Abandono de incapaz

 

 

O só fato de as acusadas terem deixada a vítima em uma parada, esperando um ônibus, não significa, definitivamente, que a tivessem abandonado, no sentido emprestada ao termo pelo legislador ordinário. Não significa que a tivessem colocado, dolosamente, em situação de perigo iminente. Perigo havia, sim, porque perigosa é a sociedade em que vivemos. Qualquer um de nós pode deixar o próprio filho em uma parada de ônibus e, de lá, ele pode ser seqüestrado e morto, sem que se possa afirmar, por isso, que se o tenha abandonado, submetendo-o à situação de perigo, conscientemente, propositadamente – finalisticamente.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

Titular da 7ª Vara Criminal

No ano de 2005 julguei um processo no qual o Ministério Público imputou às acusadas o crime de abandono de incapazes.

O Ministério Público denunciou M. D. C. R. P. e S. S. R. P., por incidência comportamental no artigo 133, § 1º do CP. em face de terem abandonado a menor I.F. M. S., de dezesseis anos de idade.

As acusadas, consta da denúncia, levaram a menor acima mencionada a uma parada de ônibus e a ela deram a orientação devida, para que pegasse o ônibus que a levaria de volta a São Luis Gonzaga, Maranhão.

Ad cautelam, as acusadas deram à vítima telefones de contato, para que fossem acionadas diante de qualquer contratempo.

Aconteceu que, depois que a vítima foi deixada na parada, só se teve notícia do seu paradeiro quando encontraram seu corpo, com marcas de violência sexual.

Vindo os autos conclusos para julgamento, entendi que as acusadas não subsumiram a sua ação no tipo penal em comento.

Na decisão, cujos excertos principais vou transcrever a seguir, entendi que a ofendida, em verdade, foi apenas mais uma vítima da violência urbana e que as acusadas não podiam ser penalizadas por esse fato.

Esse fato teve muita repercussão. Até hoje não se sabe quem estuprou e matou a ofendida.

Vamos, pois, aos excertos da decisão.

“(…) Abandonar significa desamparar, largar, desprezar, etc. Haverá abandono quando se coloca o sujeito passivo do crime em situação que acarreta a privação dos cuidados que lhe são devidos e dos quais tem necessidade.

A ação consiste, pois, em abandonar o incapaz, expondo-lhe a perigo grave e iminente a vida ou a saúde. Abandonar significa deixar a vítima perigosamente à sua própria sorte, de modo que não possa defender-se dos riscos da situação em que é colocada.

Ação do abandono consiste em periclitação para a vida ou a saúde – e esse perigo não se presume. Deve ele ser concreto e material – e comprovado. O abandono deve implicar sempre num risco considerável de dano para a vida ou a saúde.

Não havendo o perigo, que é o resultado incriminado pela lei, não haverá crime. Não haverá crime quando é o próprio incapaz que cria a situação de perigo.

Impende observar que a segunda denunciada, ao deixar a vitima no retorno do São Cristóvão, deixou com ela o número de telefone de sua residência, para que, se necessário, entrasse em contato com ela, o que efetivamente foi feito, logo que a ofendida se deu conta de ter perdido o ônibus para São Luis Gonzaga.

A meu juízo, quem abandona alguém não deixa telefone para contato. Quem abandona alguém, não a orienta como deva fazer para retornar para casa, a menos que o fizesse com a intenção de apenas iludir a vítima, preparando uma armadilha para fazê-la sucumbir diante do desconhecido.

Mantido o contato com a segunda denunciada, a vítima foi orientada como deveria proceder para voltar para casa, o que reafirma que não foi abandonada, como alega o MINISTÉRIO PÚBLICO. Tivesse sido abandonada, não teria conseguido falar com as rés. Quem abandona cuida de inviabilizar os contatos.

O só fato de as acusadas terem deixada a vítima em uma parada, esperando um ônibus, não significa, definitivamente, que a tivessem abandonado, no sentido emprestada ao termo pelo legislador ordinário. Não significa que a tivessem colocado, dolosamente, em situação de perigo iminente. Perigo havia, sim, porque perigosa é a sociedade em que vivemos. Qualquer um de nós pode deixar o próprio filho em uma parada de ônibus e, de lá, ele pode ser seqüestrado e morto, sem que se possa afirmar, por isso, que se o tenha abandonado, submetendo-o à situação de perigo, conscientemente, propositadamente – finalisticamente.

O que ocorreu com a vítima, a meu sentir, foi uma fatalidade, decorrência natural do mundo violento em que vivemos. O que ocorreu com a vítima foi que ela própria pode, sim, ter provocado a situação de perigo a que se submeteu, depois de ter sido orientada a voltar para casa.

A vítima não foi deixada perigosamente à sua própria sorte. A vitima foi deixada em uma parada de ônibus, durante o dia, o que qualquer um faria – e faz – com o seu próprio filho.

A olhos vistos, não havia, em princípio, perigo em deixar a vítima em uma parada de ônibus, a não ser o perigo decorrente da própria violência urbana a que todos estamos sujeitos – seja na cidade grande, seja na cidade pequena.

