O que tem de prefeito respondendo a processo criminal é uma grandeza. Impressionante como eles brincam com a coisa pública. É impressionante como eles não têm medo de cadeia. É impressionante, demais, como o eleitor não percebe esses desmandos.
Do jeito que está não pode ficar.
É inaceitável que alguém assuma a direção de um município hoje, para, amanhã, sair por aí ostentando, acintosamente, como se visse em cada um de nós apenas mais um otário.
No voto que publico a seguir, foi condenado o prefeito de Apicum Açu, com a determinação imediata do seu afastamento, que só não se concretizou em face de uma liminar concedida, no Plantão.
Acho que vale a pena ler o voto por inteiro.
SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL
Sessão do dia 12 de maio de 2011.
Nº Único: 0006573-89.2009.8.10.0000
Ação Penal Nº 013959/2009 – Apicum Açu
autor : Ministério Público Estadual
Procurador(a) : M. R. da C. L.
Réu : S. L. M. – Prefeito Municipal de Apicum Açu
Advogado (s) : S. E. de M. C. e outros
Incidência Penal : Art. 1º, I, III e VII, do Dec.-Lei nº 201/67, art. 304, do CPB, e art. 89, caput, da Lei 8.666/93
Relator : Desembargador Raimundo Nonato de Sousa
Relator para acórdão : Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida
Acórdão nº 102025/2011
Ementa. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. EX-PREFEITO. PROCESSAMENTO INICIADO EM 1º GRAU DE JUSRISDIÇÃO. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. JUÍZO COMPETENTE. POSSE NO CARGO DE PREFEITO, NO CURSO DO FEITO. DESLOCAMENTO DA COMPETÊNCIA. PRERROGATIVA DE FORO (CF, ART. 29, X). APROVEITAMENTO DOS ATOS PROCESSUAIS. DESNECESSIDADE DE REPETIÇÃO. MÉRITO: CRIMES DE RESPONSABILIDADE DE PREFEITO. ART. 1º, I, III E VII, DO DEC.-LEI N. 201/67. PRETENSÃO PUNITIVA ATINGIDA PELA PRESCRIÇÃO, EM RELAÇÃO AOS CRIMES PREVISTOS NOS INCISOS III E VII. CRIME DE APROPRIAÇÃO/DESVIO DE RENDAS PÚBLICAS. OCORRÊNCIA. PREJUÍZO AO ERÁRIO DEMONSTRADO. CRIMES DE DISPENSA INDEVIDA DE LICITAÇÃO E USO DE DOCUMENTO FALSO. CRIMES FORMAIS. PRESCINDIBILIDADE DE RESULTADO NATURALÍSTICO (PREJUÍZO AO ERÁRIO). TUTELA PENAL DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA FÉ PÚBLICA. DENÚNCIA PARCIALMENTE PROCEDENTE.
1. A prerrogativa de foro contida no art. 29, X, da CF, adquirida pelo réu (ex-prefeito) no curso do feito, com o consequente deslocamento da competência para o respectivo Tribunal, não inibe a regra processual de aproveitamento dos atos já praticados perante o juízo de primeiro, inclusive aqueles de cunho decisório, sendo desnecessário ratificá-los.
2. Assim, afigura-se um excesso, além de patente inobservância ao rito preconizado em lei, e desatenção aos atos já realizados, o recebimento da exordial por três vezes distintas, duas em primeiro grau, e uma em segundo grau.
3. Diante dessa singularidade (três recebimentos da denúncia), e ainda, considerando que o fato delituoso ocorreu no ano 2000, considera-se, para efeitos de contagem da prescrição da pretensão punitiva, e seus respectivos marcos interruptivos, aquele mais favorável, ao réu, o que, in casu, representa o último recebimento da inicial acusatória, ocorrido nesta Corte, em 30 de abril de 2009.
4. Decorrido, pois, mais de oito anos, desde a data do fato (2000), até o último recebimento da exordial, em 30/04/2009, é de ser reconhecida a extinção da punibilidade pelo advento da prescrição da pretensão punitiva estatal, dos crimes tipificados no art. 1º, incisos III e VII, do Dec.-Lei n. 201/67, cuja pena máxima em abstrato – três anos de detenção -, prescreve em oito anos, a teor do que dispõem os arts. 107, IV, e 109, IV, ambos do CPB.
5. O crime de apropriação ou desvio de rendas públicas, tipificado no art. 1º, I, do Dec.-Lei n. 201/67, consuma-se com o efetivo prejuízo ao erário, ocasionado dolosamente, consubstanciado, in casu, em não contabilização de recursos oriundos do SUS, e despesas públicas não comprovadas.
6. As condutas tipificadas no art. 89, caput, da Lei n. 8.666/93, e no art. 304, do CPB, cujas objetividades jurídicas são, respectivamente, a moralidade administrativa e a fé-pública, são crimes formais, sendo dispensável a ocorrência de qualquer resultado naturalístico (prejuízo ao erário) para a consumação. Precedentes do STJ.
