Crimes de autoria coletiva

No acórdão que publico a seguir, com voto condutor da minha autoria,  a  questão mais relevante condiz com o pedido de reconhecimento da inépcia da inicial, ao argumento de que nela não restaram individualizadas as condutas dos autores do fato.

Em determinados fragmentos, que antecipo a seguir, anotei:

O crime de quadrilha ou bando, encartado no art. 288, do CPB, é comumente denominado, pela doutrina, de crime de concurso necessário (ou de autoria coletiva), tendo em vista que, como é de sabença, somente se configura com a reunião estável, de 4 (quatro) ou mais pessoas, com o intuito de cometerem crimes.

Considerando que a consumação do crime de autoria coletiva decorre de uma convergência de vontades, a narração minudente de cada uma das condutas atribuídas aos vários agentes é uma tarefa assaz dificultosa, para não dizer inviável, sobretudo, quando estamos diante de bandos criminosos numerosos, com mais de dez integrantes, hipótese aventada nos autos (dezesseis integrantes).

Diante de tal peculiaridade, a jurisprudência vem admitindo, excepcionalmente, que em crimes desse matiz, a exordial acusatória possa narrar os fatos de forma genérica, tendo em vista a impossibilidade de se mensurar, com exatidão, em pormenores, a quota de participação de cada um dos corréus na empreitada criminosa.

A seguir, o voto, por inteiro.

PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL

Sessão do dia 15 fevereiro de 2011.

Nº Único: 0018676-94.2010.8.10.0000

Habeas Corpus Nº. 039006/2010 – Grajaú

Paciente Advogado

Impetrado

Incidência Penal:

Relator

: J. C. S. L.: A. G. N.

: Juízo da 2ª Vara da Comarca de Grajaú

: Arts. 288 e 157, § 2º, I, II, IV e V, do CP

: Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

Acórdão Nº _____________

Ementa. HABEAS CORPUS. CRIMES DE QUADRILHA E ROUBO QUALIFICADO. ALEGAÇÕES DE IMPUTAÇÕES GENÉRICAS NA DENÚNCIA, E AUSÊNCIA DE LASTRO PROBATÓRIO MÍNIMO PARA DEFLAGRAR O JUS PERSEQUENDI. INOCORRÊNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INVIABILIDADE. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO SATISFATÓRIA. ORDEM DENEGADA.

1. Nos chamados crimes de concurso necessário, ou delitos de autoria coletiva, admite-se que o órgão acusador, excepcionalmente, formule imputação genérica, diante da inviabilidade de se descrever, em pormenores, a quota de participação de cada um dos integrantes na empreitada criminosa.

2. Não é inepta a denúncia que descreve o crime, em tese, atribuído ao bando criminoso, e, em seguida, insere a conduta de um agente nesse contexto,  descrevendo-o, ainda que sucintamente.

3. “O trancamento da ação penal por meio do habeas corpus se situa no campo da excepcionalidade (HC 901.320?MG, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 25?05?2007), sendo medida que somente deve ser adotada quando houver comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito (HC 87.324?SP, Primeira Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia, DJU de 18?05?2007).”

4. O acentuado grau de censurabilidade dos crimes atribuídos ao bando, cujas reiteradas condutas lesam, em tese, bens jurídicos de toda a coletividade, em diferentes Comarcas deste Estado, é fundamento idôneo para lastrear o decreto de prisão preventiva como garantia da ordem pública.

5. A fuga do réu, logo após o fato delituoso, não se enquadra na noção de “fuga legítima”, e denota inequívoco intento de frustrar a aplicação da lei penal, recomendando, assim, a manutenção da segregação cautelar.

6. A real probabilidade de evasão do acusado repercute, também, na regularidade da instrução, que poderá vir a ser embaraçada, caso não se oportunize a oitiva do réu em juízo, cujo depoimento, para além de meio de defesa, constitui-se em inequívoco instrumento de prova (natureza híbrida da qualificação e interrogatório do réu).

7. Precedentes do STF e do STJ.

8. Ordem denegada.

 

Acórdão – Vistos, relatados e discutidos os presentes autos em que são partes as acima indicadas, ACORDAM os Senhores Desembargadores da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, por unanimidade e de acordo com o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, em denegar a ordem impetrada, nos termos do voto do Desembargador Relator.

