ADIn 4.815
Professora da USP se manifesta sobre autorização prévia das biografias
Uma audiência pública aconteceu nos últimos dias 20 e 21 de novembro, no STF, com a finalidade de discutir a necessidade de autorização para a publicação de biografias, assunto questionado na ADIn 4.815. A professora da USP e representante da comissão de Direito Autoral da OAB/SP, Silmara Juny de Abreu Chinellato, foi uma das participantes do evento.
Segundo Silmara, “a liberdade de expressão e o direito à vida privada, à intimidade, ao segredo e à imagem devem ser sopesados no caso concreto, não cabendo aludir-se à censura ou censura, termo de conteúdo negativo e traumático”.
A professora também ressalta que “não há relação de causa e efeito entre autorização para biografia e isenção de responsabilidade civil, bem como entre falta de autorização para biografia e existência de dano fundado em responsabilidade civil”.
Confira a apresentação.
ADIn 4.815 (biografias não autorizadas)
Apresentação na audiência pública realizada no dia 21 de novembro de 2013, no STF.
Silmara Juny de Abreu Chinellato
Professora Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Membro da Comissão de Direito Autoral e da Comissão de Direito do Entretenimento da OAB/SP
Excelentíssimas senhoras ministras Carmen Lúcia e Rosa Weber, excelentíssimo sr. subprocurador da República, ilustres colegas, senhores e senhoras.
Inicialmente agradecemos à excelentíssima sra. ministra Carmen Lúcia por ter deferido nossa inscrição para este importante debate, no qual temos a honra de representar a OAB/SP – comissão de Direito Autoral , tendo sido indicada também pelo Instituto dos Advogados de SP.
Enfatizamos nosso respeito aos autores, criadores intelectuais, que temos defendido vigorosamente ao longo de nossa trajetória como professora titular da Faculdade de Direito da USP, na regência das disciplinas Direito Civil e Direito de autor.
O CC consagra direitos da personalidade , inalienáveis, que se referem à própria pessoa do sujeito, bem como a suas projeções e prolongamentos, uma conquista em defesa da pessoa humana, o que encontra pleno respaldo no princípio de sua dignidade, consagrado pelo artigo 1.º, inciso III da Constituição da República, conceito que embora banalizado, aqui é plenamente oportuno.
Os direitos da personalidade há muito são reconhecidos pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive do STF, ambos forma de expressão do Direito, entre os quais, em rol não taxativo, o direito à vida privada, à intimidade, ao segredo (círculos concêntricos) , à imagem, à honra , à boa fama e à respeitabilidade.
1. Quer sejam considerados liberdades públicas, quer como direitos da personalidade, não há hierarquia, em abstrato, entre liberdade de expressão (artigo 5.º,inc. IX da CF), de um lado, e direito à vida privada, à intimidade, ao segredo, à imagem, também consagrados no mesmo artigo 5.º, inciso X, igualmente prestigiados nos limites impostos pelo § 1.º do art. 220 da mesma Constituição, ao tratar da comunicação social.
2. O Colendo STF já enfatizou em várias oportunidades a relevância do caso concreto, decidindo ora em favor da liberdade de expressão – como na denominada ADIN do humor (ADIn 4.451, 2010) – ora em favor dos direitos humanos e direitos da personalidade – direito à honra e ao respeito, como no caso Elwander (HC 82.424 – RS, de 2003), o que demonstra não haver a pretensa hierarquia em favor da liberdade de expressão, abstratamente considerada.
Nesse HC há rico debate acerca da liberdade de expressão, anotando-se o item 13 da ementa que consigna:
“Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta.”
No item 14 registra-se: “As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria CF (art. 5.º § 2.º, primeira parte)”. Nos eruditos votos, colhemos a afirmação do ministro Celso de Mello no sentido de que não há direito de caráter absoluto. Há limitações como as de interesse social, sendo necessária a coexistência harmônica das liberdades. No mesmo sentido, o voto do ministro Gilmar Mendes, no qual anota que não se pode atribuir primazia absoluta à liberdade de expressão em uma sociedade pluralista, em face de valores outros como os da igualdade e dignidade humana que é “uma exigência do próprio sistema democrático. Enfatiza o sr. ministro a importância do princípio da proporcionalidade, devendo aplicar-se as três máximas: adequação; necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Na rica análise do ministro Marco Aurélio enfatiza-se que o princípio da liberdade de expressão, como os demais que compõem o sistema dos direitos fundamentais, não possui caráter absoluto, encontrando limites nesses direitos, o que pode ensejar uma colisão de princípios. Frisa a importância do caso concreto e do princípio da proporcionalidade.
