…É como voto, Senhor Presidente

“[…]”Conceder a segurança pleiteada seria, a meu ver, autorizar o Estado a continuar desmerecendo, desrespeitando, afrontando, humilhante, aviltando, enfim, a sua população carcerária”[…]”

Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

Relator


Tem-se afirmado, com razão, que uma boa oportunidade pode não aparecer duas vezes. Nesse sentido os apotegmas : “um cavalo encilhado (arreado) não passa duas vezes no mesmo lugar”. Ou, com Geraldo Vadré, “quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Ou, ainda, “raio não cai no mesmo lugar duas vezes”

Tenho a mais absoluta convicção que nós, desembargadores da área criminal, perdemos uma grande oportunidade, no dia 14 do corrente, subscrevermos uma decisão histórica, nos autos do mandado de segurança nº 7199/2010, contra ato do juiz de Direito da 1ª Vara Criminal de Bacbal.

Explico.

Enquanto relator do writ suso mencionado, entendi – e, claro, votei nesse sentido – que o ato do colega de Bacabal, que interditou algumas cadeias públicas, foi, rigorosamente, legal, daí que votei pela denegação da segurança, em face do mandamus impetrado pelo Estado do Maranhão. Fui venciado, no entanto. Nenhum dos sete desembargadores acompanhou meu voto. Acho, todavia, que se tivéssemos decidido pela denegação da segurança, teríamos dado um passo relevantíssimo no sentido de fazer desmoronar as masmorras do Estado, onde os presos são tratados de forma desumana e indigna.

É claro que todos os votos contrários ao meu entendimento merecem de mim o maior respeito, mesmo porque não foram votos irresponsáveis, mas de profissionais que, tanto quanto eu, têm responsabilidade de bem decidir. Eu só me permito, no entanto, é discordar, democrática e respeitosamente.

Eu acho – e vou continuar achando -, conquanto continue respeitando, a mais não poder, os votos dos meus colegas, que o Estado não tem “direito líguido e certo” de ferir a dignidade dos presos de justiça. Se o colega que interditou as delegacias foi açodado, ou não, essa é uma questão, ao meu ver, para ser debatida em sede administrativa; nunca em sede de mandado de segurança.

De qualquer sorte, o Tribunal decidiu soberanamente e isso, para mim, é indiscutível. Persisto, no entanto, firmando a mesma posição. O tempo dirá se tenho razão, se estou certo ou errado.

Antes do julgamento, encaminhei aos meus colegas alguns dos fragmentos com os quais eu votava pela denegação da segurança, os quais transcrevo a seguir:

MANDADO DE SEGURANÇA Nº 7199/2010 – Bacabal

IMPETRANTE(S): Estado do Maranhão

PROCURADOR: Procurador Geral do Estado

AUTORIDADE COATORA: Juiz de Direito da 1ª Vara da comarca da Bacabal

RELATOR: Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

SÍNTESE DOS ARGUMENTOS ALBERGADOS MANDAMUS

I – O Estado do Maranhão impetrou o presente mandamus, contra ato do MM. Juiz de Direito da 1ª Vara de Bacabal, o qual, através da Portaria nº 01/2010, determinou a interdição das celas das delegacias de Bacabal, Lago Verde, Conceição do Lago Açu e Bom Lugar, com a transferência das pessoas ali custodiadas para outras unidades prisionais do Estado, que estivessem em melhores condições, às expensas da Delegacia Regional de Bacabal, até ulterior construção de novos estabelecimentos.

II – O impetrante, em suas razões, alega a impossibilidade de dar cumprimento à referida determinação, considerando que a situação de outras unidades prisionais do Estado é semelhante a das interditadas, e se agravaria ainda mais se recepcionasse os presos das referidas localidades, além de afastá-los da comunidade onde vivem as respectivas famílias.

III – Consigna, ainda, que a construção de novas unidades carcerárias implica em prévia dotação orçamentária.

LIMINAR NO PLANTÃO

I – Diante do quadro apresentado, às fls. 20/23, o Des. plantonista decidiu, liminarmente, pela suspensão dos efeitos da Portaria nº 01/2010.

II – DENEGAÇÃO DA ORDEM. EXCERTOS RELEVANTES DO VOTO.