Participaram do julgamento os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Antonio Fernando Bayma Araujo (Presidente), José Luiz Oliveira de Almeida e Raimundo Nonato Magalhães Melo. Presente pela Procuradoria Geral de Justiça a Dra. Domingas de Jesus Froz Gomes.

São Luís(MA), 15 de fevereiro de 2011.

DESEMBARGADOR Antonio Fernando Bayma Araújo

PRESIDENTE

 

 

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR

Relatório – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeia (relator) – Cuida-se de habeas corpus com pedido de liminar, impetrado pelo advogado A. G. N., em favor de J. C. S. L., contra ato proveniente do MM. Juiz de Direito da 2ª Vara da Comarca de Grajaú-MA.

Colhe-se da inicial do mandamus, o seguinte relato:

I – que J. C. S. L. foi denunciado, juntamente com outras dezesseis pessoas, pela prática, em tese, dos delitos previstos nos artigos 288 e 157, § 2º, I, II, IV e V, ambos do CPB, e, por ocasião do recebimento da denúncia, a autoridade judiciária impetrada decretou sua prisão preventiva, por garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal, bem como para assegurar a aplicação da lei penal;

II – que tanto o recebimento da denúncia como o decreto de prisão preventiva são ilegais, posto que a peça inaugural não individualizou a conduta do paciente, nem apontou a existência de indícios de autoria da participação dele na empreitada criminosa, mostrando-se, segundo aduz, totalmente inepta;

III – que não restou configurado o fumus boni iuris, diante da inexistência de indícios suficientes de autoria com relação ao paciente, bem como, do periculum in mora, em razão da improcedência dos fundamentos utilizados para a decretação da medida cautelar restritiva de liberdade (garantia da ordem pública, conveniência da instrução, e para assegurar a aplicação da lei penal); e

IV – no contexto da prisão preventiva, sustenta, ainda:

a) que a gravidade objetiva do delito não é motivo idôneo para decretá-la; e

b) que não houve o intuito de fuga do paciente do distrito da culpa, visto que apenas se afastou temporariamente do domicílio, porém, possui residência fixa na cidade de Imperatriz-MA e, caso concedida a ordem, compromete-se a comparecer a todos os atos processuais.

Com fulcro em tais razões, requer, em caráter liminar, a concessão da ordem de habeas corpus, para trancar a ação penal movida contra o paciente, e revogar a decisão que decretou sua prisão preventiva, com a expedição de contramandado de prisão em seu favor, confirmando-se a liminar em julgamento final.

Instruiu o writ com os documentos de fls. 29/775.

Às fls. 780, a Desembargadora Plantonista requisitou da autoridade impetrada as informações acerca do writ em apreço, por entendê-las imprescindíveis para a apreciação do pleito de liminar.

Prestadas as informações (fls. 783/784), vieram os autos conclusos.

Através da decisão de fls. 789/791, a Desembargadora substituta indeferiu a liminar vindicada, por não ter vislumbrado a ocorrência dos requisitos necessários para sua concessão.

A Procuradoria Geral de Justiça, em parecer lançado às fls. 794/799, da lavra do d. Procurador Joaquim Henrique de Carvalho Lobato, opinou pela denegação da ordem, asseverando que o trancamento de ação penal, em sede de habeas corpus, é medida excepcional, somente admissível quando deflagrado o jus persequendi sem qualquer lastro probante mínimo, o que não ocorreu na espécie, conforme alegou. Disse, ademais, que a prisão preventiva do paciente está devida e concretamente fundamentada.

É o relatório.

Voto – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator) – Cuida-se de habeas corpus com pedido de liminar, impetrado pelo advogado A. G. N., em favor de J. C. S. L., contra ato proveniente do MM. Juiz de Direito da 2ª Vara da Comarca de Grajaú-MA.

Preliminarmente, conheço do presente habeas corpus, eis que atendidos os respectivos requisitos legais de admissibilidade.

O impetrante alega, em essência, que o paciente está sofrendo violação à sua liberdade de ir e vir, sob dois enfoques:

I – em razão da própria ação penal instaurada contra o paciente, na Comarca de Grajaú, por entender que a peça denunciatória que a inaugurou é inepta (destituída de lastro probatório mínimo, no que se refere à individualização da autoria delitiva); e

II – pelo decreto de prisão preventiva, reputando-o insuficientemente fundamentado.

Pois bem.

Quanto ao primeiro argumento, entendo que, na esteira da manifestação da PGJ, a denúncia não é inepta, pois atende os requisitos constantes no art. 41, do CPP, com algumas peculiaridades em relação à individualização da autoria, em razão da natureza dos crimes imputados ao paciente.

