Direito concreto

No voto que publico a seguir, o apelante pleiteou, dentre outras coisas, que fosse decotado da pena a majorante decorrente da aplicação da lei dos crimes hediondos, em face da revogação do artigo 224, do CP, pela Lei 12.015/2009.

Nessa parte do recurso entendi tivesse razão o apelante.

Em determinado excerto da decisão anotei:

“[…]Com efeito, a majorante suso mencionada restou revogada com a superveniência da Lei 12.015/2009, não sendo mais possível sua aplicação, para fatos posteriores à sua edição, aos crimes  em razão dos quais não tenha decorrido lesão corporal grave ou morte da vítima.

Convém registrar que os fatos narrados na exordial acusatória ocorreram antes da vigência da Lei nº 12.015/2009, que  revogou expressamente o artigo 224, a, do Código Penal, que tratava dos casos de violência presumida nos crimes contra a liberdade sexual, destacando-se, ainda, que não houve, na hipótese em discussão, violência real praticada contra a vítima.

Antes da nova legislação, que alterou a disciplina jurídica dos delitos sexuais, agora denominados crimes contra a dignidade sexual, o Superior Tribunal de Justiça já se posicionava no sentido da não incidência da majorante, a não ser quando resultasse lesão corporal grave ou morte[…]”

Noutra fragmento, anotei:

“[…]Nessa situação, é evidente que, tratando-se de violência ficta, a Lei 12.015/09 é mais prejudicial ao recorrente, posto que prevê pena mínima de 8 (oito) anos de reclusão, não se aplicando, portanto, o art. 217-A, do Código Penal, em virtude do princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa.

Em outras palavras, a irretroatividade da novel legislação se impõe tendo em vista que quem praticou o delito de atentado violento ao pudor contra menor de 14 (quatorze) anos, na vigência da lei anterior, respondia pelo delito tipificado no art. 214, do CP, com violência ficta, em combinação com o disposto no art. 9º, da Lei 8.072/90, resultando a pena mínima em 9 (nove) anos de reclusão[…]”

A seguir, o voto, por inteiro.


PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL

Sessão do dia 05 de abril de 2011.

Nº Único: 0029401-04.2008.8.10.0004

Apelação Criminal nº 000492/2011- São Luís

Apelante : E.de J. S. B.
Advogado : E. L.
Apelado : Ministério Público Estadual
Incidência Penal : Art. 214, c/c 224, a, e art. 71, todos do CP
Relator : Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

Acórdão nº ______

Ementa. APELAÇÃO CRIMINAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR EM CONTINUIDADE DELITIVA. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. PLEITO ABSOLUTÓRIO INVIÁVEL. AUTORIA E MATERIALIDADE INCONTESTÁVEIS. PALAVRA DA VÍTIMA EM HARMONIA COM O CONJUNTO PROBATÓRIO. CAUSA DE AUMENTO DO ART. 9º, DA LEI 8.072/90. INAPLICABILIDADE. LEI 12.015/2009. PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS GRAVOSA. REDIMENSIONAMENTO DA REPRIMENDA IMPOSTA. APELO PARCIALMENTE PROVIDO.

1. Não merece prosperar a pretensão absolutória se restaram comprovados nos autos a materialidade e a autoria do crime imputado ao apelante.

2. Em crimes contra a liberdade sexual, a palavra da vítima, mesmo que menor de idade, quando em harmonia com as demais provas colhidas, assume especial relevo, posto que, em regra, são praticados às ocultas.

3. Com a superveniência da Lei 12.015/2009, que revogou expressamente o art. 224, a, do CP, não é mais possível a aplicação da majorante prevista no artigo 9º, da Lei dos Crimes Hediondos ao crime de atentado violento ao pudor, do qual não tenha decorrido lesão corporal grave ou morte da vítima (Precedentes do STJ).

4. Tratando-se de violência ficta, a Lei 12.015/2009 é mais prejudicial ao réu, posto que prevê pena mínima de 8 (oito) anos de reclusão, não se aplicando, portanto, o art. 217-A, do CP, em virtude do princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa.

5. Apelação conhecida e parcialmente provida para, afastando a majoração prevista na Lei 8.072/90, redimensionar a pena fixada na sentença, bem como alterar o regime inicial de cumprimento de pena.