I – A superpopulação dos presídios é fato de grande repercussão nacional e que tem ganhado notoriedade nos noticiários, em especial quando ocorrem as suas consequências, tais como: violência nos cárceres, motins, rebeliões, morte, fugas em massa, entre outras.

II – Até onde alcança meu olhar, a atitude do MM. Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Bacabal teve como escopo apresentar uma resposta para essa questão, numa tentativa de solucionar, de alguma forma, o quadro grave que se apresentava diante dele, como se depreende da Portaria nº 01/2010 (fls. 14/17)

III – O argumento de que esse fato se repete em outros estabelecimentos, ou que não há disponibilidade orçamentária para implementar solução, ou que as verbas são escassas, não serve para amparar o que se pretende ser direito líquido certo em manter indivíduos presos fora de quaisquer condições mínimas exigidas em lei.

IV – Ademais, o magistrado, atuando na comarca, próximo à realidade prisional, e com os olhos voltados para a implementação da justiça criminal, está amparado por lei para determinar ou não a necessidade de interdição, nos termos do art. 66, VII, da Lei de Execução Penal.

V – Nessa linha de pensar, se as condições fornecidas aos presos provisórios são inadequadas, ou melhor, degradantes, e assim constatadas pelo juiz da execução, este tem o dever de interditar o estabelecimento prisional, a fim de garantir o respeito à dignidade humana inerente à pessoa, preconizado pela nossa Lei Maior.

VI – Esse tem sido o entendimento adotado pelos nossos sodalícios, cuja ementa transcrevo a seguir:

CONSTITUCIONAL. MANDADO SEGURANÇA. CADEIA PÚBLICA. AUSÊNCIA CONDIÇÕES MÍNIMAS. OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE PESSOA HUMANA. INTERDIÇÃO. POSSIBILIDADE. DESRESPEITO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. INOCORRÊNCIA. Restando demonstrado, inequivocamente, que a cadeia pública não reúne as condições mínimas necessárias ao seu regular funcionamento, representando não só um desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana bem como um perigo para toda a coletividade, que se vê amedrontada com a possibilidade de novas fugas, irretocável a atitude da autoridade coatora de decretar a sua interdição. Conforme precedentes do Supremo Tribunal Federal, a atribuição de tal incumbência ao Poder Judiciário, ainda que em hipóteses excepcionais, não configura qualquer desrespeito ao princípio da separação dos poderes, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional. (ADPF 45) .

VII – Nos autos, o que se confere, são conjecturas, meras afirmações acerca da impossibilidade de dar cumprimento à determinação da autoridade coatora, sob a alegação de que outras unidades prisionais existentes no Estado não poderiam abrigar os detentos sob custódia nas celas interditadas, ou que não existe previsão orçamentária para construção de novos estabelecimentos.

VIII – A meu juízo, o Estado não tem direito líquido e certo de tratar de forma desumana a população carcerária. Ao estado, noutro giro, não é dado o direito de fazer cortesia com a dignidade das pessoas, ainda que respondem a processo em face de um ilícito penal.

IX – Não basta, para fins de mandado de segurança, que a pretensão ajuizada seja admissível perante o nosso ordenamento jurídico. Urge que assome no caso concreto o direito líquido e certo, que é a condição primária e essencial ao instituto do mandado de segurança.

X – Num Estado Democrático de Direito todos estão submetidos ao império da lei. Com o Poder Executivo, nesse contexto, não pode ser diferente. O Poder Executivo, sobreleva gizar, não tem o direito de espezinhar, afrontar, vilipendiar o direito de ninguém, ainda que esse “ninguém” seja um encarcerado.

XI – A garantia de que todos estão submetidos ao império da lei seria inócua, se fosse reconhecido ao Estado o direito de maltratar os presos de justiça.

XII – É um equívoco grave, e um inqualificável engano supor que algum ente jurídico tenha o direito de tratar de forma desumana a população carcerária, máxime se esse ente for o próprio Estado, que tem o dever, ao reverso, de agir no sentido de dar a todos os seus cidadãos, encarcerados ou não, criminosos ou não, primários ou reincidentes, ricos e pobres, bonitos e feios, um tratamento condizendo com a dignidade da pessoa humana.

XIII – O Princípio da Dignidade Humana situa o homem como ponto central de todo o ordenamento jurídico e, nesse sentido, do próprio Estado. O homem é o protagonista, quer seja nas suas relações com o Estado, quer seja nas relações privadas, e isto deveria bastar para repelir qualquer tratamento atentatório à sua dignidade por parte de outras pessoas e dos poderes públicos.

