Sublimando o interesse público

Um eventual constrangimento, que ainda não existe concretamente, só poderá ocorrer em face do descumprimento da norma. Isso não ocorrendo, constrangimento ilegal não haverá, sabido que vivemos em um Estado de Direito, onde as normas jurídicas são postos à observância de todos, sem distinção.
Juiz José Luiz  Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal

 

Sou dos tais que entende que o interesse público deve ser sublimado, se entra em conflito com o interesse privado. Assim é que, ao defrontar-me, por exemplo, com uma prisão provisória, não hesito em mantê-la, se vislumbrar, quantum satis, que da soltura do acusado poderá advir prejuízos à ordem pública. Da mesma sorte e no mesmo passo, ainda que o acusado seja primário, possuidor de bons antecedentes e coisas que tais, se da sua mantença liberdade poderá resultar a profanação da ordem pública, prejuízo à instrução criminal e à aplicação da lei, não hesito em decretar a prisão.

A propósito do tema sob retina, ainda recentemente, na esteira de judiciosas decisões que pululam aqui e acolá, defrontei-me com um habeas corpus preventivo em face da famigerada Lei Seca. Diante do pleito, não hesitei em denegar a ordem, assentado nas minhas firmes convicções de que, in casu sub examine, o interesse público deve preponderar sobre o interesse individual.

É cediço que a minha decisão, como tudo o mais em direito, é controvertida e, decerto, receberá acerbas críticas daqueles que adotam posições antípodas acerca do tema em comento. Mas, ainda assim, decidi nessa alheta, na certeza de estar decidindo em favor da comunidade em que vivo.

A seguir, a decisão, verbis:

Vistos, etc.

Cuida-se de habeas corpus preventivo manejado por Maurício Camargo Bandeira, Francisco Alexandre Almeida de Luceno e José Francisco Nazaré, devidamente qualificados, os quais alegam que estão prestes a sofrer coação ilegal em sua liberdade de ir e vir, por parte das autoridades da Polícia Militar, da Polícia Rodoviária Estadual e agentes da Secretraria de Transportes do Município, em face da Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008.

Os impetrantes alegam que, como qualquer cidadão de bem de todo país, costumam ingerir, de forma controlada, bebida alcoólica, mas que, agora, em face da lei acima mencionada, estão prestes a sofrer um coação ilegal, em face do rigor estabelecida com a novel legislação.

Assim posta a questão, passo à decisão.

01.00. Do que dimana dos autos, não há nenhum prova, tênue que seja, de que os impetrantes estejam na iminência de sofrer qualquer coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

02.00. De outra parte, entendo que a novel legislação não atenta contra as garantias e liberdades fundamentais dos pacientes, os quais, como qualquer cidadão, devem se submeter aos rigores da lei, mesmo porque, em casos que tais, os direitos individuais, quando conflitam com os direitos da coletividade, devem ficar em plano secundário, sabido que no nosso ordenamento jurídico não há direitos absolutos.

03.00. Entendo que a vida em sociedade, em um Estado de Direito, pressupõe sacrifícios e incômodos, no interesse do bem comum, da almejada paz social, razão pela qual não vejo razão para concessão do habeas corpus sob retina, para que os pacientes se furtem de cumprir a lei, imposta à observância de todos, sobretudo porque, reafirmo, não há prova, mínima que seja, de que os pacientes estejam sob ameaça de sofrer qualquer coação em sua liberdade de ir e vir.

04.00. É cediço que os impetrantes, como qualquer outra pessoa, não são obrigados a produzirem provas em seu desfavor, não são obrigados a ceder seu corpo ou parte dele para fazer prova contra si, o que, desde meu olhar, independe de salvo-conduto, pois trata-se de direito e garantia individual inscrita na Lex Fundamentalis.

04.01. Desta forma, os pacientes, como qualquer outra pessoa, podem se recusar a realização do teste do bafômetro e do exame de sangue, pois, assim agindo, o fazem com amparo na premissa de que ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo e no direito fundamental da presunção de inocência.

05.00. Habeas corpus, sabe-se, é uma garantia individual ao direito de locomoção, para fazer cessar a ameaça ou coação à liberdade de locomoção, ou seja, ao direito do indivíduo de ir e vir. Os pacientes, ao que dimana dos autos, não estão na iminência de sofrer qualquer coação ilegal, mesmo porque a lei em vigor, imperfeita que seja, está em plena vigência e deve por todos ser observada, indistintamente.

06.00. Habeas corpus preventivo se concede quando a coação ilegal não ocorreu, mas tudo indica que esta prestes de se consumar. Nesse sentido, sem qualquer prova, mínima que seja, de que está prestes de se consumar uma coação à liberdade de ir e vir, não há que se conceder a ordem.

07.00. O habeas corpus, compreendo, não pode ser utilizado para retirar a eficácia de uma norma jurídica em plena vigência. Se os pacientes não desejam ser molestados, basta não ferir a lei, pois que, se o fizerem, aí não se há de falar em coação ilegal, mas em regular aplicação da lei.

08.00. A Lex Fundamentalis é de clareza solar ao estabelecer que “Conceder-se-á habeas corpus sem que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (artigo 5º LXVIII)

09.00. Entendo que a concessão do writ, nos moldes em que foi manejado, transformaria o Poder Judiciário em legislador positivo, o que é vedado pela Constituição, tendo em vista a separação dos poderes.

10.00. Um eventual constrangimento, que ainda não existe concretamente, só poderá ocorrer em face do descumprimento da norma. Isso não ocorrendo, constrangimento ilegal não haverá, sabido que vivemos em um Estado de Direito, onde as normas jurídicas são postos à observância de todos, sem distinção.

11.00. O argumento de que a lei é inconstitucional não socorre os impetrantes, pois que, é ressabido, não compete ao magistrado, em sede de habeas corpus, declarar a inconstitucionalidade de uma lei.

12.00. Os impetrantes, é de relevo que se reafirme, ainda que o faça à exaustão, não trouxeram aos autos nenhuma prova de que estivessem na iminência de sofrer qualquer coação em sua liberdade de ir e vir, razão pela há de se denegar a ordem impetrada.

13.00. É bem de concluir-se à luz das considerações supra, que não há qualquer constrangimento, ou iminência de constrangimento, ao direito de locomoção dos pacientes, pois essa possibilidade só ocorreria se estivessem dirigindo depois de terem ingerido bebidas alcoólicas, que é crime pela legislação em vigor. É dizer: quem não deseja ser detido e multado, não deve beber e dirigir.

14.00. Tudo de essencial posto e analisado, denego a ordem impetrada por Maurício Camargo Bandeira, Francisco Alexandre Almeida de Luceno e José Francisco Nazaré, por compreender que não estão sob ameaça de coação ou constrangimento ilegal em sua liberdade de ir e vir.

 

Int.

São Luis, 26 de agosto de 2008

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

Titular da 7ª Vara Criminal

 

 

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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