Acórdão – Vistos, relatados e discutidos os presentes autos em que são partes as acima indicadas, ACORDAM os Senhores Desembargadores da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, por unanimidade e de acordo com o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, em dar provimento parcial ao recurso, nos termos do voto do Desembargador Relator.

Participaram do julgamento os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Antônio Fernando Bayma Araújo (Presidente), Raimundo Nonato Magalhães Melo e José Luiz Oliveira de Almeida. Presente pela Procuradoria Geral de Justiça o Dr. Eduardo Jorge Hiluy Nicolau.

São Luís, 05 de abril de 2011.



DESEMBARGADOR Antônio Fernando Bayma Araújo

PRESIDENTE

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira De Almeida

RELATOR


Apelação Criminal nº 000492/2011- São Luís

Relatório – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Cuida-se de recurso de apelação interposto por E. de J. S. B., por meio de seu representante legal, contra a sentença que o condenou à pena de 15 (quinze) anos de reclusão, em regime inicial fechado, por incidência comportamental no artigo 214, c/c art. 224, a, e art. 71, todos do Código Penal.

Colhe-se dos autos em apreço que o Ministério Público Estadual ofereceu denúncia contra E. de J. S. B., imputando-lhe o crime de atentado violento ao pudor, praticado contra a menor, J. S. S. F..

De acordo com a inicial acusatória, o apelante, no dia 04 de fevereiro de 2006, foi flagrado, no interior de sua residência, logo após ter abusado sexualmente da vítima, à época com 11 (onze) anos de idade, usando de violência e grave ameaça.

Termo de representação, às fls. 15.

Recebimento da denúncia, às fls. 36.

Citação do recorrente, às fls. 39.

Termo de qualificação e interrogatório, às fls. 40/41.

Defesa prévia, às fls. 43/44.

Laudo de conjunção carnal, às fls. 77.

Parecer psicológico, às fls. 89/90.

Durante a instrução criminal foram inquiridas as testemunhas, A. de J. de M. B. (fls. 54), J. B. dos S. (fls. 55), Lucilene da Silva (fls. 56) e a vítima, J. S. S. F. (fls. 57/57v./58), arroladas na denúncia. Indicadas pela defesa, colheu-se os depoimentos das testemunhas, J. M. C. (fls. 65), J. de D. S. da S. (fls. 66) e R. dos S. B. (fls. 71).

Em sede de alegações finais, o representante do Ministério Público requereu a condenação do réu nas penas dos artigos 214, c/c 224, a, e art. 71, todos do Código Penal (fls. 97/111),

A defesa, na mesma oportunidade, postulou a improcedência da ação, com a consequente absolvição do acusado (fls. 114/119).

O magistrado de base, ao proferir a sentença, julgou procedente o pedido constante na denúncia, condenando o apelante pela prática do crime tipificado no artigo 214, c/c art. 224, a, e art. 71, todos do Código Penal, à pena de 15 (quinze) anos de reclusão, a ser cumprida em regime inicial fechado (fls. 132/141).

A defesa interpôs o recurso em apreço (fls. 148) e, em suas razões (fls 149/156, pleiteia a absolvição do apelante devido a ausência de provas aptas a sustentar sua condenação, ou, caso não seja atendido o primeiro pedido, requer a reforma da sentença para diminuir a pena imposta.

Em suas contrarrazões, o Ministério Público pugna pelo conhecimento e improvimento do apelo, mantendo-se a sentença atacada em todos os seus termos (fls. 160/170).

Instada a se manifestar, a Procuradoria Geral de Justiça, em parecer da lavra da Procuradora Selene Coelho de Lacerda, opinou pelo provimento parcial do recurso, apenas para que se redimensione a pena fixada na sentença (fls. 180/188).

É o relatório.


Voto – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Consoante relatado, Emanuel de Jesus Santos Barros interpôs o presente recurso contra a sentença que o condenou à pena de 15 (quinze) anos de reclusão, a ser cumprida em regime inicial fechado, pela prática do crime previsto nos artigos 214, c/c 224, a, e art. 71, todos do Código Penal.