XIV – O Princípio da Dignidade Humana como fundamento do Estado Democrático de Direito coloca o homem como centro de toda a organização política e do próprio Direito.

XV – É de relevo que diga, nessa senda, que não é o homem que está a serviço do aparelho Estatal; é este que deve servir ao homem para que atinja os ideais de vida e de sua própria realização pessoal, que em última instância é a busca incessante de sua felicidade.

CONCLUSÃO

I – Com as considerações supra, e em desacordo com o parecer da Procuradoria de Justiça, denego a segurança, a fim de restaurar os efeitos da Portaria nº 01/2010, expedida pela autoridade coatora, cassando a liminar antes deferida.

A seguir, o voto, por inteiro.

Câmaras Criminais Reunidas

Sessão do dia 14 de maio de 2010

Mandado de Segurança nº 7199/2010-Bacabal

Impetrante: Estado do Maranhão

Impetrado:Juiz de Direito da 1ª Vara da comarca de Bacabal

Relator: Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida


VOTO

O Senhor desembargador José Luiz Oliveira de Almeida: – O Estado do Maranhão impetrou o presente mandamus, contra ato do MM. Juiz de Direito da 1ª Vara de Bacabal, o qual, através da Portaria nº 01/2010, determinou a interdição das celas das delegacias de Bacabal, Lago Verde, Conceição do Lago Açu e Bom Lugar, com a transferência das pessoas ali custodiadas para outras unidades prisionais do Estado, que estivessem em melhores condições, às expensas da Delegacia Regional de Bacabal, até ulterior construção de novos estabelecimentos.

O impetrante, em suas razões, alega a impossibilidade de dar cumprimento à referida determinação, considerando que a situação de outras unidades prisionais do Estado é semelhante a das interditadas, e se agravaria ainda mais se recepcionasse os presos das referidas localidades, além de afastá-los da comunidade onde vivem as respectivas famílias.

Consigna, ainda, que a construção de novas unidades carcerárias implica em prévia dotação orçamentária, de modo que não poderia ser imediatamente concretizada.

Com a inaugural, foi juntado o ofício nº 39/10 (fls. 12/13), no qual o Delegado Regional de Bacabal noticia ao Superintendente de Polícia do Estado a situação grave em que se encontram os presos retirados das celas interditadas por determinação judicial, os quais foram alojados em viaturas, no pátio da Delegacia Regional.

Diante do quadro apresentado, às fls. 20/23, o Des. plantonista decidiu, liminarmente, pela suspensão dos efeitos da Portaria nº 01/2010, com reativação da parte carcerária das delegacias interditadas, considerando a urgência da medida, a fim de possibilitar o retorno dos presos ao local de onde foram retirados.

Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço da segurança.

Analisando o pleito do impetrante, necessário tecer, antes, algumas considerações.

A constatação do MM. Juiz de Direito de Bacabal das condições em que se encontra população carcerária daquela localidade e adjacências, não é um acontecimento isolado.

A superpopulação dos presídios é fato de grande repercussão nacional e que tem ganhado notoriedade nos noticiários, em especial quando ocorrem as suas consequências, tais como: violência nos cárceres, motins, rebeliões, morte, fugas em massa, entre outras.

Essa realidade causa grande insegurança na sociedade e releva a falta de humanidade do Estado e a omissão com que vem tratando a situação, contribuindo para a desmoralização e o descrédito das instituições, o que, ao invés de coibir as práticas ilícitas, acaba por contribuir para a expansão da criminalidade.

Até onde alcança meu olhar, a atitude do MM. Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Bacabal teve como escopo apresentar uma resposta para essa questão, numa tentativa de solucionar, de alguma forma, o quadro grave que se apresentava diante dele, como se depreende da Portaria nº 01/2010 (fls. 14/17), cujo trecho trago à colação, in verbis:

“[…]”Considerando que, em inspeção à carceragem da Delegacia do 1º Distrito de Polícia de Bacabal, de Lago Verde e Conceição do Lago Açu constatei que os presos que ali se encontram disputam espaço em celas superlotadas, numa média de 4 (quatro) pessoas por metro quadrado, com o agravante da falta de ventilação, de iluminação e de condições mínimas de higiene, inclusive não dispondo de espaço para dormir ou mesmo de local para fazerem suas necessidades fisiológicas”[…]”

Não há dúvidas que a visão descrita pela autoridade coatora requer tomada urgente de providências. E, embora seja dever do Estado-administrador tutelar a integridade física e moral dos presos, a teor do que dispõe o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal vigente, também cabe ao Poder Judiciário zelar pelo cumprimento desse princípio.

