Arma de fogo sem potencialidade lesiva

Vou voltar ao tema a seguir, em face das divergências que há em torno da matéria, apenas com o objetivo de reafirmar aquilo que já venho dizendo – e decidindo -, desde que assumi a 2ª instância, com a plena convergência de entendimento dos meus pares.

Pois bem. Tenho entendido, e assim tenho decidido, que, nos crimes de porte ilegal de arma de fogo, é necessária a comprovação  da potencialidade lesiva do instrumento, não bastando, desde a minha compreensão, a mera indicação de perigo abstrato.

Tenho entendido, e assim tenho decidido, ademais, que, arma de fogo, ainda que tenha potencialidade lesiva, se está desmuniciada, também não autoriza a responsabilização de que a esteja portando, a menos que exista munição nas próximidades, aptas a serem usadas.

Tenho dito, nas sessões da 1ª Câmara, no que tenho sido secundado  pelos meus pares, que arma de fogo imprestável e arma de fogo sem municação, é a mesma coisa queum pedaço de pau, uma pedra ou qualquer outro instrumento capaz de produzir uma lesão contundente.

Inexistindo a prova pericial, capaz de atestar a potencialidade lesiva da arma e se, de outra banda, a arma está desmuniciada, o caminho, na minha interpretação, é o reconhecimento da atipicidade da conduta, com a consequente absolvição do acusado.

Colaciono decisão  no mesmo sentido:

RECURSO CRIME EM SENTIDO ESTRITO. – PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO (ARTIGO 14 DA LEI 10.826/2003) E DIRIGIR VEÍCULO AUTOMOTOR, EM VIA PÚBLICA, SEM A DEVIDA HABILITAÇÃO (ARTIGO 309 DA LEI 9.503/1997). – LAUDO QUE CONSTATA A IMPRESTABILIDADE DA ARMA DE FOGO. – ESCORREITA REJEIÇÃO DA DENÚNCIA NOS TERMOS DO ARTIGO 43, INCISO I, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. – PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. – DECISÃO MANTIDA. – RECURSO NÃO PROVIDO. I. Conforme Auto de Exame Descritivo de Eficiência e Potencialidade Lesiva de Arma de Fogo (fls. 24/25), ratificado pelo Termo de Constatação de Eficiência de Arma de Fogo (fls. 65), submetida a arma de fogo à prova de tiros, foi observado o não funcionamento dos mecanismos de propulsão, de engatilhamento e de disparo, não tendo funcionado na ação simples e também na ação dupla. II. “APELAÇÃO. PORTE ILEGAL DE ARMA. LEI N. 10.826/ 2003. ARMA DE FOGO DESMUNICIADA E INAPTA PARA CAUSAR DANOS. AUSÊNCIA DE LESIVIDADE. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ABSOLVIÇÃO. 1)SEGUINDO PRECEDENTES DESTA CORTE, NÃO SE CONFIGURA CRIME PORTAR ARMA DE FOGO DESMUNICIADA E INAPTA A SER UTILIZADA PARA CAUSAR DANOS OU EXPOR A PERIGO O BEM JURIDICO PROTEGIDO PELA NORMA. 2) NO CASO, INEXISTE LESÃO EFETIVA OU POTENCIAL A BEM JURÍDICO TUTELADO PELA LEI PENAL. 3) MANTIDA A ABSOLVIÇÃO DO ACUSADO NOS TERMOS DO ART. 386, VI, DO CPP. 4) APELO IMPROVIDO.”(TJGO. Processo nº 200603366982. Relator Des. PAULO TELES. 2ª Câmara Criminal. Julgado em 05/06/2007)
(TJPR – 2ª C.Criminal – RSE 0448856-4 – Guaíra – Rel.: Des. Lidio José Rotoli de Macedo – Unanime – J. 31.01.2008)

O Supremo Tribunal Federal, nos conduz na mesma direção:

“EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIADA. AUSÊNCIA DE LAUDO PERICIAL. ATIPICIDADE. Inexistindo laudo pericial atestando a potencialidade lesiva da arma de fogo resulta atípica a conduta consistente em possuir, portar e conduzir espingarda sem munição. Ordem concedida.
(HC 97811, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 09/06/2009, DJe-157 DIVULG 20-08-2009 PUBLIC 21-08-2009 EMENT VOL-02370-05 PP-00923)“

O STJ, não discrepa:

“Arma de fogo (porte ilegal). Arma sem munição (caso). Atipicidade da conduta (hipótese).

1. A arma, para ser arma, há de ser eficaz; caso contrário, de arma não se cuida. Tal é o caso de arma de fogo sem munição, que, não possuindo eficácia, não pode ser considerada arma.

