O juiz garantidor – IV

Tenho dito, iterativamente, que nós, autoridades, não podemos, nunca, sob qualquer pretexto, nos nivelar aos meliantes.

Os meliantes, por óbvias razões, não têm compromisso com a lei, com a ordem pública, com a moral, com a ética, com os bons costumes.

Nós, diferente deles, assumimos o compromisso de fazer valer a lei.

Nós, magistrados – sobretudo –,  temos compromisso com o garantismo penal.

Nessa linha de argumentação, devo dizer que extrapola os limites do aceitável o magistrado que, ad exempli, trata o acusado com arrogância, que o intimida na sala de audiências, que o trata com descortesia, que arranca a fórceps uma confissão, que o trata como se marginal fosse; e, ainda que o fosse, não deveria fazê-lo.

O acusado, numa sala de audiência, maltratado, submetido a humilhação, diz o que não deve dizer, confessa o que não pretendia confessar.

De nada adianta, pois, a advertência de que o acusado não está obrigado a se autoacusar (nemo tenetur se detegere) se, ao longo do interrogatório, o juiz o pressiona psicologicamente.

O juiz que assim procede, desde o meu olhar, não honra as vestes talares.

O juiz tem que ter a capacidade de alcançar a verdade, sem escarnecer, sem fazer ameaças, sem intimidar o acusado – sem ferir a dignidade do acusado e a dignidade do cargo que exerce.

O magistrado condutor de um processo tem que ter o equilíbrio necessário para conduzir uma audiência, e  para lidar com os acusados e as testemunhas.

É verdade que muitos meliantes, em face mesmo do crime que cometeram, mereceriam, vivêssemos em sociedade primitiva, castigo igual ao que infligiram às vítimas – mas, se isso ocorresse, nos dias atuais, seria a consagração, pura e simples, do  talião, de trista memória.

Nós não fazemos parte de uma sociedade primitiva.

Nos dias atuais já não se aceita, por exemplo,  a tortura – psicológica ou física –  como instrumento para alcançar a verdade;  nem a descortesia para impor a autoridade.

Não é papel do agente público agir como agem os facínoras.

Juiz que, para alcançar a verdade, usa  do instrumento da tortura,  demonstr, à evidência, a sua incapacidade para o exercício do mister.

Muitas, incontáveis foram as verdades que já alcancei usando apenas a palavra, redarguindo, questionando, comparando, aproveitando-me das contradições do interrogado e/ou das testemunhas.

Nunca usei o expediente da intimidação para alcançar a verdade.

O magistrado garantista não tem o direito de ameaçar o acusado, de bater na mesa, de agredir a testemunha com palavras, porque ela  eventualmente não diga  aquilo que ele deseja ouvir.

Basta perguntar com inteligência que a verdade flui, assoma, mostra a sua cara – naturalmente. A menos que, no caso do acusado, ele opte, de logo, pelo silêncio.

Mas, nesse caso, há outras provas, sobretudo  a testemunhal.

Nessa linha de pensar, devo dizer que me enoja, me causa asco imaginar que um agente do poder público possa se valer de sua condição, de suas prerrogativas, dos aparatos colocados às suas mãos, com o dinheiro do contribuinte, para intimidar, torturar, maltratar, humilhar.

A autoridade que uso desses sórdidos expedientes se nivela ao pior dos marginais -e nós, autoridades, não somos, ou não deveríamos ser, marginais.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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