NAS PASSARELAS DA IMPUNIDADE

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“[…]O que se vê, na prática, é que, sempre que as instituições atuam com alguma sofreguidão, a pretexto de combater a criminalidade, o fazem rugindo como um leão faminto à caça da sua presa, quando se defrontam com os criminosos egressos das classes menos favorecidas, que são a sua clientela preferencial. Essas mesmas instituições, lado outro, apresentam-se frouxas, lenientes e acovardadas, miando como um gatinho encurralado, quando se trata de punir os criminosos do colarinho branco. Nesse panorama, os grandes criminosos, os que assaltam os cofres públicos, ficam impunes, via de regra, recebendo estímulos para permanecerem em cena, roubando os nossos sonhos, minando as nossas esperanças[…]”

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O direito existe como uma necessidade humana decorrente da vida em sociedade. Logo, sem ele e sem o funcionamento das instituições encarregadas de sua aplicação, não há condição de coexistência numa sociedade, pois, afinal, o homem, quando decidiu se submeter ao contrato social, o fez sob a perspectiva de o Estado lhe prover assistência, no sentido mais amplo da palavra.

O crime, que ofende, num primeiro momento, um bem alheio, num segundo momento coloca em xeque a própria vida em sociedade; por isso, quando não pode ser evitado – e não se pode mesmo evitar a sua ocorrência -, deve ser combatido com tenacidade; os infratores, nesse sentido, devem ser exemplarmente punidos, para que outras pessoas não se sintam estimuladas à prática de novos crimes, e assim possibilitar que todos possam viver numa sociedade minimamente pacificada.

Nessa perspectiva de vida pacífica em sociedade, todos nós deveríamos ter compromisso com o cumprimento da lei; seja aplicando-a, indistintamente, a quem compete fazê-lo, ou, simplesmente, se submetendo aos seus ditames, sem restrições, à luz do preceito constitucional segundo o qual todos somos iguais perante a lei.

Pois bem. Se é responsabilidade de todos o respeito à lei e se somente sob o império desta a sociedade pode sobreviver, por que então ainda há pessoas – um milhão de pessoas envolvidas em linchamento no país, segundo o professor José de Souza Martins, da USP – que se socorrem da barbárie a pretexto de fazer justiça, à margem das instituições, numa sociedade que supomos integrada por pessoas civilizadas? Antes de responder a essa indagação, narro um fato que impactou a sociedade maranhense ainda recentemente, e que me levou a essas reflexões.

Todos nós testemunhamos, em face do vídeo veiculado nas mídias sociais, o linchamento de um jovem nominado Wallison Silva Araújo, de 19 anos, vulgo “Zambeta”, na cidade de Araioses, suspeito de ter assassinado uma pessoa com dezessete facadas, fato ocorrido num domingo, mais precisamente no dia 24 de junho próximo passado.

Fatos desse jaez nos remetem, inapelavelmente, a uma necessária reflexão, como antecipei acima, que condiz com a necessidade de se compreender as razões pelas quais, com as instâncias de controle funcionando, há pessoas que ainda preferem agir por conta própria, ou seja, à margem da lei. É essa sobre essa inquietante questão que pretendo esgrimir as minhas impressões, na certeza de que, em face delas, haverá dissenções, como sói ocorrer.

Na minha compreensão, quando as pessoas optam pela autotutela, não obstante vivam numa sociedade pretensamente civilizada, estão mandando um recado claro aos agentes do Estado, responsáveis pelas instâncias de controle: não dá mais para suportar a tibieza, a vacilação das instituições quando se trata do enfrentamento de condutas criminosas. Portanto, não é preciso ser especialista para diagnosticar que as pessoas cansaram, perderam a fé e decidiram, em alguns casos, agir por contra própria.

A verdade é que a infinidade de crimes impunes deixa a população com a justificável sensação de que não dá mais para aguardar a (re)ação do Estado, sabido que, muitas vezes, não há (re)ação alguma, bastando para isso a constatação de que são inúmeros, incontáveis os criminosos que desfilam nas passarelas da impunidade, por culpa exclusiva das instituições que não desempenham a contento suas obrigações, ou o fazem mal, de forma leniente, titubeante, frouxa e seletiva, a incutir nas pessoas a falsa percepção de que a solução mais eficaz é mesmo (re)agir por contra própria.

Nesse cenário, certo mesmo é que as vítimas, diretas ou indiretas, de um crime, dos mais diferentes matizes, já não suportam se defrontar com os seus algozes flanando por aí, debochando das instituições, desfilando, como dito acima, nas passarelas da impunidade. As pessoas não aguentam mais a triste evidência de que as instituições, quando punem, convém reafirmar, punem mal, punem seletivamente, sem forças e sem predisposição para punir indistintamente, como se a lei, definitivamente, não valesse para todos.

O que se vê, na prática, é que, sempre que as instituições atuam com alguma sofreguidão, a pretexto de combater a criminalidade, o fazem rugindo como um leão faminto à caça da sua presa, quando se defrontam com os criminosos egressos das classes menos favorecidas, que são a sua clientela preferencial. Essas mesmas instituições, lado outro, apresentam-se frouxas, lenientes e acovardadas, miando como um gatinho encurralado, quando se trata de punir os criminosos do colarinho branco. Nesse panorama, os grandes criminosos, os que assaltam os cofres públicos, ficam impunes, via de regra, recebendo estímulos para permanecerem em cena, roubando os nossos sonhos, minando as nossas esperanças.

A verdade é que, para uma parcela diminuta da sociedade, os que promovem os maiores assaltos aos cofres públicos – sejamos honestos com nós mesmos –, a prisão é, sempre foi e sempre será uma excepcionalidade, como todos nós testemunhamos, em face das mais diversas decisões pretorianas que favorecem criminosos do colarinho branco com a concessão de liberdade, muitas vezes de ofício; liberdade que, admitamos, só fazem por merecer porque, afinal, são o que são, e sendo o que são, no país da impunidade, passam mesmo, como regra, à ilharga das ações persecutórias.

A impunidade, definitivamente, estimula a prática de crimes, verdade sabida que, entretanto, parece não sensibilizar os que têm sempre às mãos, de prontidão, um alvará de soltura para favorecer esse ou aquele marginal o qual, pela posição de destaque que ostenta, se sente imune às ações das instâncias de controle do Estado.

Convém ressaltar que há, sim, causas variadas que fomentam a criminalidade. Mas, seguramente, nenhuma é tão óbvia, tão evidente, tão à vista de todos quanto a certeza da impunidade. E quando se reflete sobre esse tema, a verdade é que, ainda que punamos preferencialmente os mais humildes, ainda assim punimos mal e excepcionalmente, estando as cifras negras da criminalidade a demonstrar que a lei, definitivamente, alcança a poucos e que, os poucos que as instâncias alcançam, esses, comumente, são egressos das classes menos favorecidas. Daí não ser de todo incompreensível que as pessoas, cansadas, busquem fazer justiça com as próprias mãos.

É isso.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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