7. Extinta a punibilidade, ex officio, pelo advento da prescrição da pretensão punitiva, em relação aos crimes previstos no art. 1º, III e VII, do Dec.-Lei n. 201/67.
8. Condenação formulada na denúncia julgada parcialmente procedente.
Acórdão – Vistos, relatados e discutidos os autos da presente Ação Penal em que são partes as acima indicadas, ACORDAM os Senhores Desembargadores da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, por maioria, em condenar o réu S. L. M., pelas condutas imputadas no artigo 1º, inciso I, do decreto-lei nº 201/67, no artigo 304 do CP, e no artigo 89, da Lei 8.666/93, determinando o seu afastamento, imediato, do cargo de prefeito, e, ainda declarar extinta a punibilidade em razão da ocorrência da prescrição em relação ao crime previsto no artigo 201, II e III do Decreto-Lei nº 201/67, nos termos do voto do Desembaragdor José Luiz Oliveira de Almeida. Vencido neste último ponto o Desembargador Relator.
Participaram do julgamento os Senhores Desembargadores Raimundo Nonato de Souza (Presidente), José Luiz Oliveira de Almeida e Raimundo Nonato Magalhães Melo. Presente pela Procuradoria Geral de Justiça o Dr. Krishnamurti Lopes Mendes França.
São Luís (MA), 12 de maio de 2011.
DESEMBARGADOR Raimundo Nonato de Souza
PRESIDENTE
DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida
RELATOR PARA ACÓRDÃO
Voto-vista – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida: Cuida-se de voto-vista, nos autos da ação penal em epígrafe, ofertada pelo Ministério Público Estadual, contra S. L. M., Prefeito Municipal de Apicum Açu, por incidência comportamental, em tese, no art. 1º, I, III e VII, do Dec.-Lei nº 201/67, art. 304, do CPB, e art. 89, caput, da Lei 8.666/93.
A exordial de fls. 03/08 relata que o denunciado, na qualidade de gestor das finanças públicas do município de Apicum Açu (Prefeito), no ano de 2000, incorreu nas seguintes condutas delituosas, em tese:
“[…] a) entrega da Lei Orçamentária e dos balancetes (janeiro a dezembro) fora do prazo;
b) inscrição de despesas em restos a pagar sem disponibilidade em caixa;
c) processos licitatórios irregulares e ausência de processos licitatórios e fragmentação de despesas, referentes à construção e serviços de eletrificação rural, confecção de ponte de madeira, melhoramento de caminho de acesso, aquisição de material permanente, reforma de hospital, elaboração de projetos, construção de centro administrativo, de escola, praça e posto telefônico;
d) fragmentação de despesas com intuito de não proceder à licitação, quanto à aquisição de merenda escolar medicamentos, material hospitalar, serviços de eletrificação rural, construção civil, passagens rodoviárias, frete de aeronave e material gráfico;
e) notas fiscais com indícios de inidoneidade;
f) ausência de comprovação de despesas;
k) repasse feito à Câmara intempestivamente;
l) desobediência ao limite constitucional na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental;
m) não aplicação do percentual devido na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental;
n) não aplicação do percentual devido do FUNDEF na remuneração dos profissionais do magistério;
o) despesas indevidas na aquisição de material escolar;
(sic)
Por tais razões, requereu o Ministério Público de base a condenação do réu nas sanções do art. 1º, I, III e VII, do Dec.-Lei n.º 201/67, art. 304, do CPB, e art. 89, caput, da Lei 8.666/93.
A denúncia foi regularmente instruída com o processo administrativo n. 63AD/2005 (fls. 07/156), da PGJ, notadamente, com o Parecer Prévio PL-TCE n. 316/2003, e Acórdão PL-TCE n. 599/2003, ambos do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão.
A tramitação do processo iniciou-se perante o juízo de 1º grau, em razão do acusado, à época, não estar exercendo o cargo de Prefeito.
Embora regularmente notificado (fls. 161/161v.), o réu não apresentou defesa preliminar, sendo recebida a denúncia às fls. 163/164.
Todavia, mesmo após o recebimento da exordial, o acusado apresentou sua defesa preliminar, às fls. 171/181, com vasta documentação às fls. 182/1237. Diante disso, na assentada de fls. 1238, o juízo tornou sem efeito aquele primeiro recebimento da denúncia, e, após analisar tal defesa preliminar, recebeu a denúncia, às fls. 1242/1245.
Ao manifestar-se, às fls. 1250/1251, sobre a defesa preliminar, o Ministério Público de base requereu, mais uma vez, o recebimento da denúncia, ato este que, novamente, foi levado a efeito pelo magistrado signatário da decisão de fls. 1252, ocasião na qual também determinou a intimação do denunciado para apresentar outra defesa preliminar, esta, com fulcro no art. 396, do CPP.
Regularmente intimado, o acusado apresentou sua defesa preliminar, às fls. 1256/1267.