As acusadas, devo reafirmar, não causaram a situação de perigo. Se a causaram, não o fizeram dolosamente. Não é crível que alguém deixe outrem em uma parada de ônibus, para expô-la ao perigo, entregando-lhe o telefone de contato. Se isso fosse verdade, todos os dias, todas as horas, ter-se-ia que indiciar vários pais pela prática de crime do mesmo matiz.

Releva dizer que o elemento subjetivo do tipo é o dolo específico, traduzido na vontade de abandonar, o que, por tudo que restou provado nos autos, não ocorreu em o caso vertente.

Que as rés foram descuidadas, não se pode negar. Que a vítima caiu numa armadilha própria da cidade grande, também não se pode obscurecer. Afirmar, por isso, que as acusadas a abandonaram e que, em face disso, seriam responsáveis pela sua morte, é, a meu sentir, um despautério.

Consignei acima que são elementares constitutivas do crime de abandono de incapaz: a)o abandono; b)a violação do especial dever de assistência; c) a superveniência efetiva de perigo concreto à vida ou à saúde do abandonado; d) a incapacidade de defender-se da situação de perigo; e) a vontade e a consciência de abandonar incapaz expondo-o a perigo.

A ofendida, repito, não era incapaz de defender-se do perigo a que ficou exposta em face de ter perdido o ônibus para sua cidade natal. Não se pode crer que uma pessoa de dezesseis anos de idade não soubesse se defender do perigo possível – sim, possível, pois do inevitável nenhum de nós escapa -, ainda que não conhecesse a cidade de São Luís.

A vítima, devo dizer, não se defendeu do perigo a que estava exposta em face de sua idade, nem tampouco porque não estava em companhia das acusadas, mas porque nos dias de hoje ninguém está livre do perigo, que nos ronda muito de perto. Admitir o contrário seria admitir que, todos os dias, todas as horas, abandonamos os nossos filhos, que não estão livres do perigo.

Registro que o só abandono – e a vítima não foi abandonada, repito – não realiza a figura típica, sendo indispensável que dele resulte perigo concreto para a vida e a saúde da pessoa. Trata-se, pois, de perigo concreto, que precisa ser comprovado. Os autos não dão noticia desse perigo concreto, mesmo porque o perigo decorreu de circunstâncias que não podem ser imputadas às acusadas.

Abandonar é colocar alguém em perigo, quando ele é incapaz de, nas circunstâncias – repito, nas circunstâncias – se proteger dos riscos decorrentes do abandono. Nas circunstâncias em que se deu o “abandono”, a vítima, definitivamente, não estava exposta a qualquer perigo, que não fosse o perigo a que todos nós estamos expostos, todos os dias, todas as horas.

Para configuração do crime em comento, é indispensável que a vítima, efetivamente, fique exposta ao perigo, mas perigo concreto, reafirmo. Não vale o perigo abstrato, ou meramente presumido. A eventual exposição da vítima ao perigo, não abrangido pelo dolo, não configura o crime de abandono de incapaz.

A verdade é que a vítima, depois, não se sabe por quais razões, se colocou em situação de abandono, o que não ocorreu até o momento em que se comunicou, por telefone, com a segunda denunciada. Entender a quaestio de forma diferente, é dar ao fato o elastério de que não se encontra revestido.

Não custa lembrar que dois são os elementos para concluirmos pela presença do dolo: 1) a presença de consciência; 2) a presença de vontade. Não havendo a presença simultânea destes dois elementos, o agente certamente age, quando muito, em erro de tipo e, conseqüentemente, não pratica crime.

O elemento volitivo do dolo não ficou perfeitamente demonstrado nos presentes autos, pois está claro que as acusadas não tiveram vontade de abandonar a vítima. A questão resume-se, pois, em analisar se as acusadas sabiam ou não que a vítima encontrava-se na hipótese típica descrita no art. 133 do CP. As rés não tinham consciência de que abandonavam pessoa sob seu cuidado, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono. Se tivessem não teriam agido dessa forma.

Por mais que o comportamento das acusadas tenha sido negligente, impossível seria classificá-lo como doloso, pois está claro que elas não consideravam a vítima “incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono”, para usar uma expressão do próprio tipo penal.

Segundo Zaffaroni e Pierangeli: “O dolo pressupõe que o autor tenha previsto o curso causal e a produção do resultado típico. Sem esta previsão, jamais se poderia falar de dolo” (Zaffaroni et Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. rev., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 485).

Ninguém, em sã consciência, pode afirmar que as acusadas tenham previsto o curso causal e a conseqüente produção do resultado típico, a menos que se chegue a essa conclusão ao largo do exame da prova consolidada nos autos, num mero exercício de especulação.

Não vejo sequer dolo eventual em sua conduta, pois estou certo de que, caso previssem a hipótese da morte — ou mesmo de lesão — certamente teriam permanecido ao lado da vítima, ou não a teriam deixada onde a deixaram.

Condenar as acusadas, primárias e de bons antecedentes, por uma fatalidade como esta seria, rogata maxima venia, um perigoso precedente à responsabilidade penal objetiva tão abominada no Direito Penal contemporâneo.(…)”

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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