2. Assim, não comete o crime de porte ilegal de arma de fogo, previsto na Lei nº 10.826/03, aquele que tem consigo arma de fogo desmuniciada.

3. Ordem de habeas corpus concedida.

(HC 70.544/RJ, Rel. Ministro  NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 25/11/2008, DJe 03/08/2009)”

Pois bem. Foi pensando assim que, nos autos da apelação nº 035969/2010, a 1ª Câmara Criminal, com voto condutor da minha autoria, decidiu, por unanimidade, absolver o apelante, cujo decisão publico a seguir.


PRIMEIRA CÂMARA CRIMINALSessão do dia 22 de fevereiro de 2011.

Nº Único: 0018124-32.2010.8.10.0000

Apelação Criminal nº 035969/2010 – São José de Ribamar

Apelante : J. P. S.
Defensor : C. S. de L.
Apelado : Ministério Público Estadual
Incidência Penal : Art. 14, da Lei 10.826/03
Relator : Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

Acórdão nº______________

 

 

 

Ementa: PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO.  AUSÊNCIA DE PERÍCIA TÉCNICA. NÃO COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE. CONDUTA ATÍPICA. APELO CONHECIDO E PROVIDO.

1. Se inexiste nos autos exame pericial capaz de atestar a potencialidade lesiva da arma de fogo encontrada em poder do recorrente, a figura é tida por atípica, em seu aspecto material, dada a ausência de comprovação de ofensividade à incolumidade pública.

2. Apelação provida.

 

 

 

Acórdão – Vistos, relatados e discutidos os presentes autos em que são partes as acima indicadas, ACORDAM os Senhores Desembargadores da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, por unanimidade e de acordo com o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, adequado em banca, em dar provimento ao recurso, reformando-se a sentença de Primeiro Grau, para absolver o apelante, nos termos do voto do Desembargador Relator.

Participaram do julgamento os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Antônio Fernando Bayma de Araujo (Presidente), Raimundo Nonato Magalhães Melo e José Luiz Oliveira de Almeida. Presente pela Procuradoria Geral de Justiça o Dr. Joaquim Henrique de Carvalho Lobato.

São Luís, 22 de fevereiro 2011.

 

DESEMBARGADOR Antônio Fernando Bayma de Araujo

PRESIDENTE

 

 

 

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR

 


Apelação Criminal nº 035969/2010 – São José de Ribamar

Relatório – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Trata-se de recurso de apelação interposto por J. P. S., através de seu representante legal, contra a sentença que o condenou à pena de 02 (dois) anos de reclusão, em regime aberto, por incidência comportamental no artigo 14, da Lei 10.826/2003.

Da inicial acusatória de fls. 02/04, extraio:

I – que, no dia 23 de abril de 2005, um contingente da polícia militar, em ronda rotineira na Rodovia MA-201, revistou diversas pessoas, ocasião em que foi encontrado em poder do denunciado, um revólver, calibre 32, nº 92128, municiado com três cartuchos intactos; e

II – que o denunciado, na oportunidade, foi detido e conduzido ao Plantão da Cidade Operária, onde, ao ser inquirido, admitiu a propriedade da arma apreendida.

Auto de apresentação e apreensão às fls. 13.

Recebimento da denúncia em 04 de julho de 2005, às fls. 28.

Laudo de exame em projétil de arma de fogo, às fls. 42.

Interrogatório do denunciado às fls. 63.

Defesa prévia apresentada às fls. 79.

Termo de audiência de qualificação e interrogatório, às fls. 120. Na mesma oportunidade, foram apresentadas alegações finais orais pelas partes.

Depoimentos prestados em audiência, através de sistema audiovisual acostado às fls. 122.

O magistrado de primeiro grau, ao proferir a sentença, julgou procedente a pretensão estatal, condenando o apelante, à pena de 02 (dois) anos de reclusão, a ser cumprida em regime aberto, sendo aplicada a suspensão condicional da pena, pelo período de 02 (dois) anos, onde o réu ficará sujeito às condições impostas pelos artigos 77 e 78, §§ 1º e 2º, do CPB.

A defesa interpôs o recurso em apreço, às fls. 128, pleiteando, em suas razões, de fls. 133/135, a absolvição do acusado, em razão de não existirem nos autos prova de que a arma e munições apreendidas eram aptas para disparo, o que configura atipicidade da conduta.

Em contrarrazões, o Ministério Público Estadual de primeiro grau postulou pelo improvimento do recurso (fls. 138/140).