Explico.

O crime de quadrilha ou bando, encartado no art. 288, do CPB, é comumente denominado, pela doutrina, de crime de concurso necessário (ou de autoria coletiva), tendo em vista que, como é de sabença, somente se configura com a reunião estável, de 4 (quatro) ou mais pessoas, com o intuito de cometerem crimes.

Considerando que a consumação do crime de autoria coletiva decorre de uma convergência de vontades, a narração minudente de cada uma das condutas atribuídas aos vários agentes é uma tarefa assaz dificultosa, para não dizer inviável, sobretudo, quando estamos diante de bandos criminosos numerosos, com mais de dez integrantes, hipótese aventada nos autos (dezesseis integrantes).

Diante de tal peculiaridade, a jurisprudência vem admitindo, excepcionalmente, que em crimes desse matiz, a exordial acusatória possa narrar os fatos de forma genérica, tendo em vista a impossibilidade de se mensurar, com exatidão, em pormenores, a quota de participação de cada um dos corréus na empreitada criminosa.

Nesse sentido, o Pretório Excelso já se manifestou:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. INÉPCIA DA DENÚNCIA. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. FALTA DE INDIVIDUALIZAÇÃO DE CONDUTA. CRIME SOCIETÁRIO. ART. 41, CPP. DENEGAÇÃO […] 5. A jurisprudência desta Corte tem considerado que, em sede de crime societário, não se exige a individualização pormenorizada de condutas, mesmo porque normalmente a comunhão de desígnios e vontades quanto à divisão de tarefas e atos executórios para a prática do crime somente é conhecida pelos próprios sócios, e não por terceiros, como exatamente ocorre no caso em tela. 6. A conduta do paciente foi suficientemente individualizada, ao menos para o fim de se concluir no sentido do juízo positivo de admissibilidade da imputação feita na denúncia. 7. Habeas corpus denegado.[1]

(sem destaques no original)

No mesmo vértice:

EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL. DENÚNCIA. INÉPCIA E FALTA DE JUSTA CAUSA. TRANCAMENTO. INADMISSIBILIDADE. CRIME SOCIETÁRIO. PRESENÇA DE INDÍCIOS MÍNIMOS DE AUTORIA PARA A PROPOSITURA E RECEBIMENTO DA AÇÃO PENAL. ARTS. 41 E 395 DO CPP. DESNECESSIDADE DE DESCRIÇÃO PORMENORIZADA E DE INDIVIDUALIZAÇÃO DAS CONDUTAS. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA. A análise da suficiência ou não de provas para a propositura da ação penal, por depender de exame minucioso do contexto fático, não pode, como regra, ser levada a efeito pela via do habeas corpus. Precedentes. Não se exige descrição pormenorizada de condutas em crimes societários, quando presentes, na inicial acusatória, elementos indicativos de materialidade e autoria do crime, suficientes para deflagração da ação penal. Precedentes. A conduta do paciente foi suficientemente individualizada, ao menos para o fim de se concluir no sentido do juízo positivo de admissibilidade da imputação feita na denúncia. Ordem denegada.[2]

(sem destaques no original)

Inobstante tal elastério hermenêutico, permitindo a narrativa fática genérica em crimes de autoria coletiva, no caso em apreço, em atento olhar à denúncia, pude observar que, ao contrário do que afirmou o impetrante, a conduta do paciente foi, sim, de certa forma, individualizada e contextualizada na reunião criminosa. Vejamos.

A inicial acusatória narra a ação delituosa do bando, nos seguintes termos:

“[…] O grupo criminoso foi formado com o objetivo de roubar caminhões semi-novos, com características previamente encomendadas pelos receptores e, levá-los para as cidades de Açailândia e Imperatriz e de lá enviadas para os Estados de Pará e Tocantins, havendo conjuntamente a comercialização das cargas subtraídas.