Através da decisão de fls. 1270, o juízo de base declarou-se incompetente para processar e julgar o feito, esclarecendo que o réu tomou posse no cargo de Prefeito Municipal de Apicum Açu, atraindo a prerrogativa de foro contida no art. 29, X, da CF, e súmula 702, do STF, encaminhando os autos para este Tribunal.
Aportado o caderno processual nesta Corte, em março de 2009, foi distribuído ao ilustre desembargador José Bernardo Silva Rodrigues, que determinou a remessa dos autos à Procuradoria Geral de Justiça, em cuja manifestação de fls. 1280/1285 reiterou integralmente a denúncia.
Na sessão colegiada ocorrida em 30 de abril de 2009, a 2ª Câmara Criminal, em decisão unânime, recebeu, novamente, a denúncia, conforme v. acórdão n. 81.429/2009, acostado às fls. 1290/1294.
A audiência de instrução designada para o dia 19 de junho de 2009 não se realizou, tendo em vista o pedido de adiamento formulado pela defesa do réu, deferido na ocasião da audiência (fls. 1314). Redesignando o ato, o réu foi qualificado e interrogado às fls. 1333/1334.
Defesa prévia às fls. 1338/1346.
Na audiência de fls. 1407/1409, foi ouvida a testemunha N. T. de A., arrolada pela defesa, e, em continuidade, foram ouvidas as testemunhas O. S. J. O. (fls. 1415) e Marivaldo Furtado (fls. 1416), ambas arroladas pelo Ministério Público. As duas testemunhas arroladas pela defesa (A. B. B. e L. N. de S. J.), cuja oitiva estava pendente, não compareceram na audiência designada para o dia 02 de outubro de 2009, sendo dispensadas nesta ocasião, e encerrada a instrução (fls. 1419/1420).
Na fase destinada ao requerimento de diligências, a Procuradoria Geral de Justiça as dispensou (fls. 1423), enquanto que a defesa, às fls. 1427, postulou que fosse oficiado ao juízo da Comarca de Bacuri, para que remetesse cópia integral da perícia realizada nos autos da ação civil pública n. 269/2006, cuja matéria afirma ser similar à tratada nestes autos, pleito este deferido às fls. 1429, e providenciado às fls. 1433/1441.
Em suas razões finais encartadas às fls. 1446/1455, a Procuradora de Justiça, Dra. Regina Maria da Costa Leite, reiterou os termos da inicial acusatória, postulando a condenação do réu nas penas do art. 1º, I, III e VII, do Dec.-Lei nº 201/67, art. 304, do CPB, e art. 89, caput, da Lei 8.666/93.
Já a defesa, nesta mesma fase processual (fls. 1458/1468), postulou a absolvição do réu, asseverando, em essência, que suas ações como gestor público do município de Apicum Açu sempre foram pautadas pela boa-fé, não havendo dolo em sua conduta, e que os supostos crimes a si imputados revestiram-se de meras irregularidades administrativas, todas já sanadas.
Após lançar relatório nos autos, às fls. 1470/1471, o então desembargador relator declarou-se suspeito por motivo de foro íntimo, ocorrido após a instrução (fls. 1474), tendo a desembargadora Maria dos Remédios Buna Costa Magalhães, para quem o feito havia sido redistribuído, também se declarado suspeita, às fls. 1480.
Redistribuídos ao desembargador Raimundo Nonato de Souza, novo relatório foi lançado aos autos, às fls. 1486/1490, tendo o revisor anuído expressamente, às fls. 1492.
Na sessão colegiada da 2ª Câmara Criminal, ocorrida em 28 de abril de 2011, após o voto do desembargador relator, que condenava o réu nos termos formulados na denúncia, pedi vista dos autos.
É o relatório. Decido.
Imputa-se ao réu S. L. M., Prefeito Municipal de Apicum Açu, as práticas delitivas encartadas no art. 1º, I, III e VII, do Dec.-Lei nº 201/67, art. 304, do CPB, e art. 89, caput, da Lei 8.666/93.
Antes de adentrar, especificamente, na análise do meritum causae, cumpre-me alertar, ab initio, que a persecução criminal revelou-se inútil relativamente a dois crimes narrados na denúncia, e assim o faço para evitar incursões desnecessárias e contraproducentes no exame de fatos e provas.
Pois bem.
A denúncia narra, além de outras, a prática de três condutas descritas no art. 1º, do Dec.-Lei n. 201/67. São elas:
Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
I – apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio;
[…]
III – desviar, ou aplicar indevidamente, rendas ou verbas públicas;
[…]
VII – Deixar de prestar contas, no devido tempo, ao órgão competente, da aplicação de recursos, empréstimos subvenções ou auxílios internos ou externos, recebidos a qualquer titulo;
[…]
§1º Os crimes definidos nêste artigo são de ação pública, punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos, e os demais, com a pena de detenção, de três meses a três anos.
Como se deflui do preceito secundário da norma, apenas as condutas descritas nos incisos I e II são apenadas de forma rigorosa (reclusão de dois a doze anos), sendo as demais sancionadas, no máximo, em três anos de detenção, pena esta que, como é ressabido, prescreve em 8 (oito) anos, a teor do que dispõe o art. 109, IV, do CPB[1].
