A clientela do Direito Penal e o Princípio da Isonomia

É do conhecimento de quem milita na área criminal – Delegados, Promotores, Juizes, Agentes de Polícia, Policial Militar, etc – que o sistema penal seleciona os setores que deva alcançar. O Direito Penal, com efeito, fez uma flagrante e discriminatória opção pelos pobres, a quem se destina, prioritariamente, a persecução criminal, conquanto a lei penal, em tese, tenha como destinatários todos os súditos, desde que não sejam inimputáveis. A lei penal, ensina a melhor doutrina, “ se destina a todas as pessoas que vivem sob a jurisdição do estado brasileiro, estejam no território nacional ou estrangeiro” 1, mas, na prática, alcança somente os desvalidos, os desprotegidos, os pobres.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

Titular da 7ª Vara Criminal

Cuidam-se de reflexões acerca da clientela do direito penal.
Em determinado fragmento anotei:
  1. É claro que essa discriminação do sistema penal, com os seus tentáculos voltados sempre para os menos favorecidos, faz sedimentar em nós outros a nítida sensação de que o PRINCÍPIO DA ISONOMIA nada mais é que uma falácia, uma quimera, pois que se circunscreve, pelo menos aqui entre nós, apenas e tão-somente ao seu aspecto puramente formal.
  2. A CARTA POLÍTICA de 1988 adotou, sabe-se, o principio da igualdade de direito, “prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm direito o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico”.3 O legislador constituinte pretendeu, com a inserção do PRINCÍPIO DA ISONOMIA, vedar, sem conseguir, no entanto, “ as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça” 
A seguir, o artigo, por inteiro.
A norma penal tem valor absoluto e se dirige a todos, o que não significa, reafirmo, que a todos alcance. Esse aspecto, é de relevo que se diga, refoge, muitas vezes, do âmbito de atribuição de um magistrado. Ao magistrado – aquele que só tem compromisso com a sua consciência – se impõe o dever de aplicar a sanção penal ao infrator, indistintamente, seja ele pobre ou rico e ainda que se argumente que esse ou aquele criminoso do colarinho branco permaneça impune, malgrado contumaz agressor da ordem pública.
Com as considerações pretendo demonstrar que não desconheço que o sistema penal se vale da uma seleção dos setores mais humildes, para, ao invés de sujeitá-los a um processo de criminalização, submetê-los a um processo de fossilização, os erigindo à condição de bode expiatório para os excessos do sistema, que os expõe, às vezes, até, à violência física, com o beneplácito, o que é mais grave, de alguns responsáveis pela persecução criminal, que fingem que desconhecem os métodos heterodoxos de alguns maus policiais para arrancar confissões.
Essa é a realidade nua e crua do nosso sistema penal, na sua função selecionadora dos tipos penais, os quais só se destinam , lamentavelmente, às pessoas mais humildes da sociedade, com o que assegura a hegemonia do setor dominante, setor que, é consabido, passa, quase que absolutamente, à ilharga da persecução criminal; setor privilegiado que fica pairando sobre todos nós, imune a qualquer ação persecutória, reafirmando, de efeito, a capacidade selecionadora e discriminatória da lei penal. Nós outros, responsáveis pela persecução criminal, imaginamos que estamos desempenhando um papel relevante na sociedade, prendendo e condenando apenas os desajudados, sem nos dar conta de que somos, em verdade, apenas um instrumento de dominação. Enquanto nos limitamos a enfrentar a pequena criminalidade – e devemos fazê-lo, sob pena de estabelecer-se a anarquia – , os grandes criminosos, aqueles que subtraem as verbas destinadas à saúde, ad exempli, permanecem impunes, acima do bem e do mal, cultivando os amigos que têm no poder.
A propósito NILO BATISTA, refletindo acerca do capitalismo e Direito Penal e da discriminação da persecução criminal em nosso país, afirma que “quando alguém fala que o Brasil é o país da impunidade, está generalizando indevidamente a histórica imunidade das classes dominantes. Para a grande maioria dos brasileiros – do escravismo colonial ao capitalismo selvagem contemporâneo – a punição é um fato cotidiano. Essa punição se apresenta implacavelmente sempre que pobres, negros ou quaisquer outros marginalizados vivem a conjuntura de serem acusados de crimes interindividuais ( furtos, lesões corporais, homicídios, estupros, etc . Porém essa punição permeia principalmente o uso estrutural do sistema penal para garantir a equação econômica. Os brasileiros pobres conhecem bem isso. Ou são presos por vadiagem, ou arranjem rápido emprego e desfrutem do salário mínimos ( punidos ou mal pagos). Depois que já estão trabalhando, nada de greves para discutir o salário, porque a polícia prende e arrebenta (punidos e mal pagos)” 2
