Artigo enviado ao jornal Pequeno para publicação

Nossas crenças

José Luiz Oliveira de Almeida*

Nas nossas relações sociais revelamos, sem nenhuma dificuldade, sem nenhum acanhamento, os filmes e livros favoritos, os carros da nossa predileção, as lojas da nossa preferência, os ambientes que gostamos de frequentar, o whisky ou a cerveja que gostamos de tomar etc.

Essas revelações, as fazemos sem o menor constrangimento, sem nenhuma restrição, em qualquer ambiente, qualquer dia, hora ou circunstância, porque são, digamos, particularidades, preferências que não nos constrangem, que não agridem, e que não despertam, de rigor, a curiosidade de ninguém; a menos que se trate de um(a) famoso(a), pois que, nesse caso, a curiosidade em relação a ele(a) deixa de ser natural para ser patológica.

Assim como revelamos as nossas predileções, revelamos, noutras oportunidades, mas em circunstâncias peculiares, as nossas crenças, ou melhor, algumas das nossas crenças, muitas das quais introduzidas em nós pelos mais antigos; algumas delas, por evidente, sem nenhuma base científica, mas, ainda assim, crença, e, como tal, deve ser respeitada. Nesse sentido, cremos, por exemplo, que chuva fina faz mal à saúde, que não se deve comer manga com febre ou que, depois de uma cirurgia, não se deve degustar alimento reimoso  (corruptela de reima ou reuma, que significa algo que ofende).

Essas são algumas das crenças que não nos constrangemos em  revelar, que o fazemos sem receio, sem acanhamento – numa conversa informal, à beira de uma piscina, na praia, no bar ou no interior de um ônibus coletivo.

A verdade é que, quando cremos, não nos envergonhamos de crer, pois acreditar (aqui usado no mesmo sentido de crer) é uma necessidade, mesmo naquilo que a ciência conteste, ainda que desestimulados por alguns. A nós nos basta, em face das nossas necessidades espirituais, crer, simplesmente crer; crer, muitas vezes, nos basta, nos fortalece, faz bem para a alma e para o coração – e, segundo estudos, melhora até a nossa imunidade.

Fazer o quê?  São crenças e não se fala mais nisso, afinal, ninguém  vive ser crer em algo. Crê-se, até, em pregador, como recentemente noticiado, que tira o diabo do coro das “pecadoras” constrangendo-as a fazer  sexo com ele. É que, repito, é preciso crer, caso contrário, para muitos, a vida se tornaria um inferno. A nossa crença é tamanha que, muitas vezes, acreditamos até em promessas políticas, mesmo dos que, de quatro em quatro anos, voltam aos mesmos lugares, com o mesmo discurso, fazendo as mesmas promessas não cumpridas. Fazer o quê?

Pois bem. Essas são algumas crenças que revelamos,  até com certa naturalidade, porque estão, afinal, incorporadas ao nosso dia a dia. Não há, pois, como negá-las, pois as confidenciamos, repito, a qualquer momento, em qualquer lugar, sem nenhum pudor.

A nós não nos causa nenhum constrangimento admitir, por exemplo, que jogamos um lençol sobre o espelho para não atrair raios ou que só levantamos com o pé direito, para começar bem o dia, desde que um gato preto, numa sexta-feira 13, não cruze o nosso caminho.

Mas ao lado das crenças reveláveis, as ditas costumeiras, muitas delas racionais  (onde há fumaça, há fogo, ou quem bebe tende a se embriagar) – outras, nem tanto -, há o que chamo de  falsas crenças ou crenças mistificadas ou dissimuladas; aquelas que, por prudência, covardia ou conveniência, muitas vezes preferimos que não saiam, como as concebemos, da nossa subjetividade. Imagine só um magistrado admitindo, publicamente, que no nosso país a justiça é feita para uma minoria ou que a justiça criminal, especificamente, tem os olhos voltados apenas para uma determinada classe de pessoas! Imagine esse mesmo magistrado admitindo que, por culpa do próprio Poder Judiciário, muitos crimes ficam(ram) impunes! Ele crer nisso, sabe disso, mas, por prudência ou conveniência, prefere não revelar, pois não é prudente, não é conveniente fazê-lo. Essas são algumas das muitas crenças que não deixamos escapar da nossa subjetividade, por temor, receio, vergonha ou constrangimento.

Vou adiante. Muitos são os que sabem que, de rigor, a  vontade do homem não é livre, que não mandamos em nós mesmos, e que, muitas vezes, não somos capazes sequer discernir entre o bem e o mal, dependendo das nossas circunstâncias ou das nossas conveniências. Por prudência ou recato, fingimos crer que a realidade é diferente, razão pela qual e pelos mesmos motivos antes elencados, mantemos a nossa verdadeira crença aprisionada em nossa subjetividade.

Noutro giro, há os que fingem crer, porque não convém revelar no que efetivamente  acreditam, que um dia a corrupção deixará de existir, que o homem e a mulher serão tratados com igualdade (na medida de suas desigualdades),  que não haverá mais discriminação em face da cor e da posição social, que o Poder Judiciário um dia será célere, que as pessoas que amamos nos amam com reciprocidade, que os filhos do vizinho levam os nossos à perdição, que erramos induzidos pelos outros, etc.

Lado outro, imagine, agora, um médico admitindo que a vida do paciente escapou-lhe por incompetência ou descaso. É muito provável que ele jamais o fará. Ele, ao reverso, mesmo diante das evidências, tenderá, sempre, a crer, ou fingir que crer, a se convencer da crença, por que isso lhe convém, que tudo não passou de uma fatalidade e que ele, dentro do que era possível, agiu com o necessário desvelo.

Como se vê, muitas das nossas verdadeiras crenças – crença no sentido mais amplo do termo – preferimos manter no recôndito da nossa alma,  porque nem sempre é conveniente ou prudente revelar as coisas nas quais acreditamos ou que temos ciência, por isso vamos dissimulando, dourando a pílula, por que não nos convém, muitas vezes, enfrentar a realidade.

E assim vamos vivendo: enganando-nos aqui, nos iludindo acolá, dissimulando aqui, fingindo mais adiante, de acordo com as nossas crenças – ou falsas crenças.

É a vida, dirão! É a vida, direi!

É desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão

Blog: www.joseluizalmeida.com

Email: jose.luiz.almeida@globo.com

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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