O grupo agia através da distribuição de tarefas entre os participantes de forma a facilitar a aquisição através da subtração mediante violência ou grave ameaça dos veículos, o desmonte, o transporte das cargas e caminhões roubadas, a receptação e, o apoio logístico. […]”

Mais adiante, a denúncia individualiza a incumbência de cada um dos integrantes da quadrilha. No caso em apreço, relativamente ao paciente, assevera:

“[…] 2 – J. C. S. L., vulgo “Gordinho”, atua diretamente nos assaltos, foi alvo de investigação nos Estados de Goiás, Tocantins e Maranhão acerca do envolvimento com roubo de veículos, também sendo abordado, em 17/11/2008, na cidade de Araguatins/TO, quando eram monitorados por policiais do Estado do Maranhão, após a prisão de 02 (dois) elementos E. de S. C. e F. N. da S. envolvidos com o desmanche de caminhões em Barra do Corda/MA, Arame/MA, e Grajaú/MA. […]”

Embora de forma sucinta, foi atribuída ao paciente uma tarefa específica na empreitada criminosa, qual seja, a de executar os roubos aos caminhões de cargas nas rodovias do sul do Maranhão.

Assim, entendo que a denúncia, formulada com base em vasto material de investigação colhido na fase inquisitorial, possui, sim, lastro probante mínimo.

Com efeito, da leitura da inicial acusatória, observo que a conduta do paciente e os demais corréus, ao contrário do que alegado no writ, foi individualizada, atribuindo-se ao paciente a função de “executar os assaltos”.

No depoimento do corréu João V. C. R., na fase inquisitorial (fls. 100/101), ele relata que o paciente teria intermediado a venda de uma “caçamba” roubada no município de Grajaú, cuja transação só não se efetivou porque o proprietário acionou a polícia, o que motivou o depoente e o paciente a fazerem um acordo, devolvendo o bem. Eis o excerto do depoimento:

“[…] que recentemente o interrogado intermediou a venda de um basculante que estava em frente a AABB, em um depósito de carroceria, sendo o objeto vendido para W. de G., o qual possui caçambas e presta serviços de terraplenagem; que foi pago o valor de R$ 15.000,00 (quinze mil reais); que no momento em que a caçamba era transportada, um senhor chamou a polícia, e denunciou que a mesma lhe pertencia e havia sido roubada no Estado do Pará, juntamente com seu caminhão; que para evitar maiores problemas, o interrogado apresentou o indivíduo conhecido por “G”, para quem fez o serviço de corretagem; que o interrogado J., vulgo “GORDINHO”, conseguiram fazer um acordo com o proprietário da caçamba, sendo-lhe devolvido o caminhão e a caçamba, que estavam em poder de “G”; que deram também um carro a título de indenização pelos pneus que já haviam sido vendidos; […] que J., P. e D. são vistos juntos eventualmente; que já ouviu dizer do envolvimento de P. em desmanches de caminhões, mas não sabe detalhes, apenas comentários, sendo que não compra nada dele; […]”

(sic – sem destaques no original)

Diante deste fragmento de depoimento, existem, sim, indícios de autoria atribuída ao paciente, cuja elucidação deve ficar a cargo da instrução criminal.

Assim, desde meu olhar, a inicial narrou os fatos criminosos atribuídos ao paciente e aos corréus, em todas as suas circunstâncias, os qualificou e, por fim, procedeu-se ao enquadramento típico.

Não há que se falar, portanto, em denúncia inepta, pois, como é de sabença, tal peça que inaugura a ação penal sustenta-se em provas de materialidade delitiva, e indícios de autoria, e, quanto esta, repiso, foi suficientemente demonstrada, no contexto de um crime de autoria coletiva (formação de quadrilha).

Obtempero, ademais, que o trancamento da ação penal, pela estreita via do writ, é medida excepcional, só sendo permitido fazê-lo quando constatado, de plano, absoluta e inequívoca ausência de lastro probatório mínimo para deflagração do jus persequendi (ausência de justa causa), o que, como já demonstrei à exaustão linhas acima, não verifiquei no caso.

À guisa de reforço, trago à colação paradigmático acórdão do STJ, cuja ementa cita vários precedentes da Suprema Corte acerca da matéria:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO CULPOSO. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA PERSECUÇÃO PENAL. INOCORRÊNCIA. PRESCRIÇÃO ANTECIPADA OU VIRTUAL IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 438?STJ.

I – O trancamento da ação penal por meio do habeas corpus se situa no campo da excepcionalidade (HC 901.320?MG, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 25?05?2007), sendo medida que somente deve ser adotada quando houver comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito (HC 87.324?SP, Primeira Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia, DJU de 18?05?2007). Ainda, a liquidez dos fatos constitui requisito inafastável na apreciação da justa causa (HC 91.634?GO, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 05?10?2007), pois o exame de provas é inadmissível no espectro processual do habeas corpus, ação constitucional que pressupõe para seu manejo uma ilegalidade ou abuso de poder tão flagrante que pode ser demonstrada de plano (RHC 88.139?MG, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 17?11?2006).

