vou publicar, a seguir, uma decisão na qual decido por colocar um acusado em liberdade, antes de decidir-me pela pronúncia ou impronúncia, por entender que sua prisão provisória não mais se sustentava.
O acusado, devo dizer, não pode cumprir pena antes de ser condenado. A mantença de sua prisão, com a decisão de pronúncia, seria, a meu ver, uma desfaçatez, um caradurismo que não se compatibiliza com a atividade de um juiz garantista e num regime de franquias constitucionais, da qual avulta de importância aquela que prescreve a necessidade de que seja o acusado julgado em tempo razoável.
A pronúncia do acusado e a mantença de sua prisão agora, mascararia, pura e simplesmente, uma ilegalidade. O magistrado não é pago para isso. O magistrado deve saber até onde vai a tolerância. In casu, a mantença da prisão do acusado, com a sua pronúncia, seria, a olhos vistos, uma ignomínia, seria um deslustre, um desrespeito à Carta Magna vigente, que não tolera a submissão de acusados a constrangimento ilegal
A pronúncia do acusado com a conseqüente mantença de sua prisão, seria uma arrogância do Poder Judiciário. Um magistrado garantista, que tenha a exata noção dos seus limites, não deve agir sob disfarce, sob o manto da dissimulação; deve, ao contrário, fazer da lei e da Justiça a sua arma para combater a intolerância, a trincheira do seu labor.
É cediço que o acusado deve, sim, ser julgado e, se for o caso, pagar pelos crimes que eventualmente tenha cometido. O caminho entre o processamento do acusado até o seu julgamento perante o Tribunal leigo não pode, no entanto, ser permeado por ilegalidades. Se assim procedermos, nós nos nivelamos ao pior dos meliantes, vez que, diferente deles, somos agentes públicos a quem se delegou a obrigação de fazer valer os direitos dos acusados. Não está entre nossas obrigações o direito de afrontar a ordem jurídica.

Processo nº 81622005
Ação Penal Pública
Acusado: Luis Augusto Araújo Pinto
Vítima: Antonio Carlos Maranhão, vulgo “Negão”

Vistos, etc.