Na esteira desse raciocínio, como compreender pudesse a autoridade coatora “virar as costas” ao vislumbrar a ausência das mais elementares condições para manutenção dos detentos recolhidos naquelas unidades prisionais?

O argumento de que esse fato se repete em outros estabelecimentos, ou que não há disponibilidade orçamentária para implementar solução, ou que as verbas são escassas, não serve para amparar o que se pretende ser direito líquido certo em manter indivíduos presos fora de quaisquer condições mínimas exigidas em lei.

Se o impetrante entende que a transferência dos presos poderia trazer insegurança social, deixou de perceber a falta de segurança decorrente do quadro descrito na portaria ora impugnada, tão grave a ponto de ensejar a decretação de medida extrema como é a intervenção.

Quanto à necessidade de dotação orçamentária para a construção de novos presídios, anoto que essa alegação só ilustra a falta de prioridade com que é tratado o assunto, de longa data, posto que, como bem observou a autoridade coatora na indigitada portaria, “essa realidade tem se tornado corriqueira” (fls. 14).

Ademais, o magistrado, atuando na comarca, próximo à realidade prisional, e com os olhos voltados para a implementação da justiça criminal, está amparado por lei para determinar ou não a necessidade de interdição, nos termos do art. 66, VII, da Lei de Execução Penal.

A respeito desse dispositivo, anoto a lição de Ricardo Antonio Andreucci[1], cujo excerto transcrevo abaixo, litteris:

“[…]”

O sistema de execução penal traçado pela Lei 7.210/84 pressupõe o correto funcionamento do aparato administrativo e judicial, visando atender aos fins de punição, prevenção e ressocialização a que se destina.

Para tanto, devem os estabelecimentos prisionais funcionar adequadamente, cabendo ao juiz da execução, em atividade puramente administrativa, fiscalizá-los e, encontrando irregularidade grave, que compromete os fins da execução penal, interditá-los, promovendo, em seguida, as providências e comunicações para que o problema seja sanado.

Trata-se, em verdade, de atribuição conferida por lei ao juiz, que, jurisdicionalmente – e não administrativamente – poderá decidir pela intervenção de estabelecimento penal

“[…]”

Nesse contexto, importa registrar a lição de Guilherme de Souza Nucci[2], da qual extraio o fragmento abaixo, ipsis verbis:

“[…]”

E insistimos: não se pode considerá-la uma decisão meramente administrativa, pois o juiz não tem, no exercício da sua função, nenhum liame com o Executivo, de modo a servir de fiscal do Governador para saber-se se as unidades prisionais atuam a contento. É o magistrado um fiscal da execução da pena e defensor da lei e dos condenados, pouco interessando a eventual conveniência do Poder Público em manter em funcionamento um lugar totalmente inapropriado aos fins aos quais se destina.

Nessa linha de pensar, se as condições fornecidas aos presos provisórios são inadequadas, ou melhor, degradantes, e assim constatadas pelo juiz da execução, este tem o dever de interditar o estabelecimento prisional, a fim de garantir o respeito à dignidade humana inerente à pessoa, preconizado pela nossa Lei Maior.

“[…]”

Esse tem sido o entendimento adotado pelos nossos sodalícios, cuja ementa transcrevo a seguir:

CONSTITUCIONAL. MANDADO SEGURANÇA. CADEIA PÚBLICA. AUSÊNCIA CONDIÇÕES MÍNIMAS. OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE PESSOA HUMANA. INTERDIÇÃO. POSSIBILIDADE. DESRESPEITO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. INOCORRÊNCIA. Restando demonstrado, inequivocamente, que a cadeia pública não reúne as condições mínimas necessárias ao seu regular funcionamento, representando não só um desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana bem como um perigo para toda a coletividade, que se vê amedrontada com a possibilidade de novas fugas, irretocável a atitude da autoridade coatora de decretar a sua interdição. Conforme precedentes do Supremo Tribunal Federal, a atribuição de tal incumbência ao Poder Judiciário, ainda que em hipóteses excepcionais, não configura qualquer desrespeito ao princípio da separação dos poderes, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional. (ADPF 45) [3].

