Garantismo penal, na prática

No artigo intitulado JUIZ PRECONCEITUOSO, tive a oportunidade de, em determinado excerto, afirmar, verbis:

 “[…]A audição da parte mais frágil da relação processual em face da juntada de um laudo pericial aos autos e que tenha relevância para o deslinde da questão, por exemplo,  é de suma relevância  para que se possa fazer um julgamento constitucionalmente justo.

Nesse sentido, vislumbrando o magistrado que determinada prova, essencial à resolução do litígio, foi colacionada com afronta aos princípios  do contraditório e da ampla defesa, deve, sim, sem titubeio, anular o processo, para que se repare  a eiva, em tributo, também, à dignidade da pessoa submetida a julgamento, afinal, como ensina o sempre lembrado professor  José  Frederico Marques, o livre convencimento não significa liberdade de apreciação das provas em termos tais que atinja as fronteiras do mais puro arbítrio.

 Mais adiante,   destaquei, litteris:

Mas quando eu afirmo que deve o magistrado, diante de uma eiva que macule a defesa do acusado,  anular o processo, reporto-me ao magistrado garantista; não me refiro, portanto, aos que se travestem de justiceiros, aos  que não hesitam em arrostar os direitos do mais débil, para parecer aos olhos dos incautos como arautos do combate à criminalidade[…]”

Pois bem. No voto que publico a seguir, o acusado teve o seu direito ao contraditória e a ampla defesa espezinhado pelo juiz monocrático, que julgou feito, inobstante o laudo pericial tenha sido acostado aos autos, sem que a defesa tivesse sido dele cientificado.

 Do voto destaco o seguinte fragmento: 

“[…]Ante tais considerações, acolhendo, em parte, o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, nego provimento ao recurso, no tocante ao pleito absolutório e, de ofício, declaro nulo o processo, a partir da sentença, inclusive, devendo o juízo a quo dar vista às partes para se manifestarem acerca do laudo de exame definitivo e, após, proferir nova decisão[…]”

Abaixo, o voto, por inteiro.

PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL

Sessão do dia 02 de agosto de 2011.

Nº Único: 0000910-46.2010.8.10.0091

Apelação Criminal nº 12815/2011- Icatu (MA)

Apelante : J.
Defensor : E.
Apelado : Ministério Público Estadual
Incidência Penal : Art. 33, da Lei 11.343/2006
Relator : Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

Acórdão N° 104642/2011

 

 Ementa. APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO DE DROGAS. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO OU DESCLASSIFICAÇÃO PARA USO. CONDENAÇÃO BASEADA APENASEM LAUDO PRELIMINAR. JUNTADADO LAUDO DEFINITIVO POSTERIOR À CONDENAÇÃO.  OFENSA AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. PROCESSO NULO A PARTIR DA SENTENÇA.

1. O laudo de constatação prévia em substância entorpecente é suficiente apenas para embasar a lavratura do auto de prisão em flagrante delito.

2. Ajuntada do exame toxicológico definitivo após a prolação da sentença condenatória e, consequentemente, sem manifestação das partes, caracteriza nulidade, pois representa prova da materialidade delitiva, e, sobretudo, afronta os princípios do contraditório e da ampla defesa.

3. Nulidade do processo declarada de ofício, a partir da sentença, inclusive, devendo o juízo a quo dar vista às partes para se manifestarem acerca do laudo de exame definitivo e, após, proferir nova decisão.

Acórdão – Vistos, relatados e discutidos os presentes autos em que são partes as acima indicadas, ACORDAM os Senhores Desembargadores da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, por unanimidade e de acordo, em parte, com o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, em negar provimento ao recurso, no tocante ao pleito absolutório e, de ofício, declarar nulo o processo a partir da sentença, nos termos do voto do Desembargador Relator.

Participaram do julgamento os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Antonio Fernando Bayma Araujo (Presidente), Raimundo Nonato Magalhães Melo e José Luiz Oliveira de Almeida. Presente pela Procuradoria Geral de Justiça o Dr. Suvamy Vivekananda Meireles.

São Luís, 02 de agosto de 2011.

 DESEMBARGADOR Antonio Fernando Bayma Araujo

PRESIDENTE

  

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR


Apelação Criminal nº 12815/2011- Icatu

Relatório – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Cuida-se de recurso de apelação interposto em favor de J., contra a sentença de fls. 86/91, que o condenou, por incidência comportamental no artigo 33, caput, da Lei 11.343/2006, à pena de 5 (cinco) anos de reclusão e 500 (quinhentos) dias-multa, a ser cumprida em regime inicial fechado.