Como fundamento de seu apelo, o recorrente alega:

1) que não violentou a vítima, sendo que o exame de conjunção carnal, bem como o laudo psicológico constantes nos autos, não são aptos a sustentar a sua condenação;

2) que é inadmissível o aumento da pena-base pela metade, haja vista a revogação do artigo 224, do Código Penal;

3) que o acréscimo da pena pela metade, como disposto na sentença, resultaria em 9 (nove) anos, visto que a pena-base foi fixada em 6 (seis) anos, e não em 15 (quinze), como concluiu o juiz sentenciante;

4) que, diante da “inexistência de prova incontestável acerca da continuidade delitiva”, o aumento referente ao art. 71, do Código Penal, deve ser efetuado em seu mínimo legal [sic].

Preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade, conheço do presente recurso, passando, a seguir, a apreciar os argumentos que sustentaram as suas razões.

1. Da autoria e materialidade delitivas.

Segundo aduz o recorrente, os depoimentos colhidos durante a instrução, bem como o laudo de conjunção carnal, não provam a autoria e materialidade do crime, não se mostrando suficientes para sustentar sua condenação.

O conjunto probatório presente nos autos, entretanto, não permite que se acolha a pretensão absolutória do apelante.

A prova testemunhal não deixa dúvidas acerca da autoria do crime, confirmando que o apelante praticou os fatos delituosos narrados na exordial.

A propósito, confira-se trecho do depoimento prestado pela testemunha L. da S., em sede judicial (fls. 56):

[…] que chegou na casa do acusado bateu na porta e ele apareceu na janela; que a declarante disse ao acusado “eu quero falar com J.”; que o acusado disse “J.? Ela não está aqui não”; que a declarante respondeu que estava pois já haviam lhe dito que estava lá; que aí seu filho deu uma paulada no braço dele e o acusado pegou um facão; que a declarante deu com o pé na porta e quando tentava entrar na casa o acusado disse que iria perder o direito deles e o filho confirmou; que aí a declarante correu e o acusado entrou, veio com a menor e chegou [sic] ela para fora da casa como lixo e disse “tu e tua mãe são duas loucas” e disse que só chamou ela para dar um copo d’água […]

Ainda sob o crivo do contraditório, a mesma testemunha afirma que:

[…] conversando com sua filha, ela lhe falou que ia na casa do acusado porque ele lhe dava dinheiro; que ela falou para a declarante que ele passava a mãe [sic] pelo corpo dela, nos seios, na “cocota” e que era isso que ele fazia […]

Importante registrar, ainda, as declarações prestadas pela vítima que, em ambas as fases da persecutio criminis, relata, com firmeza e coerência, como ocorreu a aproximação com o apelante e a ação delituosa por ele perpetrada, verbis:

[…] que a informante afirma que esta não é primeira vez que vai até a casa de ‘Mano”, pois já foi ao local diversas vezes, e todas às vezes este fica apenas de cueca, tira a roupa da vítima, deitando-a em um colchão e em seguida fica por cima da mesma com o seu “peru” duro passando em sua “cocota”[…] (fls. 09).

Em juízo, as declarações da vítima não destoam daquelas prestadas perante a autoridade policial, conforme se vê por meio do excerto abaixo transcrito:

[…] que a declarante foi passando na porta da casa do acusado e o acusado disse  “entra aqui”; que a declarante respondeu que não ia entrar; que o acusado disse que se ela não entrasse ia matar o pai e a mãe dela; que o acusado conhecia  seu pai; que a declarante entrou porque não podia correr porque a casa dela é perto da casa dele; que ao entrar o acusado mandou a declarante senta[sic]; que o acusado foi para o quarto e a declarante ficou na sala; […] que ele tirou a roupa dele e ficou só de cueca e que a declarante também ficou só de sunga; que depois ele tirou a cueca dele e ficou nu e subiu em cima da declarante; que depois ele sacudiu o corpo dele em cima da declarante […] (fls. 57).

Observa-se, assim, que a autoria do crime mostrou-se indene de dúvidas, sobretudo pelas declarações prestadas pela ofendida, as quais, conforme entendimento predominante, assumem especial importância nos crimes contra a dignidade sexual, mesmo que se trate de vítima menor de idade.