Na mesma alheta:

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. ESTABELECIMENTO PRISIONAL. SUPERLOTAÇÃO. INTERDIÇÃO JUDICIAL POSSIBILIDADE. RESPEITO A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. O judiciário não podendo se afastar da função de controlar efetivamente a execução penal, mormente tendo em vista limitação de recursos materiais oficiais, como a falta de vagas nos presídios, a ausência das condições de habitabilidade, a alimentação razoável, etc., pena de inviabilizar o controle judicial do cumprimento efetivo da lei e, assim, acumpliciar-se à negligência oficial quando se refere às prisões, tornando-se parceiro indireto dessa inoperância e, com isto, resultar em graves lesões aos direitos fundamentais dos apenados e presos provisórios. Segurança denegada[4].

À luz do exposto, vejo que a atuação jurisdicional impugnada por meio do presente mandamus, visa restaurar o mínimo de condições estabelecidas em lei para a custódia de indivíduos em estabelecimentos penais.

Urge ressaltar, à guisa de reforço, que a situação em que se encontram as delegacias interditadas é resultado da omissão do Estado em implementar políticas públicas adequadas ao funcionamento dos estabelecimentos penais, de modo que, agora, é inaceitável que se utilize do mesmo argumento para manter essa conjuntura.

E, em sede de mandado de segurança, o direito que se pretende conquistar deve estar cabalmente comprovado, desmerecendo qualquer dilação probatória, ou seja, com prova pré-constituída, fatos incontroversos.

Nessa moldura, merece destaque o ensinamento de Ada Pellegrini Grinover[5], da qual extraio o trecho abaixo:

“[…]”

Como visto […], a prova é de excepcional relevância no mandado de segurança, pois a base da definição do direito líquido e certo repousa na indiscutibilidade dos fatos, que devem ser comprovados documentalmente, sem possibilidade de instrução probatória.5

“[…]”

No mesmo diapasão é a doutrina do insigne Alexandre de Moraes[6], o qual, acerca do tema, preleciona, ipis litteris:

“[…]”

Direito líquido e certo é o que resulta de fato certo, ou seja, é aquele capaz de ser comprovado, de plano, por documentação inequívoca. Note-se que o direito é sempre líquido e certo. A caracterização de imprecisão e incerteza recai sobre os fatos, que necessitam de comprovação.6

“[…]”

Nos autos, o que se confere, são conjecturas, meras afirmações acerca da impossibilidade de dar cumprimento à determinação da autoridade coatora, sob a alegação de que outras unidades prisionais existentes no Estado não poderiam abrigar os detentos sob custódia nas celas interditadas, ou que não existe previsão orçamentária para construção de novos estabelecimentos.

A meu juízo, o Estado não tem direito líquido e certo de tratar de forma desumana a população carcerária. Ao estado, noutro giro, não é dado o direito de fazer cortesia com a dignidade das pessoas, ainda que respondem a processo em face de um ilícito penal.

O mandado de segurança, todos sabemos, é ação civil de rito sumário que se destina

“[…]”

a afastar ofensa ou ameaça a direito subjetivo individual ou coletivo, privado ou público, através de ordem corretiva ou impeditiva da ilegalidade”[7]

“[…]”

Não basta, para fins de mandado de segurança, que a pretensão ajuizada seja admissível perante o nosso ordenamento jurídico. Urge que assome no caso concreto o direito líquido e certo, que é a condição primária e essencial ao instituto do mandado de segurança.

Não vejo, francamente, o direito líquido e certo que diz ter o impetrante, a autorizar a concessão do mandamus.

Não entrevejo, sinceramente, que o ato MM. Juiz tenha malferido algum direito subjetivo individual ou coletivo, afinal, nada é mais contraditório que afirmar que quem age sob os auspícios da lei o faça de forma ilegal.

Não custa redizer, ainda que o faça à exaustão, que ao Poder Judiciário compete, tão somente, observar os casos em que plasmada a ilegalidade do ato administrativo, frente à ordem jurídica vigente, o que, convenhamos, não é o que se verifica no caso presente, donde se vê e infere que a autoridade apontada coatora agiu rigorosamente de acordo com a lei, em defesa, sobretudo, da Carta Política em vigor, espezinhada, a mais não poder, em face das omissões do Poder Executivo diante dessas e de outras questões do mesmo matiz, que ferem a dignidade da pessoa humana.