Segundo consta na inicial acusatória, o apelante foi preso em flagrante delito, no interior de sua residência, quando do cumprimento de mandado de busca e apreensão expedido pelo juízo, na posse de aproximadamente 155 (cento e cinqüenta e cinco) cabeças de substância entorpecente conhecida como merla, e a quantia de R$ 20,20 (vinte reais e vinte centavos).

Laudo de exame preliminar em substância entorpecente, às fls. 12.

Recebimento da denúncia, às fls. 31.

Defesa prévia, às fls. 36.

Na audiência de instrução, colheu-se o depoimento das testemunhas Valbenário Aguiar Santos, Antônio Leonardo Lisboa Leitão e Manoel da Silva Wolf, arroladas na denúncia, e Antônio Barroso e Edimar Santos Amaral, indicadas pela defesa, cujos depoimentos foram gravados em CD (fls. 84), assim como o interrogatório do recorrente.

Em sede de alegações finais, o representante do Ministério Público requereu a procedência da denúncia, com a condenação do apelante nas penas do artigo 33, caput, da Lei 11.343/2006 (conforme gravação CD, às fls. 84).

A defesa, na mesma oportunidade, pugnou pela absolvição do apelante ou pela aplicação da minorante prevista no art. 33, §4º da Lei de Drogas (fls. 76/80).

O juízo a quo, quando da prolação da sentença, condenou o recorrente, pela prática do delito tipificado no art. 33, caput, da Lei 11.343/2006, à pena de 05 (cinco) anos de reclusão e 500 (quinhentos) dias-multa, em regime inicial aberto (fls. 86/91).

Não se conformando com a decisão proferida, a defesa interpôs o presente recurso às fls. 104, e em suas razões, pleiteia a absolvição do apelante, por insuficiência de provas, ou a desclassificação do delito que lhe fora atribuído para aquele constante no art. 28, do mesmo diploma legal (fls. 105/109).

Em suas contrarrazões, o Ministério Público de primeiro grau requer a manutenção da sentença impugnada em todos os seus termos (fls. 121/125).

Instada a se manifestar, a Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo conhecimento e provimento do apelo para anular a sentença de primeiro grau, diante da juntada do exame toxicológico definitivo após a prolação do decisum condenatório (fls. 143/148).

É o relatório.

Voto – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Presentes os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade, conheço do presente apelo.

Consoante anotado, J. foi condenado à pena de 5 (cinco) anos de reclusão e 500 (quinhentos) dias-multa, pelo delito tipificado no artigo 33, caput, da Lei 11.343/2006, decisão esta impugnada mediante o recurso de apelação em análise.

Em suas razões, o recorrente alega que as provas constantes nos autos são frágeis, incapazes de sustentar sua condenação, e que a droga encontrada em sua residência destinava-se a consumo próprio.

Após detida análise dos autos, tenho por relevante a questão suscitada pela Procuradoria Geral de Justiça, referente a nulidade da sentença prolatada, ante a juntada posterior do laudo de exame definitivo da droga, o que se mostra prejudicial ao exame da pretensão absolutória constante no apelo. Explico.

Infere-se, da leitura do artigo 50, § 1º, da Lei 11.343/2006, que o laudo de constatação prévia em substância entorpecente é suficiente apenas para embasar a lavratura do auto de prisão em flagrante delito do agente.

Acerca do laudo de constatação, ensina Guilherme de Souza Nucci, que se trata de

[…] exame pericial preliminar, realizado mais rapidamente, sem necessidade de dois peritos, somente para justificar o recebimento da denúncia ou queixa. O laudo é provisório e pode ser, futuramente, contrariado pelo laudo definitivo. É autêntica condição de procedibilidade.[1]

Já a necessidade do exame toxicológico definitivo encontra amparo nos artigos 56, caput, e 58, § 2º, da Lei de Drogas, que exigem sua requisição antes da audiência de instrução e julgamento, bem como para fins de incineração da droga caso sua quantidade assim o recomende.

O laudo definitivo, de fato, mostra-se imprescindível para a comprovação da natureza tóxica da substância apreendida, sendo que o exame preliminar não supre sua ausência, servindo apenas para demonstrar, precariamente, a existência da droga durante a fase de instrução do processo, jamais para sustentar uma sentença condenatória.

No caso em apreço, observa-se que a sentença condenatória, proferida no dia 15/03/2011, reconheceu a materialidade do delito de tráfico ilícito de entorpecentes com base, unicamente, no laudo preliminar. Confira-se:

A materialidade delitiva restou devidamente comprovada através do Auto de Exame de Constatação de Substância Entorpecente (Preliminar) constante às fls. 12/13 dos autos do inquérito policial […]

(fls. 87)

O laudo definitivo, conforme se constata às fls. 93/97, foi juntado aos autos apenas no dia 17/03/2011, ou seja, após a decisão que condenou o apelante, sem que fosse submetido, portanto, ao contraditório, indispensável à regularidade do feito.

