Confissões públicas de um traidor

Lutei a  vida inteira pela fidelidade conjugal. Para mim, a confiança recíproca é fundamental numa relação, conquanto admita que, como seres humanos, somos todos suscetíveis de um deslize; e eu deslizei. Deslizei, não: escorreguei, caí numa armadilha – e me entreguei.

Fui apresentado a ela, mas, no primeiro momento,  não lhe dei valor.

Passados os dias, muitos demonstrando o desejo de tê-la de qualquer forma, resolvi me aventurar e dela me aproximei, despretensiosamente, como quem não quer nada.

E aí? Aí,  ela foi me envolvendo, me deu aconchego, me absorveu por inteiro – e eu caí aos seus pés, perdidamente apaixonado.

Agora, parece tarde.

Estou com ela quase vinte quatro horas por dia. Dela não me afasto  em nenhuma ocasião.

Ela dorme ao meu lado, na minha cama, me dizendo belas palavras e cantando as minhas músicas favoritas.

Quando amanhece o dia, bem cedo ainda, eu me aproximo, e ela  me faz um resumo dos fatos mais importantes do momento, mantendo-me, assim,  informado de tudo; ela, simplesmente, não me esconde nada, e isso, de certa forma, também me aproximou dela ainda mais.

Mas não é só isso!

Na hora do café, bem cedo ainda, ela me traz os principais jornais do país, para que eu me mantenha mais bem informado ainda.

Logo em seguida,  enquanto me arrumo  para o trabalho, ela canta para mim as minhas músicas preferidas. Ela  me permite, até,  escolher o gênero.

Se quero ouvir blues, blues ela canta e toca.

Mas se a minha preferência for jazz ou música caribenha,  ela também canta e toca. Ela é demais.  Ela é pau para toda obra.

Por volta das 6h40, já devidamente vestido para o trabalho, já de saída,  ela se aproxima, faceira, e decidi ir comigo.

Fica bem perto de mim no carro e, depois,  na minha mesa de trabalho.

Me faz companhia o dia inteiro, até voltarmos para casa, por volta das 19 horas.

A minha atual mulher, curiosamente, vem junto, aceita dividir-me com a outra. Vislumbro nela um pouco de ciúmes, apenas.

Ela sabe, entretanto, que é possível vivermos os três, de forma pacífica.

Essa traição ela vai ter que aceitar, afinal, fidelidade também tem limite.

A minha fidelidade também era finita.

Estranho dizer, mas morro de amores pelas duas.

Me dei bem com a vida a três.

Acho que, agora, vai ser sempre assim.

Vamos dividir, os três,  o mesmo espaço.

As duas, bem sei, são compreensivas;´precisam ser compreensivas.

Compreensão é a palavra.

A minha mais  mais recente paixão,  como sói ocorrer, parece mais compreensiva, mais fácil de ser levada por mim.

É que a nossa relação ainda é muito recente.

Coisas da paixão, dirão. Coisas da paixão, direi.

O pior que me pode acontecer é ter que abrir mão de uma delas.

Otimista, acho que não será preciso.

Meus filhos nem se deram conta da minha traição. Acho que podem, até, desconfiar. Nada mais que isso. Eles acreditam que eu não sou capaz de trair a sua mãe.

Estou me sentido rejuvenescido. Pareço outro homem.

Muitos me veem na companhia da “outra”, mas nem sequer imaginam que tipo de relação tenho com ela.

É bom mesmo que não desconfiam. Afinal, ela é muito  nova. Vão me julgar mal. Parecei um pedófilo aos olhos deles.

Como é é bom desfrutar do amor de duas máquinas maravilhosas:  uma criada por Deus, a minha mulher, com quem vivo há mais de 30 anos, e  a outra, criada pelo homem, com quem convivo há apenas dois meses, e de quem não pretendo me separar jamais.

Estão me oferecendo uma nova versão dessa fantástica criação do homem:   o  ipad II.

Ainda não estou convencido que deva substituir a minha “antiga” máquina, com quem vivo, no momento, em lua de mel.

Uma coisa tenha certeza: a que Deus criou para mim, minha deverá ser até a morte; a que o homem criou, para mim e outros tantos,  admito poder trocar, mas desde que a segunda seja melhor que a primeira.

Vou pensar. Vou deixar pra depois.

Desculpem, vou parar por aqui. As duas me chamam ao mesmo tempo.

Difícil dar assistência às duas; difícil, porém prazeroso.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

4 comentários em “Confissões públicas de um traidor”

  1. Uma cronica de bom gosto.Adorei a forma carinhosa como tratou o tema. É isso ái…difícil deixar de conviver com os “amores tecnológicos”. Um grande abraço!

  2. Só faltou vc contar uma coisa sobre essa outra: vc é tão cuidadoso com ela, que tem buscado uma “roupa” melhor para vesti-la. Contudo quer pagar pouco (rsrsrsrs).
    Tá na hora de abrir a bolsa e da um belo vestido. Ela merece! (rsrsrsrs)

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