É claro que essa discriminação do sistema penal, com os seus tentáculos voltados sempre para os menos favorecidos, faz sedimentar em nós outros a nítida sensação de que o PRINCÍPIO DA ISONOMIA nada mais é que uma falácia, uma quimera, pois que se circunscreve, pelo menos aqui entre nós, apenas e tão-somente ao seu aspecto puramente formal.
A CARTA POLÍTICA de 1988 adotou, sabe-se, o principio da igualdade de direito, “prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm direito o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico”.3 O legislador constituinte pretendeu, com a inserção do PRINCÍPIO DA ISONOMIA, vedar, sem conseguir, no entanto, “ as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça” 4.
MANUEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, preleciona, com lucidez, que o PRINCÍPIO DA IGUALDADE não é absoluto, pois que “as próprias constituições ao consagrá-lo nem por isso renegam outras disposições que estabelecem desigualdade” 5, não se podendo, por isso, invocar o mencionado princípio onde a Constituição, explicita ou implicitamente permite a desigualdade. É a adoção pura e simples da máxima aristotélica que preconiza o tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade. A par dessa constatação, devo grafar que o que me inquieta, como inquieta a muitos, são diferenciações arbitrárias, as discriminações, como se vê em relação à clientela do Direito Penal.
A Constituição da República, ao instituir o PRINCÍPIO DA IGUALDADE, estabeleceu que, diante de situações iguais, deve-se dar tratamento igualitário, sem fazer distinção de qualquer natureza, razão porque tal princípio “deve constituir preocupação tanto do legislado como do aplicador da lei”6, o que não se vê, entrementes. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE inserto em nossa CONSTITUIÇÃO deveria, com efeito, operar em dois planos distintos, ou seja, quando da elaboração das leis, impedindo a criação de tratamentos abusivamente diferenciados e, noutro plano, impondo à autoridade pública “aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária , sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social 7.Nada obstante, o que se vê no dia-a-dia é uma clara discriminação no atuar das autoridades públicas, as quais, sem disfarce, discriminam, sim, os destinatários da norma penal. A norma penal, infelizmente, só tem validade, de regra, para as camadas mais humildes da sociedade, em que pese, como afirmei acima, se destine, em tese, a todos os súditos. A discriminação, nesse caso, começa lá no preâmbulo da persecução criminal, ou seja, na POLÍCIA JUDICIÁRIA – a POLÍCIA MILITAR não passa ao largo – a qual, cuidando a investigação de crime imputado às pessoas desremediadas, age com denodo, com altivez e sofreguidão – é a aplicação da máxima dura lex sed lex – para, no mesmo passo, se omitir, quando os envolvidos são egressos das classes mais favorecidas, os quais, quando não obstam a persecução criminal ainda na sua fase preliminar, a impedem de prosseguir na sua fase secundária, muitos vezes como trancamento da ação penal no seu nascedouro, ou com a reforma da decisão de um juiz singular mais destemido – e atrevido aos olhos das classes dominantes.
É claro que, em face e por causa dessa flagrante discriminação, não se pode simplesmente deixar de aplicar uma sanção contida em uma norma incriminadora em desfavor do infrator desvalido, apenas e tão-somente porque esse ou aquele infrator do colarinho branco passou ao largo da lei e prossegue acintosamente assaltando os cofres públicos. O que se deve fazer é, ao reverso, continuar punindo os pequenos delinqüentes, mas agindo com pertinácia, no sentido de punir o criminoso de colarinho branco, numa luta incessante e sem trégua, até que se crie uma cultura punitiva que alcance todo e qualquer delinqüente, seja ele egresso da classe dominante ou da classe oprimida. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 DOTTI, René Ariel,in Curso de Direito penal, Parte geral, 2ª edição, Editora Forense, 2004, p.233)

2 BATISTA, Nilo, in Punidos e Mal Pagos – Violência, Justiça, Segurança Pública e Direito Humanos No Brasil de Hoje, 1990, Editora Revan, p. 38/39.

3 MORAIS, Alexandre, in Direito Constitucional, 18ª Edição, Editora Atlas,2005, p. 31

4 MORAIS,Alexandre, ibidem.

5 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, in Curso de Direito Constitucional, editora Saraiva, 17ª edição, p.242

6 ARAÚJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano, in Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, p. 67


 

7 MORAIS, Alexandre, , ob. cit. p. 32

 

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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