Pec da Bengala

Jamil Gedeon tem razão

Não se fala noutra coisa, nos meios jurídicos,  que não seja na aposentadoria da juíza Florita Castelo Branco por ato do Excelentíssimo Senhor Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, apesar da PEC da Bengala, editada pela Assembléia Legislativa do Estado.

Noticia-se, até, que o Dep. Manoel Ribeiro, da Tribuna da Assembléia Legislativa, teria ameaçado denunciar o presidente do Tribunal de Justiça ao Conselho Nacional de Justiça, porque, desde a sua ótica, com o ato de aposentadoria de Florita,  Jamil Gedeon teria afrontado a harmonia entre os Poderes Legislativo e Judiciário, negando validade a uma norma editada pela casa legislativa do Estado.

Admitindo-se, por hipótese, que a fala do Dep. Maonel Ribeiro não fosse mera retórica,  seria bom que ele efetivamente denunciasse o presidente do TJ/MA.

E por que penso assim?

Porque, se efetivamente essa questão chegasse ao CNJ, ter-se-ia uma antecipação, na órbita administrativa, do entendimento de juristas de escol,  acerca daquilo que todo mundo  que tenha o mínimo de lucidez já sabe, ou seja, que a PEC da Bengala,  editada pela Assembléia Legislativa do Estado,  é um escárnio, uma afronta, um vilipêndio despudorado à ordem constitucional.

O legislador infraconstitucional pode muito, mas não pode tudo, importa dizer.

Sem que seja necessário fazer maiores digressões, mesmo porque com essas reflexões não pretendo defender nenhuma tese, quase jejuno que sou em matéria constitucional,   vou expender as minhas impressões acerca da quaestio.

Pois bem. Uma lei, como é comezinho, tem dois âmbitos: vigência e validade. É dizer: uma lei pode estar vigendo, caso da PEC em comento, e não ser válida, porque, como é o caso  da mesma PEC,   gestada em flagrante descompasso com a Constituição Federal.

Ora, se a lei não é válida, porque atenta, a olhos vistos,  contra Carta Magna brasileira, o administrador que tenha o mínimo de responsabilidade não pode e não deve dar a ela os efeitos que não tem, por faltar-lhe a necessária eficácia, em virtude de sua flagrante inconstitucionalidade, por albergar matéria que não é da competência do legislador estadual.

Tenho reiterado, nos diversos votos proferidos  na Corte  Estadual,  e nos quais são tratadas questões constitucionais, que o aplicador da lei, ao fazê-lo, não pode deslembrar que a nova matriz espistemologica do direito parte, sempre, da concepção de estado constitucional, entendido como aquele que desloca o princípio da primazia da lei para o princípio da primazia da constituição.

Nesse diapasão, a administração pública, regida, dentre outros, pelo princípio da legalidade, desautoriza o Administrador a fulcrar suas decisões com base em leis manifestamente  inconstitucionais, como o é a PEC da Bengala, equivocadamente aprovada pela Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão, na sua  incontida volúpia  legiferante.

É preciso reafirmar, com Kelsen, que as normas constitucionais são condicionantes de toda legislação infraconstitucional, razão pela qual compreendo que o equívoco da Assemblélia não poderia mesmo receber a chancela  do presidente do Tribunal de Justiça, que, tomado pelo melhor dos propósitos,  e em nome mesmo da moralidade, assinou o ato de aposentadoria da colega Florita Castelo Branco, obstando a sua intenção de permanecer judicando, sem mais poder fazê-lo, à luz da CF.

Registro, só pelo prazer de argumentar, que, diferente do que ocorre com os princípios, em face da lógica da cedência recíproca, havendo conflito entre normas (antinomias), para definição da validade de uma delas, usa-se a regra do TUDO ou NADA, de modo que uma deve ser afastada para que a outra tenha incidência. Foi o que fez o presidente do TJ/MA, ou seja, afastou a incidência da PEC da bengala, para reafirmar a validade do preceito constitucional que cuida da data-limite para a aposentadoria compulsória.

Digo em adição: a convivência dos princípios é conflitual; a convivência de regras é antinômica. É dizer: os princípios coeexistem, as regras antinômicas se excluem. Os conflitos  entre principios podem ser ponderados. Eles podem ser harmonizados; os conflitos entre regras, não.

Vou além, sem temer pela exaustão. As regras contem fixações normativas definitivas, sendo inviável a validade simultânea de regras contraditórias, pois somente uma delas será válida, necessariamente.

Nessa linha de argumentação, não havia, mesmo,  nenhuma possibilidade de conviverem duas normas que se “digladiavam” ( antinômicas) a olhos vistos, ou seja, a PEC da Bengala e a Constituição Federal,  razão pela qual entendo que andou bem o presidente do TJ/MA, ao negar validade a uma norma que afronta, espezinha, a mais não poder,  ordem constitucional brasileira.

Riccardo Guastini, a propósito,  em face do Estado Constitucional, como o nosso, nomina as Cartas Magnas de “invasoras” e “intrometidas”. Nas próprias palavras do jurista italiano, que trago à colação para ilustrar essas brevíssimas reflexões: “um ordenamento jurídico constitucionalizado se caracteriza por uma Constituição extremamente invasora, intrometida, capaz de condicionar tanto a legislação como a jurisprudência e o estilo doutrinário, a ação dos atores políticos, assim como as relações sociais” ( Lá Constitucionalizacion del ordenamento jurídico: em caso italiano).