II – Tratando-se de denúncia que, amparada nos elementos que sobressaem do inquérito policial, expõe fatos teoricamente constitutivos de delito (o paciente teria sido negligente na sua função de médico, o que teria causado a morte da vítima), imperioso o prosseguimento do processo-crime.

III – Carece totalmente de amparo jurídico, em nosso sistema processual penal, a denominada prescrição antecipada ou virtual da pena, que tem como referencial condenação hipotética (Precedentes). Súmula 438?STJ.

Ordem denegada.[3]

(sem destaques no original)

É de rigor, portanto, que a ação penal siga seu curso no juízo a quo.

Passemos adiante a analisar os argumentos da impetração que atacam a prisão preventiva. São eles:

I – que o pressuposto da prisão preventiva  relativo ao fumus boni juris não foi atendido, em razão de não haver indícios suficientes de autoria delitiva;

II – da mesma forma, o periculum in mora, em seu entender, não restou suficientemente demonstrado, pois:

a) a autoridade indigitada coatora considerou a própria periculosidade objetiva do delito, abstratamente considerada, como justificativa para a prisão, de modo a resguardar a ordem pública, o que é ilegal, em seu entender, por representar bis in idem, além de olvidar da necessária e concreta fundamentação;

b) que, como já se passaram mais de dez meses, desde a prática do fato delitivo, “[…] os crimes imputados, embora graves, perderam a nitidez na opinião popular, que passa a substituir os acontecimentos pretéritos por novos acontecimentos de grande repercussão que se sucedem no contexto do cotidiano. […]”, não havendo que se falar, pois, em clamor popular para sustentar a prisão cautelar;

c) que todo o trabalho de investigação já foi concluído, e não há nos autos qualquer elemento concreto, indicando que o paciente estaria obstruindo a instrução, ameaçando ou afugentando testemunhas, não subsistindo, pois, qualquer razão para que o decreto de prisão preventiva se sustente por conveniência da instrução; e

d) que não ficou comprovado o real intento de fuga do paciente, e, segundo alegou, somente quando evidenciado o intento de obstruir a justiça, ou seja, na hipótese de fuga ilegítima, anterior ao decreto de prisão, logo após o fato delituoso, é que seria lícita a prisão cautelar, o que não ocorreu no caso, pois o paciente “fugiu” após a expedição do respectivo mandado de prisão preventiva.

Pois bem.

O primeiro ponto (ausência de indícios de autoria), resta superado, pois os argumentos da impetração, nesse sentido, já foram rechaçados linhas acima.

Mesmo não objetado, especificamente, na inicial do mandamus, devo alertar que os bens apreendidos na residência do paciente (placa de uma moto, CRLV de um veículo Montana, declaração de transferência de titularidade de veículos etc.), conforme auto circunstanciado de fls. 122/123, constituem-se, presumivelmente, em objetos advindos do crime a si imputado, o que denota a latente materialidade do crime.

Quanto ao periculum in mora, devo dizer que, não obstante os respeitáveis e doutos argumentos delineados na impetração, deles não comungo, conforme demonstrarei doravante.

O requisito da prisão preventiva, para a garantia da ordem pública, desde meu olhar, restou, sim, suficientemente fundamentado, e não considerou, como quer fazer crer o impetrante, a gravidade abstrata dos crimes imputados ao paciente.

Com efeito, restou assentado na decisão do douto magistrado de base (fls. 262/266):

“[…] A prova da existência de vários crimes contra o patrimônio veio fartamente acostada no inquérito policial, onde ali é noticiado um verdadeiro rosário de infrações penais, que vêm ocorrendo na Região Sul maranhenses, com ramificações nos Estados do Pará e Tocantins, tais como receptação qualificada, roubo majorado, adulteração das características de veículos, falsidade documental, clonagem de automóveis, desmanche, comércio ilegal de autopeças, receptação e talvez latrocínio. […]”

Da leitura deste excerto da decisão, é evidente que tais condutas demonstram um acentuado grau de reprovabilidade, pois, indicam, em tese, verdadeira reiteração criminosa, cujas ramificações interestaduais da quadrilha lesam, inequivocamente, a incolumidade pública em diferentes Comarcas deste Estado.

