Tuberculose e aspirina

Artigo enviado ao Jornal Pequeno para publicação no próximo domingo.

Os números assustam e podem nos levar a caminhos perigosos em torno da questão da maioridade penal. Explico.92,7% dos brasileiros são a favor da redução da maioridade penal de 18 anos para 16, segundo pesquisa da MDA. De acordo com a polícia civil do Rio, para ficar no exemplo mais visível, em abril foram apreendidos 246 adolescentes – 107 deles reincidentes. Em maio, foram 278 apreendidos, sendo 128 reincidentes. 

Os números, por óbvio, e porque estupefacientes, nos remetem à discussão da hora, que condiz com a redução da maioridade penal, tema sobre o qual pretendo refletir e compartilhar com o leitor, de forma desapaixonada, porém realista.

Anoto, de logo, que a questão da maioridade penal não deve ser discutida à luz do que podem traduzir, num primeiro olhar, os dados estatísticos. É preciso ir adiante na análise, com o necessário e inexcedível equilíbrio e sensatez. É necessário, nesse sentido, aferir, com responsabilidade e discernimento, sob quais condições os menores, que enriquecem as estatísticas, delinquiram, e por que,  no mesmo passo, reincidiram, para que se possa emitir um juízo de valor acerca dos dados estatísticos a que me reportei no preâmbulo dessas reflexões.

Consigno, inicialmente, valendo-me de uma máxima popular, que não se combate tuberculose com aspirina. Deve-se, sim, para fixação da terapia, diagnosticar o problema (a doença), para, a partir daí, ministrar o remédio certo e na dose certa, cuja panaceia, em face do tema sob retina, pode não ser a redução da maioridade penal para dezesseis anos, conquanto reconheça que, na sociedade, se viva essa expectativa, em face mesmo dos números assustadores que antes mencionei.

Tenho dito, e essa constatação não pode ser olvidada no exame da questão sob retina, que ninguém (a menos que se trate de portador de distúrbios mentais) entra no mundo do crime por prazer; com o menor, todos sabemos,  não é diferente. Diante dessa óbvia constatação, não consigo vislumbrar um menor, diante de duas possibilidades (uma, para seguir o caminho do bem, e a outra, para seguir o caminho da criminalidade),fazendo opção, conscientemente, pela que mais o degrade, pela que mais riscos lhe oferece.

É de rigor que se diga, conquanto não seja nenhuma novidade, que as razões pelas quais as regras de convivência são transgredidas são muito mais complexas do que se pode imaginar num primeiro olhar; com o menor transgressor não é diferente, razão pela qual se iludem os que pensam que a criminalidade refluirá, como num passe de mágica, com a simples diminuição da maioridade penal.

No exame dessa questão, o salutar é perscrutar qual a real responsabilidade do menor pelo crime que cometeu e sob quais condições o crime foi perpetrado.É necessário, de mais a mais, perquirir se a ação criminosa deu-se por indução ou por opção consciente do infrator, para que não se incorra na leviana constatação de que a criminalidade se combate apenas endurecendo a resposta do Estado em face das transgressões perpetradas.

É possível, depois de analisar o cenário no qual se deu a transgressão, e as razões pelas quais o menor debutou no mundo do crime, concluir que o transgressor, em face do crime cometido, pode, sim, com muita probabilidade, ter sido conduzido à sua prática, por razões que transcendam às conclusões que decorram de uma mera e isolada  análise de dados estatísticos.

É consabido que a conduta reprovável do indivíduo deve ser aferida diante da perspectiva de que pudesse ter agido de outra forma. Nesse sentido, reprova-se o agente, em face de sua opção pela prática do crime, quando lhe era possível atuar de conformidade com o direito, mas que, nessa perspectiva, tenha optado por agir contrariamente ao exigido pela lei.

A questão, à luz dessas reflexões, é saber se o menor que se envolveu com a prática de crimes, na maioria das vezes, ou na quase totalidade das vezes, teve condições de fazer uma escolha, de optar, por exemplo, entre ir ao colégio e pegar numa arma de fogo, de trafegar pelo quase sempre desafiante caminho do bem e de transitar pelo pavimentado e quase sempre mais fácil e, às vezes, sedutor caminho da criminalidade.

Penso que sem que se responda a essas e outras questões igualmente relevantes, é temerário decidir acerca da redução da maioridade penal, tema que tem suscitado debates apaixonados, mas, ao mesmo tempo, irracionais, posto que forjados a partir da premissa equivocada de que o menor de dezoito anos, podendo agir de outro modo, tenha optado pela criminalidade.

Vou repetir o que tenho dito, reiteradamente: não é compreensível que um menor, podendo frequentar uma boa escola e dividir um bom vídeo-game com os colegas, convivendo pacificamente em sociedade, nela se submetendo apenas aos riscos próprios do mundo moderno, prefira, ao invés do livro e/ou do tablet, a arma de fogo.

Claro que em face da complexidade do tema ele não se esgota num artigo, cuja pretensão é, tão somente, concitar à reflexão acerca de um tema que tem dividido a atenção do brasileiros, sobretudo em face da crescente e incontrolável criminalidade que tem infernizado a nossa vida.

Para finalizar, importar reafirmar que o que pretendo com essas linhas é apenas concitar à reflexão, para que não se cometa o erro de imaginar que se possa  combater uma dor de cabeça separando-a do pescoço.

*É desembargador do Tribunal de Justiça da Estado do Maranhão

E-mail: jose.luiz.almeida@globo.com

Blog: www.joseluizlameida.com

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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