Versão para o jornal

Abaixo, artigo da minha autoria, publicado neste blog, na sua versão, revisada, para o Jornal Pequeno

Naturalmente bom

José Luiz Oliveira de Almeida*

Principio essas reflexões partindo da afirmação de Jean-Jacques Rousseau de que o homem é um ser naturalmente bom, cuja bondade restaria corrompida pela sociedade. É claro que, até onde vai a minha percepção, não dá pra dizer que todo homem é naturalmente bom, como não dá pra dizer que a sociedade necessariamente o torne mal. A experiência mostra, a contrariar a tese, que há pessoas que parecem ter nascido para fazer o mal; há outras tantas que, a despeito dos reveses da vida e das injustiças a que são submetidas, só disseminam o bem.

Dia desses, saí para dar as minhas habituais – e necessárias – pedaladas na Av. Litorânea, mantendo distância da Lagoa da Jansen, onde recentemente fui assaltado. A certa altura,  o pedal da bicicleta caiu. Fiquei desarmado com o inusitado do ocorrido.Tentei, em vão, colocar o pedal no lugar. Constatei logo a minha incompetência para resolver um problema que, desde a minha visão, parecia muito simples.

De repente, ao tempo em que eu insistia em recolocar o pedal, apareceu um rapaz  que, ao se aproximar, de súbito, me assustou. Pensei: meu Deus, outro assalto! O coração, claro, disparou. Apreensivo, cuidei de analisar o desconhecido por inteiro, como se essa análise boba – e precipitada, claro –, feita por conta apenas da aparência, me levasse a alguma conclusão sobre o desconhecido.

Muito simpático e solícito, o rapaz colocou o depósito de queijo que trazia consigo  (todos cortados em cubos, para venda) no chão, ao lado de um fogareiro já apagado, e passou a tentar colocar o pedal da bicicleta, me deixando em posição de absoluta reflexão. Nas primeiras tentativas, como não alcançasse êxito, tratou logo de, despojadamente, sentar no chão – absolutamente desprendido e à vontade.  Muito tranquilo, muito simpático, risonho, do tipo que não metia medo. Fui, nesse cenário, me acostumando com a situação, passando a dialogar com ele sobre o problema.

Fiquei a pensar com meus botões: de onde vem essa que me parece uma boa alma? Quem são os pais desse bom rapaz?  Seus amigos, quem são? Onde mora? De onde vem? Por que está me ajudando? Exigirá ele, depois, algo em troca? E o queijo? Pelo visto, ele se desinteressou de vendê-lo, certamente porque espera ser bem recompensado, pensava eu.

Um dado curioso. O desconhecido, muito à vontade, viu a tampa do depósito voar para longe, mas não largou o que estava fazendo. Continuou tentando colocar o pedal no lugar, com inaudita boa vontade. Um transeunte viu a tampa voando, correu atrás, trazendo-a de volta. A partir daí, eu próprio cuidei do depósito do desconhecido, atento para que a tampa não voasse mais. Ele, enquanto isso, lutava, embalde, para repor o pedal.

A certa altura, levantou-se e saiu correndo. Pediu que eu o aguardasse, pois iria procurar uma chave. Fiquei, ao lado da bicicleta, olhando para um lado e outro, enquanto aguardava o desconhecido, e persistia fazendo  questionamentos sobre a sua atitude e a pensar onde ele encontraria uma chave. Mas pensava positivamente: trata-se de uma boa alma, dessas que os reveses da vida não corrompem.

Em dado momento me dei conta dele saindo de um bar, com um alicate na mão, saltitante, alegre vislumbrando a possibilidade de resolver o meu problema. Ao se aproximar de mim, deu um sorriso, para, otimista, sentenciar:

– Agora vai!

Não foi! Mais uma tentativa debalde. A rosca estava estragada. Não havia mais o que fazer. Desanimado, olhei para um lado e para o outro, perdido. Ele percebeu o meu desânimo, e lamentou a minha frustração. Parecia que já me conhecia há muito tempo. Não! Ele não me conhecia! Não sabia de onde eu vinha, e nem para onde eu ia. Mas, ainda assim, procurou me ajudar, sem pedir nada em troca – por bondade.  Pelo desejo de servir ao próximo.

Decidido que não resolveríamos o problema, deixei a bicicleta em um bar e saí andando, desnorteado, pela Litorânea, apenas com as luvas nas mãos, decidido a voltar para casa a pé. No trajeto inicial, Chagas me acompanhou, lamentando o insucesso da empreitada. Ele seguia com o queijo no depósito, e o fogareiro,  apagado. Mas nada disso parecia preocupá-lo. O que ele lamentava mesmo era não ter podido me ajudar. Eu disse a ele, então:

– Amigo, não tenho nenhum trocado para te dar. Todavia, passo amanhã e deixo um dinheiro para você, no bar do Deusimar – onde a minha bicicleta ficou guardada, ao que ele objetou:

– Não se preocupe com isso. O que eu desejo mesmo, se fosse possível, é um emprego. Se o senhor puder me arranjar um, eu fico agradecido. Tá tudo muito difícil, doutor. O mais fácil seria roubar, como faz a galera, mas eu não quero isso pra mim. Eu quero mesmo é trabalhar.

Eu, lamentando, disse a ele que não tinha como lhe arrumar um emprego, ao que ele respondeu, sem mudar o tom e sem perder o sorriso, que não tinha problema, e que eu não me preocupasse com dinheiro, pois sabia que um dia a gente se encontraria e, nessa ocasião, eu daria a ele o que entendesse devesse dar. Não pediu mais nada. Seguiu o seu caminho e eu, segui o meu.

Ele partiu quando o fim de tarde ia chegando, para tentar vender  queijo assado na brasa. Seguiu com o depósito sob o braço esquerdo, e o fogareiro rodando com a mão direita, para atiçar o fogo. E sumiu da minha vista.

Chagas, para mim, é um ser naturalmente bom. As dificuldades da vida, o mundo, enfim, não o corrompeu, e quiçá não o corromperá jamais. Pena que eu não possa ajudar Chagas a conseguir um emprego. Fico te devendo essa, Chagas! Mas o mundo dá muitas voltas. Nós vamos nos encontrar novamente, em outra situação. E quando isso acontecer, quero, mais uma vez, agradecer-te e dizer-te que, mesmo as pessoas naturalmente boas como você, nesse mundo de pura competição e de ambição desmedida, podem ter que levar a vida desempenhando uma atividade menor, por falta de oportunidades. Mas o importante mesmo, em tudo aquilo que fazemos, é ter dignidade, fazer com dignidade; e dignidade você tem de sobra, pouco importando o tipo de trabalho que faça.

É desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão

e-mail: jose.luiz.almeida@globo.com

blog: www.joseluizalmeida.com

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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