3. A interpretação do Colendo STF quanto à importância do caso concreto, sem hierarquia em abstrato, entre liberdade de expressão e outros direitos da personalidade segue as diretrizes de tribunais internacionais, entre os quais a Corte Europeia de Direitos do Homem como, por exemplo no Affaire von Hannover, anotando-se uma decisão em favor da publicação de fotografias da família de Caroline, do Principado de Mônaco – porque não se detectou interesse público na divulgação – e outra decisão em favor da liberdade de expressão e direito à informação porque restou caracterizado esse interesse e não mera curiosidade. Ambos os casos foram discutidos à luz dos artigos 8.º (direito à vida privada e familiar, entre outros) e 10º (liberdade de expressão) da convenção para proteção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais.
4. A liberdade de expressão e o direito à vida privada, à intimidade, ao segredo e à imagem devem ser sopesados no caso concreto, não cabendo aludir-se à censura ou censura, termo de conteúdo negativo e traumático, pelo muito que sofremos no passado, que, ao despertar grande repulsa, desloca o verdadeiro cerne do embate e do debate. A censura estatal, sem contraditório, sem apreciação pelo Poder Judiciário, não se confunde com sopesamento de direitos e garantias fundamentais e direitos da personalidade da mesma relevância, mesmo quando se referem a pessoas notórias.
5. Em relação a elas, há exceções a serem observadas, respeitados os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade sempre, sendo necessário fazer-se distinção entre interesse público e mera curiosidade do público, tarefa nem sempre fácil, mas desafio a ser enfrentado casuisticamente.
6. Há necessidade de se enfatizar que a responsabilidade civil é uma conquista democrática dos países cultos, em lenta mas firme e positiva evolução durante séculos, que não poderá ser apartada em qualquer caso, sob pena de violar-se o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional à lesão ou ameaça a direito, conforme inciso XXXV (35) do artigo 5.º da CF. Tutela preventiva e compensatória.
7. Não há ato sem responsabilidade, existindo inúmeras obras filosóficas, como as de Hans Jonas, e jurídicas – como as diversas francesas – que embasam a afirmação .
A Constituição da República alude à indenização, consequência da responsabilidade civil, em vários artigos – como, por exemplo, no art. 5º , incisos V e X; art. 6.º,XXVIII (28); art. 225 § 3º e todos os Códigos Civis dos países cultos assim o fazem.
8. A divulgação de imagens pode atingir a vida privada, a intimidade e/ou o segredo, resguardados tanto pelo inciso X do art. 5.º da CF, como pelos arts. 20 e 21 do CC . O mesmo se diga quanto à divulgação ampla e irrestrita de fatos, mesmo verdadeiros, que não guardem pertinência como o motivo da notoriedade ou com o interesse público ligado à história.
9. Não nos parece que o art. 20 do CC exija autorização prévia para obra biográfica . Ao consignar “salvo se autorizadas”, entre outros casos, o legislador civil da mais alta respeitabilidade, um dos maiores juristas brasileiros de todos os tempos, avaliza a hipótese lógica que dá maior resguardo ao biógrafo quanto à responsabilidade civil que a R. petição inicial pretende afastar (conforme n.s 38 a 41). Ressalve-se que, mesmo quando houver consentimento , se a autorização não tiver sido dada à vista do inteiro teor da obra, poderá ensejar responsabilidade civil se houver dano, (grifamos), pois não há responsabilidade civil sem dano.
10. Uma vez que não há necessidade inafastável de autorização prévia para biografias, ressalvada a responsabilidade civil , pois essa parece ser a interpretação sistemática do Código, o R. PL 393/2011 seria justificável para aclarar essa interpretação, mas não poderá afastar a incidência de responsabilidade, se houver dano. Uma vez que o PL não é objeto do debate em tela, deixamos de examiná-lo com maior profundidade, ressalvando que a redação proposta, por sua generalidade, pode ensejar violação de direitos autorais de terceiros , que não se confundem com os do biógrafo.
Registre-se, desde logo que biografado não é titular de direito autoral, próprio e exclusivo do criador da obra intelectual, a menos que seja verdadeiro co-autor. Segundo o art. 15 § 1.º da lei de direito autoral – não é co autor quem “simplesmente auxiliou o autor na produção da obra literária, artística ou científica, revendo-a , atualizando-a, bem como fiscalizando ou dirigindo sua edição ou apresentação por qualquer meio”.