Desta feita, considerando que os crimes previstos no art. 1º, incisos III e VII, do Dec.-Lei n. 201/67, ocorreram, em tese, no ano 2000, a pretensão punitiva estatal desses delitos restou fulminada pela prescrição desde o ano 2008, o que demonstrou a completa inutilidade da persecução criminal, nessa extensão.
Quanto a esta constatação, algumas ponderações merecem ser feitas.
Algo que me causou espécie nestes autos, foi uma peculiar ocorrência de ordem processual, em que a denúncia foi recebida 4 (quatro) vezes – três em 1º grau de jurisdição, e uma vez, nesta Corte. Aliás, excluindo-se o primeiro recebimento, já que a magistrada, expressamente, o tornou sem efeito, conforme consignado às fls. 1238, remanesceram três recebimentos de denúncia, o que, a mim, ainda afigura-se inexplicável.
Digo que essa anomalia processual me causou espécie porque, ao que consta nos autos, o réu não era Prefeito Municipal quando a denúncia foi ofertada perante o juízo de base, em 14 de novembro de 2006, o que nos autoriza a concluir que aquele foro era absolutamente competente, já que a odiosa prerrogativa então conferida aos ex-ocupantes de cargos eletivos, pelos §§ 1º e 2º, do art. 84, do CPP, já havia sido declarada inconstitucional pelo Plenário do STF (Adin’s. nº 2.797-2 e 2860-0).
Ademais, o fato de o réu ter sido eleito Prefeito Municipal no curso do processo não inibe a regra processual de aproveitamento dos atos já praticados, inclusive os de cunho decisório, porque foram realizados perante autoridade inquestionavelmente competente.
Os sucessivos recebimentos da exordial, culminando com o último, realizado em 30 de abril de 2009, nesta Corte, contribuiu, decisivamente, para que a pretensão punitiva estatal relativamente aos crimes descritos no incisos III e VII, do art. 1º, do Dec.-Lei n. 201/67, fossem fulminados pela prescrição, pois, caso contrário, se considerássemos, em tese, os recebimentos anteriores (a priori, válidos), a fluência prazal da prescrição seria interrompida, com a postergação do termo a quo.
Essa peculiaridade ocorrida nos autos conduz-me à outra observação necessária: adotando-se uma postura garantista, algo que sempre fiz no curso de minha atividade judicante, sem descurar do rigor, quando necessário e autorizado pela Constituição e pela lei, tenho que, quaisquer situações que imponham restrições ao direito de liberdade do réu, ainda que oriundas de dúvidas, devem ser interpretadas de forma restritiva, como sói ensinam as comezinhas lições de hermenêutica[2].
Assim, diante desta inusitada constatação de ordem processual, ou seja, três recebimentos da denúncia, todos aprioristicamente válidos, deve ser considerado aquele menos gravoso ao réu, ou seja, o último, tendo em conta a peculiaridade de dois crimes já prescritos, desde o ano de 2008.
Gizadas tais considerações de ordem prejudicial ao mérito daqueles crimes, passo ao exame dos delitos remanescentes, quais sejam, aqueles previstos no art. 89, caput, da Lei n. 8.666/93, art. 1º, I, do Dec.-Lei n. 201/67, e art. 304, do CPB, que ainda não foram atingidos pela prescrição, limitando a análise das teses defensivas nessa extensão.
Vejamos, primeiramente, a imputação delitiva concernente ao crime tipificado no art. 89, caput, da Lei n. 8.666/93 (dispensa ilícita de processo licitatório), cujo dispositivo reza:
Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:
Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa:
Quanto a este crime, alega, em síntese, a defesa, mais precisamente às fls. 1259, que:
I – “[…] os processos licitatórios considerados ausentes pelo Tribunal de Contas e enumerados no item “C” da denúncia, foram todos realizados, conforme comprovaremos ao longo da instrução criminal, esclarecendo a impossibilidade de juntar os mesmos no presente momento devido a dificuldade de localizar as licitações acima […], e que “[…] compromete-se em apresentar os processos considerados ausentes durante a instrução processual […]; e
II – “[…] encontra-se descaracterizada a figura típica descrita na denúncia[…], pois, para a caracterização do mesmo é imprescindível que as irregularidades estejam revestidas do estigma da criminalidade, requisito esse ausente no presente caso, haja vista que as despesas consideradas irregulares todas foram precedidas dos devidos processos licitatórios, sendo tais infrações de caráter meramente formal […].
Em que pesem os argumentos, devo dizer que deles não comungo, pelas razões que passo a aduzir doravante.
Tratando-se de crime plurisubsistente, sua configuração se opera mediante a prática de duas condutas: dispensar ou inexigir licitação, fora das hipóteses legais, e inobservar as formalidades legais inerentes a esta dispensa/inexigbilidade.
Em sua linha defensiva, alega o patrono que o crime não restou caracterizado, porquanto inexistente o prejuízo ao erário.