Não se trata, em minha compreensão, de bis in idem. É, isto sim, uma situação fática, concretamente demonstrada, que justifica a imposição da restrição cautelar ao direito ambulatorial do paciente, pois, noticiam os autos a ocorrência de vários roubos de caminhões de carga, receptações etc., os quais, em tese, o paciente estaria envolvido, situação que evidencia, com já dito, maior censurabilidade de sua conduta.

A jurisprudência, em casos análogos, assim têm se manifestado:

HABEAS CORPUS. FORMAÇÃO DE QUADRILHA OU BANDO (ARTIGO 288 DO CÓDIGO PENAL). PRISÃO  PREVENTIVA. REITERAÇÃO CRIMINOSA. ORDEM DENEGADA.

1. A prisão cautelar do paciente foi mantida com base em elementos idôneos constantes dos autos, que demonstram a necessidade da segregação cautelar. Afinal, há indícios de que seria ele integrante de quadrilha que se dedica à prática de delitos contra o patrimônio.

Registra diversos antecedentes criminais e condenação pela prática de delito de formação de quadrilha ou bando e falsidade ideológica.

2. É lícito concluir, pela leitura dos autos, que o paciente, em liberdade, daria continuidade à prática de delitos. Em outras palavras, a segregação cautelar está justificada na garantia da ordem pública.

3. Coação ilegal não caracterizada.

4. Ordem denegada.[4]

Na mesma senda:

CRIMINAL. HC. CRIMES CONTRA O MEIO AMBIENTE. QUADRILHA. PRISÃO PREVENTIVA. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO SEGREGATÓRIA. INOCORRÊNCIA. REITERAÇÃO CRIMINOSA. GRUPO QUE ATUA HÁ BASTANTE TEMPO. NECESSIDADE DA CUSTÓDIA PARA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DE SE VISLUMBRAR A SUBSTITUIÇÃO DA PENA A SER IMPOSTA AOS RÉUS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. ORDEM DENEGADA.

Não há ilegalidade na decisão que decretou a prisão preventiva dos pacientes, com base na garantia da ordem pública, por se tratarem de acusados que, juntamente com os outros 15 corréus, seriam membros de quadrilha que atua reiteradamente na prática de delitos contra o meio ambiente, estando o grupo agindo há mais de oito meses, tendo comercializado mais de 14 mil animais no período.

Não se trata de suposições e probabilidades a respeito de eventual reiteração da prática delitiva, mas de fundamentação concreta e vinculada à realidade dos réus, o que é perfeitamente hábil a fundamentar a segregação, por denotar ser a personalidade dos pacientes voltada para a prática delitiva, obstando a revogação da medida constritiva para garantia da ordem pública.

Evidenciado que os pacientes foram denunciados por vários delitos, praticados, supostamente, em continuidade delitiva, resta afastada a alegação de constrangimento ilegal na manutenção de sua custódia cautelar, por não ser possível, na atual fase processual, vislumbrar a possibilidade da substituição da pena a ser imposta a eles no momento de sua eventual condenação.

Ordem denegada.[5]

No Pretório Excelso, o entendimento não é diferente:

EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL. PRISÃO PREVENTIVA PELA SUPOSTA PRÁTICA DOS CRIMES DE FURTO QUALIFICADO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. 1. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO DA PRISÃO. MATÉRIA QUE PARA SER APRECIADA DEMANDARIA SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. 2. ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE FUNDAMENTO PARA A MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DO PACIENTE. POSSIBILIDADE DE REITERAÇÃO DELITIVA: MOTIVAÇÃO IDÔNEA. PRECEDENTES. 1. […]. 2. Decreto de prisão preventiva devidamente fundamentado na garantia da ordem pública, considerada a participação do Paciente em quadrilha responsável pela prática de 98 furtos de caminhões, entre outros delitos, e a possibilidade objetiva de reiteração delituosa, que não é desmentida pelos elementos constantes dos autos. 3. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa parte, ordem denegada.[6]

Assim, correta a fundamentação da prisão cautelar, que considerou a gravidade concreta das condutas imputadas ao paciente para justificá-la.

O argumento esboçado na alínea “b” acima, a meu ver, é, de certa forma, irrelevante, pois comungo do entendimento de que um decreto de prisão cautelar não pode, unicamente, se valer do clamor popular.

Devo alertar, contudo, que não vislumbrei na decisão ora combalida qualquer menção à necessidade da prisão cautelar para atender à suposto reclamo da sociedade.