Nessa linha de pensar e argumentar, trago à lume a lição do professor Alexandre de Moraes, que aponta na direção do verdadeiro significado do princípio da pessoa humana, revelando a sua dúplice concepção, verbis:

“[…]”

O principio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do individuo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição federal exige que lhe respeitem a própria. A Concepção dessa noção de dever fundamental resume-se a três princípios do direito romano: honestere (vive honestamente), alterum nonlaedere ( não prejudique ninguém) e suum cuique tribuere (dê a cada um o que lhe é devido)[8]

“[…]”

A pessoa humana, nessa senda, deve ser sempre o valor último, o valor mesmo de uma democracia, que o dimensiona e humaniza, razão pela qual não pode ser alvo do desprezo estatal, ainda que na condição de encarcerado, seja em face de uma decisão provisória, seja em face de uma sentença condenatória com trânsito em julgado.

Num Estado Democrático de Direito todos estão submetidos ao império da lei. Com o Poder Executivo, nesse contexto, não pode ser diferente. O Poder Executivo, sobreleva gizar, não tem o direito de espezinhar, afrontar, vilipendiar o direito de ninguém, ainda que esse “ninguém” seja um encarcerado.

A garantia de que todos estão submetidos ao império da lei seria inócua, se fosse reconhecido ao Estado o direito de maltratar os presos de justiça.

A propósito, importa consignar, com Fernando Capez, que a existência de um Estado de Direito não se verifica apenas

“[…]”

pela proclamação formal da igualdade entre todos os homens, mas pela imposição de metas e deveres quanto à construção de uma sociedade livre, justa e solidária; pela garantia do desenvolvimento nacional; pela erradicação da pobreza e da marginalização; pela redução das desigualdades sociais e regionais; pela promoção do bem comum; pelo combate ao preconceito de raça, cor, origem, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3º, I a IV); pelo pluralismo político e liberdade de expressão das idéias; pelo resgate da cidadania, pela afirmação do povo como fonte única do poder e pelo respeito inarredável da dignidade humana.[9]

“[…]”

Para José Afonso da Silva

“[…]”

a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”[10]

“[…]”

Sobreleva reafirmar que, verificada a total precariedade dos estabelecimentos prisionais em referência, alternativa não restou ao magistrado senão cumprir o dispositivo contido no art. 66, VIII, da Lei de Execução Penal, o que reveste de legalidade o ato administrativo impugnado, a não se configurar abuso de poder.

A meu ver, depois de tudo que analisei, não há ilegalidade a ser expungida na ação da autoridade impetrada, não existe ilicitude a autorizar a devolução do direito que diz ter o impetrante.

Não peco por excesso em trazer à colação, mais uma vez, a lição de Hely Lopes Meirelles, Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes, a propósito daquaestio iuris sob retina:

“[…]”

Mandado de segurança é o meio constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, lesado ou ameaçado de lesão por ato de autoridade, não amparado por habeas corpus ou habeas data, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerçam (CF, art. 5º, LXIX e LXX; art. 1º da Lei n. 12.016, de 7.8.2009) [11]

“[…]”

Resta claro, a par do exposto, que o mandado de segurança tem por objetivo a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, correspondendo estes últimos à possibilidade de reconhecimento do direito de plano, ou seja, à plena existência do direito ao tempo da impetração. A inexistência do direito líquido e certo, a toda evidência, impõe, nesse passo, a denegação da segurança, porquanto o mandamusnão se presta à dilação probatória.

É um equívoco grave, e um inqualificável engano supor que algum ente jurídico tenha o direito de tratar de forma desumana a população carcerária, máxime se esse ente for o próprio Estado, que tem o dever, ao reverso, de agir no sentido de dar a todos os seus cidadãos, encarcerados ou não, criminosos ou não, primários ou reincidentes, ricos e pobres, bonitos e feios, um tratamento condizendo com a dignidade da pessoa humana.

O Princípio da Dignidade Humana situa o homem como ponto central de todo o ordenamento jurídico e, nesse sentido, do próprio Estado. O homem é o protagonista, quer seja nas suas relações com o Estado, quer seja nas relações privadas, e isto deveria bastar para repelir qualquer tratamento atentatório à sua dignidade por parte de outras pessoas e dos poderes públicos.