Anoto, forte na melhor doutrina, que a característica fundamental da função administrativa é a sua absoluta submissão à lei;  mas à lei válida,  e não à lei apenas vigente.

Consigno, ademais, e agora para encerrar,  que o administrador, desde minha compreensão, deve ter uma relação de absoluta intimidade com a Constituição, pois que entre eles deve haver, como sói ocorrer, um nível de cumplicidade que os atrai e enlaça. É essa cumplicidade e entrelaçamento que vejo na decisão de Jamil Gedeon.

O administrador não pode, diante de flagrantes ilegalidades, permanecer em estado de inércia ou de indiferença, para, nesse diapasão, aceitar, passivamente,  que o legislador infraconstitucional se interponha, indevidamente, entre ele e a Constituição que jurou cumprir.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

6 comentários em “Pec da Bengala”

  1. Seria muito bom que o ilustre Deputado fosse ao CNJ, além das ilegalidades apontadas pelo ilustre Des. José Luiz a vergonhosa PEC da Bengala revoga a LOMAM.
    Parabéns Des. Jamil, Parabéns Des. José Luiz.
    Abraços,
    Bonfim

  2. Nobre des Ze Luis parabens pelo seu artigo, essa PEC e de autoria do suplente de deputado, o bufao Milhomen. Dotado de “NOTAVEL SABER JURIDICO” certamente vai contestar suas observa¢oes.

  3. Estimado Desemb. José Luiz Oliveira,

    Minha admiração cresce cada vez mais por Vossa Excelência. A uma, pelo senso de justiça. A duas, pela coragem em pôr as situações jurídico-sociais da forma como o faz.

    Eu também tinha escrito um artigo sobre essa questão apoiando a decisão do Des. Jamil Gedeon, em cumprir a Constituição Federal, respeitanado o Princípio da Legalidade, que é um dos princípios nucleares do artigo 37, que informam as normas e regras que norteiam a Administração Pública. Fiquei tão feliz pela forma como a questão foi cientificamente posta, pois,se a lei é vigente, não significa que ela seja válida, e, via de consequencia, eficaz.

    Ainda mais, quando invocou o meu querido Kelsen que,há muito já esclarecia: a norma autônoma decorre da vontade de um só e se expressa como um acordo, por exemplo,isto é, emerge da vontade individual. O que não é o caso das leis que devem originar-se da vontade heterônoma, ou seja, da assembléia representativa e, nos Estados Democráticos de Direito, a hierarquia das leis, deve ser obedecida rigorosamente, como nos ensinou o grande mestre: existe uma lei fundante (vontade social, vontade heterônoma) de onde derivarão todas as outras normas.

    Por isso, o admiro tanto. Tenho certeza que com alição dada em seu artigo os deputados pensarão duas vezes em expedir uma outra norma viciada. Também devem aprender um princípio universal de Direito: “o que nasce nulo, permanece nulo e não se convalida com o tempo”.

    Esses deputados deveriam também ler um pouco não só dos ensinamentos de Kelsen, mas de Jeremy Bentham para, antes de legislar, aprenderem a olhar os homens como seres sociais e morais “buscando a codificação das leis com o intuito de tornar acessível” o entendimento das manifestações por qualquer um dos seus representandos. Pois, da forma como agiram, pareceu a todos nós, que tinham como escopo apenas, e tão só, o benefício de alguns.

    Grandes homens maranhenses: Vossa Excelência e o Desembargador Jamil.
    Um grande abraço.

  4. Veja mais uma decisão contra a PEC da Bengala:
    A Desembargadora Rosimar Leite Carneiro acaba de ser aposentada compulsoriamente.
    A decisão monocrática do Presidente do Tribunal de Justiça, Desembargador Edvaldo Pereira de Moura, foi em face de provocação da Associação dos Magistrados do Piauí.
    Segundo Edvaldo Moura, a decisão lhe causa enorme constrangimento , não só pela carreira da magistrada, mas pela amizade pessoal que tem com a Desembargadora.

  5. Não entendo os motivos que levam esta confusão toda por conta da pec da bengala. Ao que nos constas várias empresas públicas e bancos reaproveitam seus funcionários depois de aposentados, empatando a possibilidade de novos concurso e o acesso dos mais jovens a estes cargos. No Legislativo, onde se criam as leis, não tem idade para aposentadoria. Já no judiciário um desembargador ou juiz querer ficar depois dos 70 anos, em pleno vigor intelectual, é motivo de tanta confusão. A constituição diz sim que a compulsória ocorre aos 70 anos, mas quem disse que isso não pode ser mudado? As pessoas hoje, têm mais qualidade de vida, vivem mais e devem ter o direito de dizer quando querem parar, aos 70, 71, 72. Além do que, isso é economia para o país e aposentadoria não é punição, é prêmio para quem trabalhou e contribuiu para o crescimento do seu estado e país, e o fato de alguém não querer se aposentar não lhe coloca em uma posição de aproveitador ou de um fora da lei, é apenas uma pessoa que quer continuar com suas atividades, quer seja no judiciário, legislativo, executivo ou ainda setor privado.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.