Em “Confissões”, santo Agostinho, ao relatar sua conversão, conta que ouviu a voz de uma criança mandando-o ler uma passagem de livro (para alguns, a Bíblia).
Sem conseguir identificar de onde viria a voz, Agostinho obedeceu, mas não conseguiu chegar ao final. Segundo consta, a conversão de Agostinho passou pelo atento estudo das lições de Paulo de Tarso, Saulo, antes da sua própria.
Após o episódio, santo Agostinho abandona a vida que julgava pecadora e abraça o caminho que sua mãe, santa Mônica, para ele sonhou. O fenômeno relatado pelo filósofo pode ser interpretado de diversas formas. Aos olhos católicos, tratou-se de uma revelação, de um milagre, do divisor de águas entre o homem e o santo.
Sob a perspectiva evangélica tradicional, poder-se-ia interpretar a voz da criança como manifestação do Espírito Santo. Para os neopentecostais, seria possível até pensar em influência maligna. Para o espírita, Agostinho teria vivenciado uma experiência mediúnica. Por conseguinte, a voz infantil nada mais seria que a orientação de um mentor, ou espírito protetor, contato inerente à natureza humana.
Um psicólogo poderia vislumbrar sinal de conflito não solucionado com a mãe. E nada impediria que um psiquiatra viesse a catalogar a ocorrência como sintoma de patologia mental. Quando ouvira a voz, Agostinho estava aos prantos, em quadro muitas vezes descrito como de depressão.
Um ateu ou agnóstico, poderia tomar o relato agostiniano como alegoria, espécie de estratégia, consciente ou inconsciente, para conferir maior autoridade a seus escritos. E outras tantas leituras seriam passíveis de arriscar.
Creio que exista a verdade sobre o que ocorrera com santo Agostinho. No entanto, tomando por certo que nem todas as causas e efeitos estão ao alcance do homem, bem como que a ciência ainda tem muito para desvendar, o que importa em um Estado laico é aceitar que cada uma das explicações é real para aqueles que a formulam.
A laicidade não guarda relação com o materialismo. Laicidade significa permitir e garantir o convívio das mais diversas e opostas exegeses para idênticos fatos.
Tolerar, à luz dos ensinamentos de John Locke, implica suportar aquilo que se odeia. Em uma vertente inovadora, pode-se conceber tolerar como o ato de olhar o outro como alguém que já descobriu o que ainda não conseguimos entender.
Esse princípio dá ensejo ao respeito, que não precisa nem deve ser imposto. Uma religião universal constitui meta totalitária, como também resta totalitário o cenário de completa irreligião. Fernando Henrique Cardoso, em seu “Xadrez Internacional”, fala sobre a perplexidade de Tocqueville diante da capacidade americana de conciliar espírito religioso com espírito de liberdade.
No Brasil, essa convivência é ainda mais necessária, pois as divergências são muito acentuadas. Assim, deve-se conferir espaço para que cada um professe sua fé, com respectivos dogmas, esforçando-se para enxergar no outro um sujeito digno de também professar a própria fé.
Mais que qualquer outra diferença, a religiosa constitui pilar da democracia. A religião e a não religião, em regra, são escolha. E só é verdadeiramente democrático quem é capaz de aceitar a escolha dos outros.
Folha de São Paulo, edição de 24/07/2013