Nesse diapasão, importa acentuar, o encarcerado – porque reconhecido como pessoa – submetido aos cuidados do poder estatal, merece receber tratamento digno, muito embora tenha violado as normas de convivência e de harmonia social.

O Princípio da Dignidade Humana como fundamento do Estado Democrático de Direito coloca o homem como centro de toda a organização política e do próprio Direito.

É de relevo que diga, nessa senda, que não é o homem que está a serviço do aparelho Estatal; é este que deve servir ao homem para que atinja os ideais de vida e de sua própria realização pessoal, que em última instância é a busca incessante de sua felicidade.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem fez constar em seu texto que ninguém será submetido a tratamento desumano e degradante (art. 5º). A Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José –, ao tratar dos direitos à incolumidade pessoal, prevê proteção à integridade moral do condenado na aplicação e na execução da pena (art. 5º, n. 1), respeito devido à dignidade inerente ao ser humano (art. 5º, n. 2) e à sua honra (art. 11, n. 2).

Nessa mesma linha, a Constituição Federal de 1988, seguindo as diretrizes do pensamento universal, assegurou aos presos respeito à integridade moral (art. 5º, XLIX), conforme a regra de que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III).

A Lei de Execução Penal, em seu artigo 40, impõe a todas as autoridades cuidado e respeito à integridade física e moral dos detentos, determinando que a execução da pena “tem por objetivo proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado”. O que, certamente, não se obterá se esses condenados ficarem expostos ao estigma da condenação e ao menosprezo da coletividade – e do próprio Estado – em face da retrógrada idéia de que a pena deve ser, acima de qualquer outra coisa, uma mera vingança estatal ao mal cometido.

Conceder a segurança pleiteada seria, a meu ver autorizar o Estado a continuar desmerecendo, desrespeitando, afrontando, humilhante, aviltando, enfim, a sua população carcerária.

Com as considerações supra, e em desacordo com o parecer da Procuradoria de Justiça, denego a segurança, a fim de restaurar os efeitos da Portaria nº 01/2010, expedida pela autoridade coatora, cassando a liminar antes deferida.

É como voto.

Sala das Sessões das Câmaras Criminais Reunidas do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em São Luís, ___ de ____de 2010.

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR


[1] Legislação Penal Especial. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 301.

[2] Leis Penais e Processuais Comentadas. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 66.

[3] TJMG – 4793678-45.2008.8.13.0000 – Relator: MARIA ELZA – Data do Julgamento: 30/04/2009 – Data da publicação: 20/05/2009.

[4] Mandado de Segurança Nº 70030988893, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aramis Nassif, Julgado em 16/09/2009.

[5] Recursos no Processo Penal. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. P. 330.

[6] Direito Constitucional. 21 ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 143.

[7] Hely Lopes Meirelles e outros, in Mandado de Segurança e Ações Constitucionais, 32ª edição, editora Malheiros, 2009, p.30

[8] Alexandre de Moraes, in Direitos Humanos Fundamentais:teoria geral comentários aos artigos 1º. a5º. Da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência, pp. 50, 51.

[9] Fernando Capez, Curso de Direito Penal, Parte Geral, Vol. I, Saraiva, 2005, p.9

[10] Curso de Direito Constitucional Positivo,Malheiros Editora, 2005, p. 105

[11] Mandado de Segurança e Ações Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 25/26.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “…É como voto, Senhor Presidente”

  1. Profissionais como o Desembargador José Luiz Almeida e como o Juiz De Paula (creio que foi ele o autos da decisão impugnada), corajosos, sensíveis e inteligentes, nos alimentam a alma e mantêm acesa a esperança de que dias melhores virão. Abrem mão da comodidade para enfrentar temas impopulares e que, de regra, são esquecidos.
    Muitas vezes só a indução da crise pode fomentar o debate e apontar soluções. Mas para isso, muito mais do que juristas, precisamos de bons homens, afinal, de que adiantam boas leis se não tivermos bons homens (Aristóteles)? São essas pessoas que mudam o destino de um povo, fazem história, orgulham e inspiram as novas gerações.
    Que Deus os abençôe e guarde.
    Sandro Pofahl Bíscaro
    Promotor de Justiça de Defesa do Consumidor – Imperatriz-MA

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