Cuida-se de ação penal que move o MINISTÉRIO PÚBLICO contra LUIS AUGUSTO ARAÚJO PINTO, por incidência comportamental no artigo 121,§2º, IV, do CP.
O acusado está preso, em face de decreto de prisão preventivo editado neste juízo, desde o 10 de novembro de 2004. Não há, na minha avaliação, nenhum argumento de ordem legal que justifique tamanho excesso. O acusado, assim, está submetido a injustificável constrangimento ilegal. Deve ser, por isso, colocado em liberdade, sem mais tardança.
O acusado, é verdade, tem péssimos antecedentes. Não posso, só por isso, no regime de liberdades e de respeito aos direitos dos acusados em que vivemos – ou que deveríamos viver – manter a prisão do acusado indefinidamente, por mais perigoso e violento que seja.
Dos levantamentos que realizei no banco de dados desta comarca, o acusado já foi pronunciado em duas varas e tem contra si pelo menos dois títulos executivos. Em nenhuma das decisões foi decretada a sua prisão. Acho que ficam esperando que apenas nesta sétima vara se faça justiça. Só que, diante do quadro que se descortina sob os meus olhos, aqui, agora, não se está fazendo justiça. Aqui, agora, em face do tempo de prisão do acusado, já se está afrontando a ordem jurídica; ordem jurídica que juramos defender.
É curial que o processo me veio concluso para decidir acerca da admissibilidade da acusação. Poder-se-ia supor que, por isso, dever-se-ia pronunciá-lo e manter a sua prisão, alegando que, com essa decisão se legalizaria a ilegalidade de sua prisão. Assim não entendo a questão. O acusado não pode cumprir pena antes de ser condenado. A mantença de sua prisão, com a decisão de pronúncia, seria, a meu ver, uma desfaçatez, um caradurismo que não se compatibiliza com a atividade de um juiz garantista e num regime de franquias constitucionais, da qual avulta de importância aquela que prescreve a necessidade de que seja o acusado julgado em tempo razoável.
A pronúncia do acusado e a mantença de sua prisão agora, mascararia, pura e simplesmente, uma ilegalidade. O magistrado não é pago para isso. O magistrado deve saber até onde vai a tolerância. In casu, a mantença da prisão do acusado, com a sua pronúncia, seria, a olhos vistos, uma ignomínia, seria um deslustre, um desrespeito à Carta Magna vigente, que não tolera a submissão de acusados a constrangimento ilegal.
A pronúncia do acusado com a conseqüente mantença de sua prisão, seria uma arrogância do Poder Judiciário. Um magistrado garantista, que tenha a exata noção dos seus limites, não deve agir sob disfarce, sob o manto da dissimulação; deve, ao contrário, fazer da lei e da Justiça a sua arma para combater a intolerância, a sua trincheira de luta.
Todos nós sabemos o quanto esgarçada estão as agendas das Varas do Tribunal do Júri. O acusado, se pronunciado, após o trânsito em julgado da decisão (?) teria que aguardar, por vários meses, até que fosse julgado perante o Tribunal Leigo. Nessa hipótese, a sua prisão, agora em face desse novo título, se protrairia no tempo, perpetuando, consolidando o constrangimento ilegal que temos o dever de expungir.
Não tenho dúvidas de que haverá quem argumente que o melhor caminho seria a pronúncia e a mantença da prisão do acusado. Respeito aqueles que pensam dessa forma. Prefiro, nada obstante, antecipar a sua liberdade, pois que, só assim, se repara, sem mais delongas, a ilegalidade de sua prisão. Depois de colocado em liberdade o acusado, julgarei o processo, sem estar açodado pelo fantasma da ilegalidade de sua prisão que já me incomoda a mais não poder.
No dia de ontem tive o cuidado – exorbitando das minhas obrigações – de colher dados acerca dos processos a que responde o acusado. Das informações que obtive constatei que o mesmo responde a vários processos em varas diferentes. O estranhável (?), o lamentável, o deplorável é que em nenhum desses processos, ao que fomos informados oficiosamente, há prisão decretada contra o acusado. Eu não tenho a obrigação de, solitariamente, lutar contra eventuais desvios de conduta do acusado.
É cediço que o acusado deve, sim, ser julgado e, se for o caso, pagar pelos crimes que eventualmente tenha cometido. O caminho entre o processamento do acusado até o seu julgamento perante o Tribunal leigo não pode, no entanto, ser permeado por ilegalidades. Se assim procedermos, nós nos nivelamos ao pior dos meliantes, vez que, diferente deles, somos agentes públicos a quem se delega a obrigação de fazer valer os direitos dos acusados. Não está entre nossas prerrogativas a de afrontar a ordem jurídica.
Haverá que argumente que, em outras oportunidades, mantive a prisão de acusados com considerável excesso de prazo. Respondo a esse argumento dizendo que nunca tolerei, nem tolerarei excesso de prazo que extrapole o limite do razoável, como preconiza a Constituição Federal.
Tem-se afirmado, com razão, que o processo criminal não pode ficar sobre a cabeça de um réu, como a espada de Dâmocles, sem que se chegue a uma decisão. O tempo de prisão provisória de um acusado, sob qualquer ótica, não pode ficar ao alvedrio do magistrado. Tudo tem limite. Tudo tem que ter começo, meio e fim. Se, por qualquer razão, não se chega ao fim do processo em tempo razoável, não se pode, sob qualquer argumento, manter uma prisão, que, antes legal, se convolou numa ilegalidade.
A mantença da prisão do acusado, constato, malfere a sua dignidade como ser humano. Nesse contexto, malferida restará, de conseqüência, a Constituição Federal.
A melhor doutrina segue na mesma direção da tese aqui esposada, para quem é “inaceitável a delonga na finalização do processo de conhecimentol”, sobretudo o de caráter condenatório, “ com a ultrapassagem do tempo necessário à consecução de sua finalidade…”.