Instada a se manifestar, a Procuradoria Geral de Justiça, em parecer da lavra do Procurador Dr. Suvamy Vivekananda Meireles, opinou pelo conhecimento e improvimento do recurso, e consequente manutenção da sentença condenatória em todos os seus termos (fls. 151/186).

É o relatório.


Voto – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade, conheço do presente recurso.

Como gizado no relatório, J. P. S., por meio de seu procurador, interpôs o presente recurso de apelação, contra a sentença que o condenou à pena de 02 (dois) anos de reclusão, em regime aberto, por incidência comportamental no artigo 14, da Lei 10.826/2003.

Em suas razões, o recorrente pugna pela sua absolvição “[…] haja vista que não há prova nos autos de que a arma e as munições tinham aptidão para disparo[…]”.

A priori, devo dizer que a autoria do crime é estreme de dúvidas, conforme restou sobejamente demonstrado pelo termo de apresentação e apreensão (fls. 13), pela confissão do recorrente na fase inquisitiva (fls. 11) e judicial (fls. 63), bem como pelos depoimentos testemunhais colhidos no curso da instrução criminal. A matéria, neste ponto, portanto, resta incontroversa.

No que concerne à materialidade delitiva do crime, após perfunctória análise dos presentes autos, concluo, a par das provas produzidas, que razão assiste ao apelante em sua irresignação, como demonstrarei a seguir.

Atualmente, a jurisprudência majoritária vem firmando o entendimento de que, para configuração do delito de porte ilegal de arma, é imprescindível a realização da perícia para que se possa atestar a real potencialidade lesiva do artefato.

In casu, fora acostado aos autos, às fls. 42, um laudo de exame em projétil de arma de fogo. No entanto, percebo, parecer tratar-se de caso diverso ao constante nos autos, pois, ao que se vê, a perícia foi realizada em “[…] 01 (um) projétil de arma de fogo retirado, segundo ofício supracitado, do cadáver de J. P..”

Pois bem. O cadáver a que se refere o laudo, trata-se do próprio apelante, o qual, encontra-se vivo e não sofreu qualquer lesão em decorrência de um disparo de arma de fogo.

Ademais, em relação a arma encontrada, verifico, também, que não houve qualquer perícia que atestasse sua eficiência; aliás, a existência da referida arma não foi sequer mencionada quando da perícia realizada no projétil de arma, perícia esta, que, repito, acredito não se tratar do caso ora analisado.

Não há, in casu, qualquer exame pericial capaz de atestar a potencialidade lesiva da arma de fogo encontrada em poder do recorrente, ou seja, não se sabe, ao certo, se ela estava apta a produzir disparos.

Nossos Tribunais Superiores, têm assim se posicionado, in verbis:

Porte ilegal de arma de fogo (absolvição). Perícia para a comprovação da lesividade da arma (imprescindibilidade). Peritos sem qualificação técnica (caso). Nulidade (reconhecimento).

1. Tratando-se de crime de porte ilegal de arma de fogo, é necessária a comprovação da potencialidade lesiva da arma, não bastando a simples indicação de perigo abstrato.

2. A perícia deve ser efetuada por dois peritos oficiais ou por duas pessoas idôneas e obrigatoriamente portadoras de diploma de curso superior, o que, no caso, não ocorreu.

3. Agravo regimental improvido.[1] (destaque não consta no original)

Na mesma alheta:

PORTE DE ARMA, ACESSÓRIO OU MUNIÇÃO – LAUDO PERICIAL – FORMALIDADE DO TIPO. A teor do disposto no artigo 25 da Lei nº 10.826/2003, apreendida arma de fogo, acessório ou munição, cumpre proceder-se a perícia elaborando-se laudo para juntada ao processo. O abandono da formalidade legal implica a impossibilidade de ter-se como configurado o tipo.[2] (destaque não consta no original)

Forçoso concluir, portanto, que a ação do recorrente é atípica, razão pela qual não deve ser responsabilizado criminalmente.

Com as considerações supra, conheço do presente recurso, para, em desconformidade com o parecer ministerial, dar-lhe provimento, reformando a sentença de primeiro de grau, para absolver o apelante, pela atipicidade da conduta descrita no art. 14, da Lei 10.826/2003, o que faço com base no artigo 386, III, do CPP.

É como voto.

Sala das Sessões da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em São Luís, 22 de fevereiro de 2011.

 

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR

 



[1] STJ – AgRg no REsp 974.026/RS, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 20/10/2009, DJe 18/12/2009.

[2] STF – HC 97209, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 16/03/2010, DJe-071 DIVULG 22-04-2010 PUBLIC 23-04-2010 EMENT VOL-02398-02 PP-00324.

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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