Acerca do depoimento prestado por crianças em delitos desse jaez, confira-se, através das ementas abaixo transcritas, o entendimento dos nossos tribunais:

PENAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. VÍTIMA CRIANÇA. AUTORIA. PROVA.
A palavra da vítima tem especial valor probatório em crimes sexuais, os quais normalmente são ocorridos às ocultas, sem a presença de testemunhas. No caso dos autos, a vítima, uma criança de 5 anos de idade, apontou o réu como sendo o autor do abuso sofrido tanto na fase policial, quanto durante a instrução criminal, em entrevista à psicóloga deste Tribunal. O fato de não ter confirmado tais declarações em audiência não infirma seus depoimentos anteriores, porquanto justificável o constrangimento de uma criança em relatar o ocorrido em audiência.
As declarações coerentes da vítima e de sua mãe aliadas ao exame pericial, que atestou a presença de feridas compatíveis com o que descreveu a menor, são elementos suficientes a comprovar a autoria do crime.
Recurso desprovido.[1]

No mesmo sentido:

ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR – PROVA – PALAVRA DA VÍTIMA – TESTEMUNHO INFANTIL – VALIDADE – CRIME COMETIDO COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA – MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS – INEXIGIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO PERICIAL SE A INFRAÇÃO NÃO DEIXA VESTÍGIOS – CRIME CONSIDERADO HEDIONDO – REGIME DE CUMPRIMENTO. A palavra da vítima, corroborada por outros elementos dos autos, é de se admitir como prova válida nos delitos contra a liberdade sexual, que em geral, são cometidos na clandestinidade. O depoimento infantil quase sempre precário, não pode ser desprezado quando vier corroborado por outros elementos de prova, sobretudo se guardar coerência e compatibilidade com a realidade dos fatos. […].

Assim, da análise das declarações prestadas pela vítima, que se harmonizam com os demais depoimentos constantes nos autos, resta indubitável a autoria do crime em tela.

Quanto à materialidade do delito, alega o recorrente que o laudo de exame de conjunção carnal não apontou qualquer vestígio de violência praticada contra a vítima, razão pela qual não pode servir para sustentar sua condenação.

O laudo pericial constante nos autos, de fato, não apresentou qualquer vestígio de conjunção carnal ou de violência na vítima (fls. 77). No entanto, cuida-se de crime que dispensa essa espécie de prova para sua comprovação.

A obrigatoriedade do laudo é restrita às infrações que deixam vestígios. No caso de desaparecimento dos vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta, nos termos do artigo 167, do Código de Processo Penal[2].

O que caracteriza o crime de atentado violento ao pudor – recordando que os fatos ocorreram antes da vigência da lei 12.015/2009 – é a prática de ato libidinoso, diverso da conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça.

Os fatos, conforme narrados pela vítima e pela sua genitora, demonstram que não houve cópula vagínica ou violência física exercida contra a ofendida, porém, dão conta da prática de atos voluptuosos sofridos pela mesma.

Quanto à violência, estamos diante de uma das situações onde a lei a presume. São casos específicos nos quais a pessoa não possui capacidade de discernir entre a conveniência ou não de adotar determinada postura em matéria de sexualidade[3].

No que concerne ao relatório psicológico (fls. 89/90), cuja idoneidade é contestada pelo apelante, convém ressaltar que a sentença não o considerou para fins de condenação.

Destarte, restando comprovadas a autoria e a materialidade pelo conjunto probatório constante nos autos, não vejo como prover o apelo para absolver o recorrente.

2. Redução da pena aplicada.

Pleiteia o recorrente, subsidiariamente, a redução da sanção imposta, em razão de equívoco cometido pelo magistrado de base, quando da dosimetria da pena, tendo em vista que, ao majorar a pena-base encontrada (seis anos), pela metade, chegou ao quantum de 15 (quinze) anos, em vez de 9 (nove) anos.

Inicialmente, cumpre dizer que assiste razão ao apelante ao afirmar ser inadmissível o aumento da pena-base pela metade, diante da revogação do artigo 224, do Código Penal.

O acréscimo da pena pela metade, efetuado pelo juiz sentenciante, baseou-se na previsão expressa do artigo 9º, da Lei 8.072/90, segundo o qual,

as penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos artigos […] 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidos de metade, respeitado o limite superior de 30 (trinta) anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no art. 224, também do Código Penal.

Com efeito, a majorante suso mencionada restou revogada com a superveniência da Lei 12.015/2009, não sendo mais possível sua aplicação, para fatos posteriores à sua edição[4], aos crimes em razão dos quais não tenha decorrido lesão corporal grave ou morte da vítima[5].