De relevo que se diga, nessa linha de argumentação, que nem mesmo os autores dos crimes tidos como hediondo devem suportar o excedimento do processo de conhecimento, estando presos. Nesse sentido a súmula n° 697 , do Excelso Supremo Tribunal Federal, segundo a qual todo acusado tem o direito de ser julgado em prazo razoável ou ser posto em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo, até mesmo os acusados de crimes hediondos.
Repito o que já disse acima. O signatário bem que poderia pronunciar o acusado e, se assim entendesse, colocá-lo em liberdade em seguida. Entendo, com a devida vênia dos que assim entendem a quaestio, que o constrangimento ilegal do acusado já não suporta mais um único dia de espera. A sua liberdade é pra agora, pra já, sem delongas, sem demora, sem procrastinação. Depois de colocado em liberdade, aí sim, com mais tempo vou ter condições de examinar a prova abrigada nos autos, para que dela extraia os elementos necessários à admissibilidade da acusação, ou, quem sabe, da impronuncia do acusado.
O acusado, na minha visão, não pode ser vítima do desprezo estatal. Se não foi possível concluir a instrução a tempo e hora, por culpa exclusiva do estado, que não se aparelhou para julgar os acusados em prazo razoável, o réu submetido a constrangimento ilegal deve ser colocado em liberdade, imediatamente.
Os acusados, todos sabem, o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas., segundo o art. 5º, LXXVIII , da CF, alhures mencionado. O réu não pode ser vítima do arbítrio estatal, como se vê em o caso sub examine. A mantença da prisão do acusado, depois de tanto tempo preso, afronta o ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.
Nesse sentido a decisão abaixo, do STF, verbis:

E M E N T A: PROCESSO PENAL – PRISÃO CAUTELAR – EXCESSO DE PRAZO – INADMISSIBILIDADE – OFENSA AO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (CF, ART. 1º, III) – TRANSGRESSÃO À GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ART. 5º, LIV) – “HABEAS CORPUS” CONHECIDO EM PARTE E, NESSA PARTE, DEFERIDO.
O EXCESSO DE PRAZO, MESMO TRATANDO-SE DE DELITO HEDIONDO (OU A ESTE EQUIPARADO), NÃO PODE SER TOLERADO, IMPONDO-SE, AO PODER JUDICIÁRIO, EM OBSÉQUIO AOS PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, O IMEDIATO RELAXAMENTO DA PRISÃO CAUTELAR DO INDICIADO OU DO RÉU.


– Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 – RTJ 157/633 – RTJ 180/262-264 – RTJ 187/933-934), considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu, mesmo que se trate de crime hediondo ou de delito a este equiparado.
– O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei.
– A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência.
– O indiciado ou o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não podem permanecer expostos a tal situação de evidente abusividade, ainda que se cuide de pessoas acusadas da suposta prática de crime hediondo (Súmula 697/STF), sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes. 
Devo dizer, para finalizar, adotando a mesma linha de argumentação que tenho adotado deste a vigência da EC nº 45/2004, que só é tolerável o tempo razoável de prisão. A prisão do acusado já extrapolou todos os limites. Não pode mais perdurar. Tem-se que fazer cessar o constrangimento ilegal a que está submetido o acusado. É o mínimo que posso fazer em nome da decência processual.
Tudo posto, relaxo a prisão do acusado, determinando, de conseqüência, a expedição do necessário alvará de soltura, para que o mesmo seja colocado em liberdade, imediatamente, se por outro motivo não se encontrar preso.
São Luis, 1º de março de 2007.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal

 

 

 

 

 

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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