Inobstante tais argumentos, os quais reconheço que já encontraram eco na jurisprudência do STJ, o atual posicionamento deste Sodalício evoluiu, para não mais exigir a ocorrência de qualquer resultado naturalístico para a consumação do crime em questão. É dizer, para a consumação delitiva, basta a mera dispensa, ou afirmação de que a licitação é inexigível, sendo a conduta necessariamente revestida de dolo.
Nesse norte:
HABEAS CORPUS. DISPENSA DE LICITAÇÃO. ART. 89 DA LEI Nº 8.666/93. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL NA MODALIDADE RETROATIVA. LAPSO TRANSCORRIDO ENTRE A DATA DOS FATOS E O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. DELITO QUE SE PERFAZ MEDIANTE MERA DISPENSA, INDEPENDENTEMENTE DE RESULTADO NATURALÍSTICO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA. 1. Esta Corte de Justiça firmou o entendimento de que o crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/93 se perfaz com a mera dispensa ou afirmação de que a licitação é inexigível, fora das hipóteses previstas em lei, tendo o agente consciência dessa circunstância. Isto é, não se exige qualquer resultado naturalístico para a sua consumação. (Precedentes STJ). […]
(HC 200900873579, JORGE MUSSI, STJ – QUINTA TURMA, 14/02/2011):
Na mesma direção:
RECURSO ESPECIAL. PENAL. DISPENSA OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES LEGAIS (ART. 89, CAPUT DA LEI 8.663/93). EX-PREFEITO MUNICIPAL. DOLO COMPROVADO. DESNECESSIDADE DO EFETIVO PREJUÍZO AO ERÁRIO PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO. PRECEDENTES DA 3A. SEÇÃO. PARECER DO MPF PELO DESPROVIMENTO DO RECURSO. RECURSO CONHECIDO PELA DIVERGÊNCIA, MAS DESPROVIDO. […] 3. Já decidiu a 3a. Seção desta Corte que o crime se perfaz com a mera dispensa ou afirmação de que a licitação é inexigível fora das hipóteses previstas em lei, tendo o agente a consciência dessa circunstância; isto é não se exige qualquer resultado naturalístico para a sua consumação (efetivo prejuízo ao erário, por exemplo) (HC 94.720/PE, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ 18.08.2008 e 113.067/PE, Rel. Min. OG FERNANDES, Dje 10.11.2008). 4. Recurso conhecido pela divergência, mas desprovido.
(RESP 200801531677, NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, STJ – QUINTA TURMA, 12/04/2010)
No caso sob testilha, a inicial veio instruída com o processo administrativo n. 63AD/2005, instaurado pela PGJ, com peças do processo administrativo que tramitou perante a Corte de Contas Estadual, que havia decidido pela desaprovação das contas do réu, e a imposição de sanções pecuniárias (multa), por atraso na entrega da prestação de contas, diversas irregularidades apuradas em vários processos licitatórios, bem como despesas que não observaram tal exigência.
Em sua defesa preliminar perante o juízo de 1º grau, o réu juntou aos autos farta documentação, e justificou que só o fez nessa ocasião porque os funcionários da municipalidade não conseguiam localizar os documentos relativos aos processos licitatórios outrora faltantes, o que culminou nas sanções administrativas aplicadas pelo TCE, vez que desrespeitados os prazos legais para apresentá-los.
O fato é que, compulsando os autos, com detença e vagar, pude notar que aqueles processos licitatórios outrora inexistentes, especificados na análise feita pelo TCE/MA, às fls. 13, estão, agora, quase à totalidade, acostados aos presentes autos, algo também anotado pela Procuradoria Geral de Justiça, precisamente, às fls. 1446/1455 do parecer conclusivo.
Entretanto, ao minucioso exame, pude notar que remanesce a ausência de processo licitatório para aquisição de livros, cuja empresa credora foi a editora “FTD”, conforme consignado no relatório do TCE/MA, pontualmente, às fls. 13, item 4.2.2.
Com efeito, consta nos autos, às fls. 1148 a respectiva nota de empenho dessa despesa realizada, no valor de R$ 9.824,70 (nove mil oitocentos e vinte e quatro reais e setenta centavos), onde está consignada, clara e inequivocamente, que a licitação foi dispensada. Às fls. 1149/1155, constam as respectivas notas fiscais emitidas pela editora “FTD”, bem como o recibo daquele valor, às fls. 1156.