Convém registrar que os fatos narrados na exordial acusatória ocorreram antes da vigência da Lei nº 12.015/2009, que  revogou expressamente o artigo 224, a, do Código Penal, que tratava dos casos de violência presumida nos crimes contra a liberdade sexual, destacando-se, ainda, que não houve, na hipótese em discussão, violência real praticada contra a vítima.

Antes da nova legislação, que alterou a disciplina jurídica dos delitos sexuais, agora denominados crimes contra a dignidade sexual, o Superior Tribunal de Justiça já se posicionava no sentido da não incidência da majorante, a não ser quando resultasse lesão corporal grave ou morte, verbis:

HABEAS CORPUS. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. FORMA SIMPLES. COMETIMENTO CONTRA MENOR DE 14 ANOS. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. CAUSA DE ESPECIAL AUMENTO DO ART. 9º DA LEI 8.072/90. INEXISTÊNCIA DE LESÃO CORPORAL GRAVE OU MORTE. VIOLÊNCIA QUE JÁ INTEGRA O TIPO PENAL INFRINGIDO. INAPLICABILIDADE DA MAJORANTE. PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM. OFENSA. COAÇÃO ILEGAL DEMONSTRADA.

1. Somente é aplicável a causa de especial aumento de pena prevista no art. 9º da Lei 8.072/90 aos crimes de estupro ou atentado violento ao pudor cometidos contra menor de 14 anos quando sobrevier o resultado lesão corporal de natureza grave ou morte, diante da expressa remissão ao art. 223 do CP, sob pena de ofensa ao princípio do ne bis in idem, uma vez que a violência apresenta-se como elemento constitutivo dos referidos tipos penais.

2. Ordem concedida para afastar da condenação o aumento de pena em razão da majorante do art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos, fixando-se a sanção do paciente definitivamente em 7 anos de reclusão, mantidos, no mais, a sentença e o acórdão combatidos.[6]

(destaques não constam do original).

No mesmo vértice:

[…] 2. Esta Corte firmou jurisprudência no sentido de que fere o princípio ne bis in idem o aumento previsto no art. 9.º da Lei 8.072/90 nas hipóteses de estupro ou de atentado violento ao pudor com violência presumida, tendo em vista que a elementar já consta no próprio tipo penal. […] [7]

Em idêntico norte:

[…] 2. A afirmação da caracterização da causa de aumento, prevista no artigo 9º da Lei nº 8.072/90, em casos de violência presumida, implica a violação do princípio non bis in idem, com indevida atribuição de dupla função a um mesmo fato, qual seja, qualquer dos elencados no artigo 224 do Código Penal, em relação ao mesmo crime (Código Penal, artigos 213 ou 214). […] [8]

Dessa forma, não prevalece o acréscimo da pena pela metade, efetuado pelo magistrado a quo quando da prolação da sentença condenatória.

No que diz respeito a continuidade delitiva, não há dúvidas acerca de sua configuração no caso em apreço. No entanto, entendo que deve ser acolhido o pleito do recorrente no sentido de reduzir o quantum de 1/3, estabelecido na decisão de primeiro grau.

Segundo a jurisprudência pacífica, o cálculo do aumento de pena referente ao crime continuado (art. 71, caput, do CP), deve guardar compatibilidade com o número de infrações cometidas[9].

Por oportuno, destaca-se o seguinte precedente:

HABEAS CORPUS. PENAL. CRIMES DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR EM CONTINUIDADE DELITIVA. PERCENTAGEM DA MAJORAÇÃO. NÚMERO DE INFRAÇÕES. PRECEDENTES.

1. O Tribunal a quo, ao majorar a pena em 1/3 em razão da continuidade delitiva, utilizou-se da mesma fundamentação invocada pelo juízo monocrático na sentença condenatória – número elevado de crimes, não havendo qualquer ilegalidade a ser sanada.

2. O aumento da pena pela continuidade delitiva se faz, basicamente, quanto ao art. 71, caput, do Código Penal, por força do número de infrações praticadas.