11. A falta de autorização não excluirá eventual indenização pelos excessos cometidos, com fundamento nos arts. 186 e 187 do CC, a ser analisado no caso concreto, o que ocorreria, por exemplo, se os fatos explorados pela biografia não tivessem pertinência com os aspectos da vida do biografado que fundamentam sua notoriedade ou relevância. Há fatos que, mesmo verdadeiros, não interessam ao cerne da biografia, ao interesse público, à necessária história, a menos que tenham ligação com a res publica ou com o próprio motivo da notoriedade.
12. Em muitas hipóteses , há interesses meramente empresariais em divulgar obras originárias ou derivadas que tenham por objeto a vida privada de pessoa notória, para atender a compreensível objetivo econômico e satisfazer à curiosidade do público, o que nem sempre se confunde com interesse público.
13. A generalidade da permissão a priori pecaria pelo excesso, a pressupor que toda pessoa notória não poderia impedir a divulgação de imagens e/ou escritos e/ou informações com finalidade biográfica.
14. A razão ou motivo da notoriedade e os fatos a ela ligados é uma boa diretriz para balizamento do conteúdo da biografia, mas somente o caso concreto é que dará a medida certa para a análise da ponderação entre liberdade de expressão e os outros direitos da personalidade, incidindo a responsabilidade civil se houver danos materiais e/ou morais .
Impedir a publicação ou retirar de circulação uma obra publicada depende do exame do caso concreto, pelo Poder Judiciário. Preferível é expurgar os trechos considerados ofensivos à intimidade ou honra do interessado, o que melhor atende ao sopesamento dos direitos envolvidos.
15. O intuito meramente financeiro a obstar autorização para biografias de pessoas notórias não deve ser prestigiado. Se os direitos da personalidade são inalienáveis – entre os quais a vida privada, a intimidade, o segredo – e se há lesão a eles, não podem ser objeto de transação o que, em muitos casos é subjacente à negativa de sucessores do retratado ou biografado. É problema que não desconhecemos e que não merece ser prestigiado pelo Poder Judiciário, devendo ser analisado emcada caso concreto, o que não justifica tornar disponíveis direitos da personalidade – nem direitos patrimoniais e morais de autor, a priori, afastando a responsabilidade civil, segundo presumido interesse público na publicação de biografias de pessoas notórias.
16. A hipótese não se enquadra no rol das exceções do art. 188 do CC e não há justificativa para se reconhecer uma espécie de “cheque em branco”, “ilha de imunidade” para os autores de biografias de pessoa notória, ou obra similar a elas. Ao contrário, a delicadeza dos direitos da personalidade e a irreparabilidade de eventuais danos, meramente compensáveis, reclamam cautela.
17. Com tais considerações acerca da relevância da responsabilidade civil, no nosso modo de ver:
17.1. Não cabe a definição apriorística de dano não indenizável ao se interpretar a colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade, à luz da Constituição e dos arts. 20 e 21 do CC.
Queremos enfatizar que
17.2. Não há relação de causa e efeito entre autorização para biografia e isenção de responsabilidade civil , bem como entre falta de autorização para biografia e existência de dano fundado em responsabilidade civil. Não há essa relação de causa e efeito.
17.3. Não pode a lei nem interpretação jurisprudencial consignar expressa ou implicitamente a inexistência de responsabilidade civil considerando a natureza da obra, como no caso das biografias.
17.4. Salvo na hipótese de concordância expressa do biografado ou retratado , à vista do inteiro teor da obra, a responsabilidade civil existirá sempre , em tese, com ou sem consentimento do biografado por força dos artigos 186 e 187 do Código Civil que acolheu a responsabilidade civil subjetiva, fundada na culpa.
17.5. Quando se cuida de pessoas notórias cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou estejam inseridas em acontecimentos de interesse da coletividade, da História, a interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil à luz da Constituição da República , sopesados com a liberdade de expressão, dispensa a autorização prévia para biografias e obras similares, mas não afasta a responsabilidade civil, se houver dano patrimonial e/ou moral. Enfatiza-se, assim, a relevância do caso concreto e da apreciação pelo Poder Judiciário.
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Nota da autora: segundo a regra da audiência pública realizada no dia 21/11/13, no STF, com início às 9 horas, cada orador convidado dispunha de apenas quinze minutos para a apresentação. Assim, algumas palavras e citações de lei foram suprimidas para caber no tempo rigorosamente seguido. Nenhum item, no entanto, deixou de ser expressamente mencionado. A íntegra da apresentação encontra-se na internet, na página do STF.