MARGINAIS E ESTATÍSTICAS

 

tjmaNão lembro exatamente quando, mas recordo, todavia, que tendo estado em Fortaleza num desses feriados longos, vi coincidir a minha ida com a publicação de estatísticas que indicavam os índices de criminalidade naquela capital.
Hospedado na Avenida Beira Mar, saí com a minha mulher, num final de tarde, para caminhar no calçadão, como, aliás, costumam fazer os turistas que visitam aquela cidade.
Ao sair do hotel, uma senhora, muito simpática por sinal, veio ao nosso encontro e nos aconselhou a deixar objeto de valor no hotel, advertindo-nos dos índices de violência e do perigo de andar pelas ruas, fazendo uso de bens materiais.
Despojados de bolsa, carteira porta cédulas, celulares, cordões, bijuterias e outras coisas mais, saímos pelo calçadão, apavorados, olhando para todos os lados, com a sensação de que a qualquer momento pudéssemos ser vitimas de um assalto.
Curioso e preocupado, fiquei observando o comportamento das pessoas. Vi várias comprando presentes na tradicional “Feirinha”; outras comprando sorvete, exibindo a carteira porta cédulas, celulares…, vivendo naturalmente, como se estivessem numa cidade de primeiro mundo.
Decerto é que o quadro não parecia tão feio como pintaram. Contudo, encafifado com a advertência, achei melhor procurar um lugar mais seguro. E assim, peguei um táxi e fui ao shopping, na certeza de estar, pelo menos mais confortável psicologicamente, embora nem tão seguro.
Ao entrar no táxi, iniciei conversa com o motorista, cearense de Sobral, morando em Fortaleza há vinte anos, quinze deles dedicados ao serviço de táxi. E como quem não quer nada, fui puxando assunto. Percebi logo que o “coleguinha” era do tipo falante, do tipo que tem a maior facilidade para dar informações.
Comecei falando de futebol e depois sobre política. No futebol, fomos bem. Sem revolta, só alguma frustração. Inobstante, quando passamos a falar de política… Bem, imaginem o que ele disse dos nossos representantes. Mas eu não queria falar de política, nem de futebol. Queria mesmo era saber da violência.
Travei com ele o seguinte diálogo, a propósito:
– Li as últimas estatísticas dando conta de que Fortaleza é uma das capitais mais violentas do mundo. O que o amigo acha dessa informação?
Ele, sem titubeio, respondeu:
-Tudo mentira. Essas estatísticas não condizem com a realidade. Aqui não tem violência coisa nenhuma. A violência daqui não é diferente das demais capitais.
Percebi que ele não gostou. Ficou exaltado com a minha indagação. Pensei: meu Deus, esse assunto não é do agrado do companheiro. Fiquei preocupado e silenciei.
Depois de uma pausa, ele perguntou de onde eu vinha. Respondi que era de São Luis do Maranhão. Ele, galhofeiro, com um sorriso maroto, como uma vingança, disse:
-Terra de fulano, hein?
Como eu já esperava pela provocação, reagi.
-Verdade. Mas prefiro dizer tratar-se da terra de Josué Montelo, Gonçalves Dias, Humberto de Campos, Aluisio de Azevedo, Agostinho Marques, Ferreira Gullar, Joãsinho Trinta, Lourival Serejo, Milson Coutinho, Nauro Machado, Viriato Correa, Turíbio Santos e Zeca Baleiro, dentre outros maranhenses ilustres.
Daí em diante, ele passou a falar de política, como se pretendesse fugir do tema violência. Disse o diabo de todos. Do Ceará não escapou ninguém. Disse horrores de Lula e Dilma. Parecia odiá-los.
Diante de mais essa reação, dei um refresco, falei mal de alguns políticos e elogiei outros. Fiz ver a ele que há, sim, pessoas de bem no mundo da política e que não é justo a generalização.
Dei um tempo, o shopping se aproximando, e voltei ao tema que me preocupava: violência.
-Sim, amigo, e a violência?! Fortaleza é ou não uma cidade violenta?
Ele me olhou com a cara de quem não gostou da minha insistência, e disparou:
-O senhor quer saber de uma cosia? Essa violência de que falam tem uma explicação. É que nessas estatísticas fajutas, entram as mortes de marginais. E a morte de bandido não conta, doutor.
E prosseguiu:
– O camarada está praticando um assalto ou acaba de praticar, a polícia chega, e ele afronta a policia…tem de morrer. Agora, levar isso em conta para dizer que Fortaleza é violenta, aí, meu amigo, já é demais.
Foi adiante.
– O senhor pode observar: são poucas as pessoas de bem nessa história. Só morre bandido. E bandido, repito, não conta. Bandido é feito pra morrer mesmo.
Retruquei, mas confesso que o fiz temendo a reação dele:
-Sem julgamento? Na marra mesmo? Sem direito à defesa?
Ele me deu uma olhada de esguelha, e disparou:
– Defesa pra bandido, doutor? E quem é que vai esperar julgamento, doutor? Doutor, esses caras vão presos hoje e amanhã estão de volta à rua. Tem é que morrer mesmo. E não tem nada que contar essas mortes para efeito de estatísticas. Estatística é pra gente de bem. Bandido não conta, doutor, disse, elevando a voz.
– Esses caras, doutor – prosseguiu –, ou morrem em confronto com a polícia, ou são eles mesmos se matando por causa de droga. E tudo isso é coisa de periferia. Tem é que morrer mesmo, insistiu. São (sic) um bando de marginal que só faz mal à sociedade. Tirando esses bandidos das estatísticas, concluiu, o senhor pode crer que aqui não tem violência.
Estupefato, calei. Depois, pensei: Deus meu, a que ponto nós chegamos! Em que mundo estamos vivendo?! O ser humano não vale mais nada mesmo.
Segundo o nosso “analista urbano”, pessoas da periferia, os pobres, os ditos bandidos, esses devem mesmo morrer, e não servem nem mesmo para fins de estatística; não têm direito a um julgamento justo, ademais.
O que se deve lamentar, em face dessa visão enviesada, é que não são poucos os que pensam da mesma forma. Nas instâncias de controle, o que é lamentável, testemunhamos, com clareza, essa discriminação.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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