3. Precedentes.

4. Ordem denegada.[10]

No caso em análise, o conjunto probatório reunido nos autos não demonstrou, de forma clara e precisa, a quantidade de infrações cometidas pelo recorrente, ou seja, não revelou quantas vezes o apelante constrangeu a ofendida à prática de ato libidinoso.
Constata-se apenas, através das declarações prestadas pela vítima em juízo, que esta foi à casa do apelante “umas quatro a cinco vezes”, descrevendo os fatos que ocorreram apenas em duas vezes.
Nessas condições, entendo que o aumento da pena verificado em face da continuidade delitiva deva permanecer no patamar de 1/6 (um sexto).
3. Inaplicabilidade do art. 217-A, do CP.
No presente caso, conforme mencionado, o juiz de base aplicou o art. 9º, da Lei de crimes hediondos, para elevar a pena-base pela metade, majoração esta que, desconsiderando-se o erro de cálculo constante na sentença, resultaria em 9 (nove) anos de reclusão.
Entendo, consoante já anotado, pela inaplicabilidade da referida causa de aumento de pena, diante da revogação do art. 224, do Código Penal, que presumia a violência em delitos contra a liberdade sexual, razão pela qual se afastou a majoração efetuada, restando a pena-base em seu mínimo legal, qual seja, 6 (seis) anos de reclusão.
Nessa situação, é evidente que, tratando-se de violência ficta, a Lei 12.015/09 é mais prejudicial ao recorrente, posto que prevê pena mínima de 8 (oito) anos de reclusão, não se aplicando, portanto, o art. 217-A, do Código Penal, em virtude do princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa.

Em outras palavras, a irretroatividade da novel legislação se impõe tendo em vista que quem praticou o delito de atentado violento ao pudor contra menor de 14 (quatorze) anos, na vigência da lei anterior, respondia pelo delito tipificado no art. 214, do CP, com violência ficta, em combinação com o disposto no art. 9º, da Lei 8.072/90, resultando a pena mínima em 9 (nove) anos de reclusão.

Vê-se, portanto, que, entendendo-se pela inviabilidade de aplicação do citado art. 9º, quando se tratar de violência presumida, “não se deve operar a migração para a figura do art. 217 – A, tendo em vista que a penalidade anterior seria de seis anos (e não de oito, como atualmente previsto)”[11].

Sobre o assunto, veja-se o julgado abaixo transcrito:

PENAL. PROCESSO PENAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR EM CONTINUIDADE DELITIVA. LEI 12.015/2009. PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS GRAVOSA. ABSOLVIÇÃO EXCLUSÃO DA CAUSA DE AUMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA. AUTORIA E MATERIALIDADE DEMONSTRADAS. COMPROVAÇÃO DA PRÁTICA DE MAIS DE UM CRIME CONTRA A VÍTIMA. INVIABILIDADE.
1. Não se aplica a Lei 12.015, que entrou em vigor em 07/08/2009, em virtude do princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, quando a conduta imputada ao agente se amoldar ao crime previsto no art. 217-A, do CP, intitulado como estupro de vulnerável, cuja pena cominada é de oito a quinze anos de reclusão. Assim, tendo a conduta do apelante se subsumido à prevista, à época dos fatos, no art. 214 (atentado violento ao pudor) c/c art. 224, alínea a (presunção de violência), todos do CP, fica submetida à pena abstrata de seis a dez anos de reclusão.
2. Inviabiliza-se a absolvição, bem como a exclusão da causa de aumento da continuidade delitiva, se a confissão extrajudicial do acusado, corroborada pelas declarações judiciais de duas testemunhas, bem como por entrevista feita com a vítima, comprovam que abusou sexualmente desta, em mais de uma ocasião, praticando com ela atos libidinosos diversos da conjunção carnal.
3. Apelo improvido.

(destaques não constam do original)[12]

Na mesma esteira:

PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. PROVAS SUFICIENTES DA OCORRÊNCIA DO CRIME. INEXISTÊNCIA DE CONTRADIÇÕES NOS DEPOIMENTOS. CONDENAÇÃO MANTIDA. NOVA TIPIFICAÇÃO PENAL.  ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ART. 217-A. LEI 12015/2009. IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS GRAVOSA. DOSIMETRIA DE PENA. DIMINUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. PROVIMENTO PARCIAL.

1- Sendo o conjunto probatório suficiente para evidenciar a materialidade delitiva e autoria do réu, não há que se cogitar a absolvição.

2 – Inexiste nos autos contradições entre os depoimentos capazes de ensejar na absolvição do Apelante.