Acerca da juntada do exame toxicológico, o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou no sentido de que o laudo definitivo deve ser acostado aos autos antes da prolação da sentença condenatória, sob pena de nulidade do decisum Confira-se:

PENAL. PROCESSUAL. LAUDO TOXICOLÓGICO. JUNTADA. MOMENTO. NULIDADE. ABSOLVIÇÃO. RECURSO ESPECIAL.

1. A juntada do laudo toxicológico pode ser feita a qualquer momento, desde que anterior à sentença condenatória, sob pena de nulidade.

2. Havendo, nos autos, exame preliminar, deve prosseguir a Ação Penal, porque constatada, no mínimo, a materialidade do crime.

3. Recurso Especial conhecido mas não provido.[2]

(sem destaques no original)

Na mesma senda:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRÉVIO WRIT. ANULAÇÃO DA SENTENÇA. CONDENAÇÃO SEM LAUDO TOXICOLÓGICO DEFINITIVO. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. INVIABILIDADE.

1. O entendimento consolidado na jurisprudência dos Tribunais Superiores indica que a sentença condenatória prolatada sem o laudo toxicológico definitivo induz à decretação de sua nulificação e, não, à absolvição do acusado. Precedentes.

2. Ordem denegada.[3]

(destaques não constam do original)

Com efeito, somente o laudo toxicológico definitivo pode servir como prova da materialidade para embasar um decreto condenatório pelo delito de tráfico de drogas, não podendo ser suprido sequer pela confissão do réu, tendo em vista a técnica empregada em sua realização, responsável pela comprovação da presença dos efeitos farmacológicos da substância apreendida.

Importante consignar, ademais, que não basta a simples juntada do exame definitivo, devendo o magistrado determinar a intimação das partes para se manifestar sobre o laudo, em respeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório.

A corroborar tal entendimento, transcrevo abaixo trecho de acórdão do STJ ao julgar caso semelhante, verbis:

[…] A simples presença física do laudo nos autos antes da prolação da sentença não supre a nulidade decorrente da ofensa ao contraditório e à ampla defesa, se não oportunizada às partes se manifestarem sobre ele. A falta de manifestação das partes acerca do laudo toxicológico definitivo tem o condão de invalidar os atos praticados após sua juntada, pois revelado o prejuízo ocasionado pela afronta aos princípios da ampla defesa e do contraditório. […][4]

Assim, resta evidente o prejuízo ocasionado à defesa do apelante, por ofensa à garantia do contraditório, assegurada pela Constituição Federal, conduzindo, inexoravelmente, à nulidade da decisão condenatória.

Ante tais considerações, acolhendo, em parte, o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, nego provimento ao recurso, no tocante ao pleito absolutório e, de ofício, declaro nulo o processo, a partir da sentença, inclusive, devendo o juízo a quo dar vista às partes para se manifestarem acerca do laudo de exame definitivo e, após, proferir nova decisão.

Segundo consta nos autos, o recorrente foi preso em flagrante delito no dia 08/12/2010, e teve a custódia preventiva decretada em 15/12/2010, sendo que, ao ter sua prisão apreciada pela juíza de base, por ocasião do Mutirão Carcerário, pronunciou-se a magistrada da seguinte forma (fls. 117/118):

[…] reafirmo o teor da sentença no tocante à permanência da prisão do acusado enquanto perdurar o julgamento da apelação interposta, em razão da persistência dos motivos ensejadores da prisão preventiva, máxime a garantia da ordem pública, além do fato do acusado ter permanecido preso durante toda a instrução processual, sendo contraditório determinar sua soltura após a prolação da sentença condenatória.

Entendo, no que concerne à prisão do apelante, que a anulação da sentença não deve motivar a sua revogação, tendo em vista que a renovação do ato não acarretará grande demora na conclusão do feito, além do que, não restou demonstrado fato novo que justifique a soltura do recorrente, razão pela qual mantenho a medida cautelar privativa de liberdade decretada no primeiro grau, sem prejuízo de nova avaliação pelo juízo a quo.

É como voto.

Sala da Sessões da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão,em São Luís, 02 de agosto de 2011.

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR


[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 3 ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

[2] REsp 218.087/MG, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 02/04/2002, DJ 29/04/2002.

[3] HC 68.398/BA, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 06/08/2009, DJe 08/09/2009.

[4] HC 68.226/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 21/06/2007, DJ 20/08/2007.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

2 comentários em “Garantismo penal, na prática”

  1. Em sintese o feito do magistrado deve prolatar dentro da rasoabilidade, ultrpassada o réu deve ser colocado imediatamente em liberdade conforme a LEI seu artigo, 5 LVX.
    Aplauso no HC

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