O contexto em que a garantia da ordem pública foi inserida, na decisão, relaciona-se à gravidade concreta dos delitos, como demonstrei supra, e não com alegado clamor da população.

Quanto a necessidade da prisão, para assegurar a aplicação da lei penal, tendo em conta a fuga do paciente, melhor sorte não assiste ao impetrante.

Neste tópico, alegam os impetrantes que a fuga do paciente foi legítima, vez que ocorreu a posteriori da decretação da prisão. Afirmam, ademais, que somente a fuga perpetrada logo após a prática criminosa é que exterioriza real intento de fuga, de obstruir a justiça, o que não ocorreu no caso, segundo disseram os impetrantes.

Embora a discussão em torno da legitimidade (ou não) da fuga suscite interessante controvérsia e debate, na doutrina e jurisprudência, a situação posta nos autos, ao contrário do que afirmado pelos impetrantes, não se coaduna com a hipótese de “fuga legítima”, como esboçado na inicial.

Isso porque, como bem ponderou a autoridade judiciária indigitada coatora, na decisão ora combalida, o paciente e os demais corréus articularam-se e empreenderam fuga, logo após a prática delituosa, fato corroborado nas informações de fls. 783/784.

Assim, tudo indica que, caso se restabeleça seu status libertatis, certamente, empreenderá fuga, dificultando a atuação do Estado-juiz, na aplicação da lei penal.

Por derradeiro, a conveniência da instrução está, de certa forma, entrelaçada ao fundamento da preventiva para garantir a aplicação da lei penal, tendo em mira a latente probabilidade de fuga, a qual explicitei supra.

Explico melhor.

Na atual sistemática do CPP, o interrogatório do acusado constitui-se em meio de prova. É a dicção legal, topologicamente considerada, já que o interrogatório do acusado encontra-se inserido no Capítulo III do Título VII, do CPP.

Nada obstante, a doutrina se divide, havendo aqueles que consideram o interrogatório, unicamente, como meio de defesa, em virtude das garantias franqueadas ao acusado: calar-se, apresentar sua versão dos fatos, e até mentir (possível, para alguns). Há, ainda, um terceiro posicionamento, majoritário, que considera o interrogatório como meio de defesa e meio de prova, advindo, daí, sua natureza híbrida. Nesse sentido:

“[…] Interrogatório como meio de prova e meio de defesa, indistintamente: para a terceira corrente, que tem prevalecido, o interrogatório tem natureza jurídica híbrida ou mista, pois tanto é um meio de defesa, em razão das incontestáveis prerrogativas dadas ao réu pela legislação (v.g. direito de calar-se; apresentar sua versão dos fatos), como também é meio de prova, afinal, o magistrado vai realizar as perguntas pertinentes à elucidação dos fatos, assim como a acusação e o advogado do interrogado também o farão. Nessa senda, o magistério de Mirabete, Denílson Feitoza Pacheco, dentre outros. É também o entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça […]”[7]

Com efeito, muito embora o paciente possa utilizar-se de seu direito constitucional de permanecer em silêncio, deve ser oportunizada sua qualificação e interrogatório em juízo, o que, certamente, auxiliará na convicção do juízo processante, caso o paciente decida depor.

Sua real probabilidade de fuga, pois, constitui-se em óbice ao jus persequendi em dois enfoques distintos: potencialmente, frustrará a aplicação da lei penal (em caso de condenação), e, de outro prisma, obstará a regular instrução criminal, advindo daí, a necessidade de manter-se sua prisão, aliado aos outros argumentos acima expostos.

Com as considerações supra, conheço do presente habeas corpus, para, de acordo com o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, denegar a ordem impetrada.

É como voto.

Sala das Sessões da Primeira Câmara Criminal, do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em São Luís, 15 de fevereiro de 2011.

 

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR


[1] HC 94773, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 02/09/2008.

[2] HC 98840, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 30/06/2009.

[3] HABEAS CORPUS Nº 150.537 – SP (2009?0201221-3). Rel.: Min. Félix Fischer, 5ª T. DJ: 02/08/2010.

[4] HC 165.817/PE, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 18/11/2010, DJe 06/12/2010.

[5] HC 151.404/BA, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 04/11/2010, DJe 22/11/2010).

[6] HC 104077, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 26/10/2010.

[7] TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4. ed. 2010. Jus Podium, pp. 387-388.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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