3- Nova tipificação penal que não incide na hipótese em reverência ao princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais gravosa. Condenação do Apelante pelo crime do antigo art. 214 c/c 224 do Código Penal (atentado violento ao pudor com violência presumida).

4- Diminuição da pena privativa de liberdade em razão da ausência de circunstâncias desfavoráveis.

5- Recurso conhecido e parcialmente provido.

(destaques não constam do original)[13]

Ante tais considerações, passo à readequação da pena fixada na sentença impugnada.

O juízo a quo, em observâncias às diretrizes traçadas pelo artigo 59, do Código Penal, fixou a pena-base em 6 (seis) anos de reclusão, quantum que entendo adequado considerando-se as circunstâncias judiciais favoráveis ao apelante.

Após, o magistrado sentenciante aumentou, pela metade, a pena encontrada, em razão da incidência do art. 9º, da Lei dos Crimes Hediondos, acréscimo que, conforme explanado anteriormente, não deve subsistir diante da entrada em vigor da Lei 12.015/2009.

Assim, tendo-se como norte a pena-base encontrada – 6 (seis) anos – e, ante a inexistência de circunstâncias atenuantes ou agravantes, bem como de causas de diminuição ou de aumento, considerando o concurso de crimes, consubstanciado na continuidade delitiva, aumento a pena em 1/6, totalizando 7 (sete) anos de reclusão.

Quanto ao regime inicial de cumprimento de pena, registra-se que o crime foi cometido antes da vigência da Lei 11.464/2007, a qual alterou a Lei dos Crimes Hediondos para determinar o regime fechado para o início do cumprimento da sanção, portanto, preenchidos os requisitos legais, é possível a aplicação de regime menos severo.

Nesse sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, consubstanciado na ementar a seguir:

Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, diante da declaração de inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, do § 1.º do art. 2.º da Lei 8.072/90, para os crimes hediondos cometidos antes da publicação da Lei n.º 11.464/2007, o regime inicial fechado não é obrigatório, devendo se observar, para a fixação do regime de cumprimento de pena, o art. 33, c.c. o art. 59, ambos do Código Penal.[14]

In casu, o recorrente preenche os pressupostos legais para a fixação de regime inicial diverso do fechado, motivo pelo qual fica estabelecido o regime semiaberto para início do cumprimento da pena.

Por todo o exposto, de acordo com o parecer ministerial, dou parcial provimento ao apelo, determinando as alterações supracitadas quanto à pena do apelante.

É como voto.

Sala das Sessões da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em, 05 de abril de 2011.


DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR





[1] TJDFT, APC 20061010031596, Relator CÉSAR LOYOLA, 1ª Turma Criminal, julgado em 03/09/2009, DJ 11/01/2010.

[2] Art. 167. Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecidos os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.

[3] NUCCI, Guilherme de Sousa. Código penal comentado – 5 ed. Ver. atial. E ampl – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p.224.

[4] STJ, HC 131.987/RJ, Rel. Ministro FELIX FISHER, QUINTA TURMA, julgado em 19/11/2009, DJe 01/02/2010.

[5] TJDFT, 20050310015145APR, Relator SERGIO ROCHA, 2ª Turma Criminal,, julgado em 08/07/2010, DJ 21/07/2010).

[6] STJ HC 109.752/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 01/10/2009, DJe 15/12/2009.

[7] REsp 1020730/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 16/10/2008, DJe 03/11/2008.

[8] HC 69.198/SP, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 06/12/2007, DJe 22/04/2008.

[9] STJ, HC 132.615/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 09/11/2010, DJe 22/11/2010.

[10] STJ, HC 80.434/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 28/06/2007, DJ 13/08/2007.

[11] NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

[12] TJDFT, 20090310015154APR, Relator ARNOLDO CAMANHO DE ASSIS, 2ª Turma Criminal, julgado em 27/05/2010, DJ 09/06/2010 p. 173.

[13] TJMA, APC 37468/2009, Relator JOSÉ BERNARDO SILVA RODRIGUES, 2ª Câmara Criminal, julgado em 04/03/2010.

[14] HC 117.900/AL, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 21/09/2010, DJe 11/10/2010.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “Direito concreto”

  1. PARABENS AO RELATOR,BRILHANTE ESTUDO,JULGAMENTO DE EXCELENCIA.

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