O valor dessa despesa, como é evidente, ultrapassa o limite estabelecido no art. 24, II, da Lei n. 8.666/93, para a dispensa de licitação, verbis:
Art. 23. As modalidades de licitação a que se referem os incisos I a III do artigo anterior serão determinadas em função dos seguintes limites, tendo em vista o valor estimado da contratação:
I – para obras e serviços de engenharia:
a) convite – até R$ 150.000,00 (cento e cinqüenta mil reais);
b) tomada de preços – até R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais);
c) concorrência: acima de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais);
II – para compras e serviços não referidos no inciso anterior:
a) convite – até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais);
b) tomada de preços – até R$ 650.000,00 (seiscentos e cinqüenta mil reais);
c) concorrência – acima de R$ 650.000,00 (seiscentos e cinqüenta mil reais)
Omissis
Art. 24. É dispensável a licitação:
Omissis
I – para obras e serviços de engenharia de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea “a”, do inciso I do artigo anterior, desde que não se refiram a parcelas de uma mesma obra ou serviço ou ainda para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente;
II – para outros serviços e compras de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea “a”, do inciso II do artigo anterior e para alienações, nos casos previstos nesta Lei, desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez;
(sem destaques no original)
Ou seja, o limite monetário para a dispensa de licitação, para “outros serviços e compras”, é de R$ 8.000,00 (oito mil reais), montante este que, evidentemente, foi ultrapassado na aquisição de livros pela Prefeitura Municipal de Apicum Açu, cujo responsável pela ordenação da despesa de R$ 9.824,70 (nove mil, oitocentos e vinte e quatro reais e setenta centavos) foi o réu, o que, aliás, está expresso na respectiva nota de empenho de fls. 1148.
Assim, não há dúvidas que resta caracterizado o crime previsto no art. 89, caput, da Lei de Licitações, sendo de rigor a condenação do réu pela sua prática.
Ainda no que tange ao aludido crime da Lei de Licitações, o relatório do TCE/MA, detectou fragmentação de despesas, para aquisição de merenda escolar, medicamentos, material hospitalar e material escolar (fls. 14/15, itens 4.2.3.1., 4.2.3.2., 4.2.3.3. e 4.2.3.4.), com o intuito de, supostamente, burlar o processo licitatório.
Relativamente a essas despesas, observo que o réu juntou aos presentes autos os respectivos processos licitatórios, mais precisamente às fls. 873/1079 (algo também constatado pela PGJ, em seu parecer conclusivo), sendo forçoso reconhecer, portanto, que o crime, nessa extensão, não ocorreu, muito embora haja patente irregularidade naquelas licitações destinadas à aquisição de merenda escolar e medicamentos, nos quais pude notar, curiosamente, que todos os licitantes sagraram-se vencedores, levando-se em contas os preços unitários de cada item de diferentes licitantes, que se mostraram mais vantajosos à administração, algo que, segundo a doutrina, afigura-se incorreto[3].
Os demais processos licitatórios apontados irregulares pelo TCE, ao que vejo, persistem, pois, em sua grande maioria, inexiste o “projeto básico”, e há graves indícios de adulteração de CRC’s (Certificados de Registros Cadastrais), para justificar a ausência de habilitação outrora detectada pelo TCE/MA, pois muitos daqueles documentos (CRC’s) estão com datas de emissão incompatíveis com as datas das licitações, conforme se vêem, ad exempli, às fls. 243, 316, 317 e 382, para citar apenas alguns.
Entretanto, tais constatações decorrem da atenta análise aos autos, as quais, todavia, não constituem o crime tipificado no art. 89, da Lei de Licitações, à exceção daquela despesa para aquisição de livros, junto à editora FTD, conforme já delineamos acima.
Passemos a analisar a ocorrência do crime previsto no art. 1º, inciso I, do Dec.-Lei nº 201/67, cuja transcrição aqui repito para facilitar a sua compreensão:
Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
I – apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio;
[…]
§1º Os crimes definidos nêste artigo são de ação pública, punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos, e os demais, com a pena de detenção, de três meses a três anos.
Neste ponto, alega a defesa, às fls. 1458/1468, mais precisamente, que não procedem as alegações ministeriais, porque, supostamente, teriam sido apresentadas as respectivas notas fiscais e recibos comprobatórios das despesas reputadas sem justificativa pelo TCE/MA, o que afastaria a configuração do delito.
Tais argumentos, todavia, não resistem a um acurado exame da documentação acostada aos autos, conforme demonstrarei a seguir.
Segundo consta no Relatório de Informação Técnica do TCE, mais precisamente às fls. 20, item 7.1, “[…] a receita contabilizada como recursos proveniente do SUS (Sistema Único de Saúde), conforme o ANEXO – 10 da Prestação de Contas, importou em (R$ 183.163,34). No entanto, constatamos que os recursos oriundos do SUS para a Prefeitura Municipal foi na ordem de (R$ 341.077,19), conforme fonte da Gerência de Qualidade de Vida, resultando com isso uma diferença de (R$ 157.919,85)”.
Nesse particular, cumpre ainda destacar trecho do voto do relator do processo n. 4427/01, Conselheiro José de Ribamar Caldas Furtado, litteris:
[…] Vale destacar alguns pontos relevantes, dentre eles, o referente à omissão de receitas municipais, conforme consta no sub-item 7.1, fl. 116 dos autos. A esse respeito, o técnico analista averiguou que a Prefeitura Municipal de Apicum Açu recebeu do Sistema Único de Saúde a importância de R$ 341.077,19, conforme informação fornecida pela Gerência de Qualidade de Vida, e contabilizou apenas R$ 183.163,34, restando consignada a omissão de receita no total de R$ 157.919,85.
