COM OS PÉS NO ATRASO

A inspiração para essa crônica veio da obra monumental de Lilian Schwarcz Moritz e Heloisa M. Starling, Brasil: Uma Biografia.

Segundo as mencionadas autoras, em passagem que entendi inspiradora, o viajante Louis-Albert Gaffre contava que, após a abolição, as negras, de posse de pequenas economias, compravam calçados, acessórios que lhes eram até então interditados.

Segundo o mencionado viajante, a procura desses verdadeiros ícones da liberdade se revelou uma decepção. É que os pés outrora descalços, calejados, acostumados ao contato direto com o chão, não aguentaram “tanta modernidade”.

Noticiam as autoras que as testemunhas da época relatam ter observado, tanto nas ruas da cidade quanto no campo, negras carregando pares de calçados não nos pés, mas apoiados nos ombros, como bolsas a tiracolo ou troféus. Mas a liberdade, de toda forma, significava o arbítrio de poder comprar e o usar o que se quisesse, e de ter nome e identidade.

Em face do funcionamento absolutamente discriminatório e seletivo – irritantemente seletivo e discriminador -, das instâncias persecutórios brasileiras e das ações dos nossos representantes no Congresso Nacional, é possível estabelecer um paralelo dos dias presentes com a situação fática acima descrita, para dizer que, em terras brasileiras, estamos condenados a viver no atraso, condenados a carregar sobre os ombros os maiores sintomas desse subdesenvolvimento, em face da nossa proverbial tendência a privilegiar as classes mais favorecidas, punindo-as apenas excepcionalmente, contaminadas que estão as instâncias de controle e de investigação pelos vícios do passado que as impedem de cumprir bem os seus objetivos, contando, lamentável dizer, com o beneplácito da maioria dos nossos representantes.

É dizer, em terras brasileiras, quando se trata de punição em face de um mal feito, as instituições persecutórias se apresentam, ainda nos dias presentes, com os mesmos vícios que as tornaram – e as tornam – desacreditas na sociedade; como os escravos libertos a que me reportei acima, as instâncias de controle têm os pés fincados num período que relutamos em ultrapassar.

A verdade é que ainda não evoluímos, ainda não alcançamos nenhuma maturidade nesse sentido. E pelo fato de ainda não termos ingressado na modernidade, vivemos com os pés fincados no passado de impunidade, atraso que pode ser potencializado em face da pretendida lei de Abuso de Autoridade no aguardo de manifestação do Poder Executivo.

Nesse cenário, as instituições persecutórias não evoluem, estabelecendo contato direto e exclusivo com a periferia criminosa, salvante um ou outra exceção, bastando, para confirmar o que digo, fazer um levantamento das ações penais em curso, dos encarcerados provisórios jogados em nossas masmorras e dos condenados mantidos segregados nas penitenciárias, com a consagração de um estado de coisas inconstitucional que a ninguém parece incomodar, muito menos aos graduados representantes do povo, cujo exemplo mais evidente de tentativa de perpetuação da impunidade da classe de cima é o projeto que tipifica os crimes de Abuso de Autoridade, ou Estatuto do Criminoso, como jocosamente tem sido chamado o mencionado projeto.

Aqui e acolá, admitamos, há uns poucos atores flertando com a modernidade, verdadeiros heróis – por isso mesmo abespinhados pelo sistema – que insistem na busca pela modernidade, para usar a mesma expressão do viajante Louis-Albert Gaffre; que sonham e lutam, quase sempre embalde, para que a lei seja destinada a todos.

Nesse panorama, é como se ainda andássemos com os pés no chão, como andavam os escravos de antanho. E sempre que tentamos evoluir, calçando os sapatos da modernidade, somos surpreendidos com um retrocesso, como se vê em face do Projeto de Lei antes mencionado, que, se sancionado, nos levará, inapelavelmente, a colocar, metaforicamente, os sapatos sobre os ombros, como a nos advertir que ainda não é chegada a hora da liberdade, do tratamento igualitário entre os destinatários da persecução criminal.

Definitivamente, as instâncias persecutórias só têm os olhos voltados para os mais pobres, para os quais destinam todo o seu rigor, na mesma medida com que demonstram, por seus agentes mais destacados, a sua parcimônia e leniência quando se trata dos mais aquinhoados, protegidos, por ação ou omissão, das ações de agentes públicos inescrupulosos e sem compromisso com o tratamento igualitário preconizado em nossa Carta Política.

Nós não nos libertamos – e nem temos perspectiva de nos libertar – de um sistema punitivo historicamente discriminador, situação que se agrava com o famigerado Projeto de Lei antes mencionado.

Nesse cenário, triste admitir, ainda trilharemos por muito tempo, em face de tudo que tenho testemunhado ao longo de mais de trinta anos nessa lida, com os pés descalços, calejados, sem perspectiva de alcançarmos a modernidade.

É isso.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.