Essa constatação denota que todo o balanço orçamentário está reduzido em R$ 157.919,85. Isso quer dizer que o Prefeito Municipal gastou tais recursos à margem da contabilidade do Município, não prestando contas de tais valores. […]
(sem destaques no original)
Extraio ainda, do referido relatório do TCE, às fls. 17, item 4.3.2., que o réu S. L. M. não comprovou algumas despesas realizadas. Embora ele o tenha feito, posteriormente, em relação a determinados gastos públicos, conforme os recibos acostados às fls. 1233, 1235 e 1237, outros remanescem sem qualquer comprovação, dentre as quais destaco:
I – passagens rodoviárias, no valor de R$ 2.431,82, credora “Expresso Continental”;
II – material gráfico, no valor de R$ 350,00, credora “F. R. Simples”; e
III – material permanente, no valor de R$ 796,00, credora “Caracas Vilela”.
Assim, verifica-se que o réu não justificou despesas com recursos públicos no importe de R$ 3.577,82 (três mil quinhentos e setenta e sete reais e oitenta e dois centavos).
A esse respeito, ressaltou o relator do processo n. 4427/01 do TCE/MA, às fls. 36, verbis:
“[…] Outra irregularidade que merece ser destacada é a relativa a despesas não comprovadas no valor de R$ 6.634,00. Por despesa não comprovada, entende-se a completa ausência de Notas Fiscais ou Recibos que atestem o destino dos respectivos valores. Esse montante representa a soma da quantia descriminada no quadro intitulado ‘Ausência de Comprovantes de despesas (Notas Fiscais)’, presente no item 4.3.2. do Relatório Técnico, fl. 113 […]”
Ressalte-se, contudo, que o montante aqui apurado, R$ 3.577,82 (três mil, quinhentos e setenta e sete reais e oitenta e dois centavos), difere daquele pelo TCE/MA, porquanto o réu juntou, nestes autos, algumas notas fiscais relativas àquelas despesas sem comprovação, peculiaridade esta que, advirto, não elide a configuração do crime em questão.
Nesse norte, a partir do momento em que o Prefeito Municipal não explicita, de forma clara e inequívoca, a destinação dos respectivos recursos públicos, presume-se que deles se apropriou, vez que o dolo da conduta contenta-se com a mera consciência e vontade, não se exigindo um especial fim de agir, conforme entendimento pretoriano:
“[…] 2. O dolo do crime do art. 1º, I, do DL nº. 201/1967 é a mera consciência e vontade de apropriar-se de bens ou rendas públicas, não se exigindo um especial fim de agir.
3. Autoria e materialidade comprovadas pelos documentos e provas constantes dos autos.
4. Apelação parcialmente provida para extinguir a punibilidade do crime previsto no art. 1º, inciso VII, do DL nº. 201/1967 e diminuir a pena.[4]
O que é fundamental para a conformação do ilícito em tela, é o fato do réu não ter justificado qual o destino dado àquelas rendas públicas detectadas no relatório do TCE/MA, as quais, efetivamente, integraram as receitas da municipalidade, o que implica em reconhecer, ipso facto, que os cofres públicos do município de Apicum Açu, durante a gestão do réu, sofreram inequívoco prejuízo, através do desfalque patrimonial de R$ 161.497,67 (cento e sessenta e um mil quatrocentos e noventa e sete reais e sessenta e sete centavos), que é o somatório dos recursos públicos do SUS não contabilizados, e despesas absolutamente destituídas de comprovação.
A esse respeito, pertinente trazer à baila os ensinamentos doutrinários acerca deste ilícito penal, verbis:
O crime consiste em apropriação ou desvio de bens públicos ou rendas públicas, em proveito do agente ou de terceiro. Trata-se, aqui, de peculato, à semelhança do que vem disposto no Código Penal de 1940, art. 312. Se o Prefeito é o administrador da coisa pública municipal ou, indiretamente, da estadual ou da federal, apropriando-se dela, ou desviando em proveito próprio ou alheio, pratica em tese o delito. Coisa pública, aqui, tomada em sentido amplo, posto que o preceito legal fala de bens ou rendas.[5] […]
Mais adiante, citando Nelson Hungria, arremata o autor:
[…] A configuração do crime se dá em se tratando de bens públicos, quer sejam eles móveis ou imóveis. E aqui a figura penal difere do peculato comum do Código de 1940, que se refere tão-só a bens móveis (art. 312). Sua consumação exige um dano efetivo ao patrimônio público, pois “peculato consumado sem dano efetivo é tão absurdo quanto dizer que pode haver fumaça sem fogo, ou sombra sem corpo que a projete, ou telhado sem paredes ou esteios de sustentação.[6] […]
(sem destaques no original)
Assim, a efetiva ocorrência do dano, aliada ao dolo da conduta, são as razões fundamentais para a configuração do crime previsto no art. 1º, I, do Dec.-Lei n. 201/67.
Se tais recursos públicos, em tese, não tivessem sido utilizados pela municipalidade, deveriam ter sido contabilizados na prestação de contas, algo que não se verificou no caso em tela, sendo lícito concluir que foram indevidamente apropriados pelo réu.
Ainda, relativamente a esse crime, rechaço, de antemão, qualquer argumento tendente a afastá-lo com base no princípio da insignificância, eis que, para a tutela penal dispensada à moralidade administrativa, é irrelevante a dimensão quantitativa do dano ou seu eventual ressarcimento.
É dizer, noutros termos, que o tipo legal constante no art. 1º, I, do Dec.-Lei n. 201/67 não prevê um crime contra o patrimônio, mas um crime contra a moralidade administrativa, cuja inaplicabilidade do princípio da insignificância é manifesta, conforme o entendimento jurisprudencial do STJ, verbis:
HABEAS CORPUS. ART. 1º, INCISO I, DO DECRETO-LEI Nº 201/67. PREFEITO MUNICIPAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO. MORALIDADE PÚBLICA. ABSOLVIÇÃO. AUSÊNCIA DE DOLO INDISPENSÁVEL À CONFIGURAÇÃO DO DELITO. NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO APROFUNDADO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ESTREITA DO WRIT. ORDEM DENEGADA.
1. A aplicação do princípio da insignificância, causa excludente de tipicidade material, admitida pela doutrina e pela jurisprudência em observância aos postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Direito Penal, demanda o exame do preenchimento de certos requisitos objetivos e subjetivos exigidos para o seu reconhecimento, traduzidos no reduzido valor do bem tutelado e na favorabilidade das circunstâncias em que foi cometido o fato criminoso e de suas consequências jurídicas e sociais, pressupostos que, no caso, não se pode dizer que se encontram preenchidos, dada a condição do paciente – ocupante do cargo de Prefeito Municipal – e a relevância dos bens juridicamente tutelados pelo tipo penal infringido, quais sejam, a probidade administrativa e a moralidade pública.
2. É entendimento desta Corte de Justiça e do Supremo Tribunal Federal que “Deve ser afastada a aplicação do princípio da insignificância, não obstante a pequena quantia desviada, diante da própria condição de Prefeito do réu, de quem se exige um comportamento adequado, isto é, dentro do que a sociedade considera correto, do ponto de vista ético e moral.” (REsp 769317/AL, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 27/03/2006). […].[7]
(sem destaques no original)
Assim, é manifesta a adequação típica da conduta do réu ao tipo legal de crime encartado no art. 1º, I, do Dec.-Lei n. 201/67, posto que apropriou-se de rendas públicas.
Por derradeiro, examino a ocorrência do crime de uso de documento falso, tipificado no art. 304, do CPB, cuja redação é a seguinte:
Art. 304 – Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302:
Pena – a cominada à falsificação ou à alteração[8].
Quanto a esta imputação delitiva, a defesa limita-se, novamente, a insistir no argumento de ausência de prejuízo ao erário público, afirmando que “[…] as transações comerciais foram devidamente realizadas e os produtos ou serviços foram realmente entregues ou prestados […]” (fls. 1462).
Alegou a defesa, ainda, que as notas fiscais emitidas com datas de emissões vencidas, constituem-se em falha não intencional, não atribuível ao réu, tratando-se de mera irregularidade, e, ainda, que tais documentos deveriam ter sido periciados pela Secretaria da Receita Estadual.
Enfim, reafirma o réu que, inobstante as “irregularidades” existentes nas notas fiscais, não há crime, diante da inexistência de prejuízos aos cofres públicos, posto que as transações nela representadas efetivamente ocorreram.
Em que pese tais argumentos, os quais podem até ter algum fundamento na seara administrativa, no âmbito penal, a perquirição acerca de eventual prejuízo aos cofres públicos é absolutamente irrelevante para a conformação do ilícito penal do art. 304, do CPB, conforme acentuarei, doravante.
Antes, devo dizer que a autoria e materialidade deste crime são incontestáveis, aliás, incontroversos, posto que o próprio réu, em suas razões finais, admite ter utilizado documentos fiscais falsificados, seja ideologicamente (em seu conteúdo – data de emissão vencida), seja materialmente (ausência do selo fiscal), o que restou devidamente demonstrado pelo Relatório de Informações Técnicas do TCE/MA, pontualmente, às fls. 15/16, item 4.3.1.
Ainda no que tange à prova material do crime, oportuno transcrever as conclusões do perito contábil subscritor do laudo de fls. 1434/1441, prova esta cuja juntada aos autos, é bom que se diga, foi requerida, expressamente, pela própria defesa, às fls. 1427.
Com efeito, afirmou o expert (fls. 1440):
“[…] Quanto as Notas sem perfuração, perfuração Grosseira, fica ilegível detectar fraudes, pois seria preciso que fosse analisadas as Notas Fiscais originais para um parecer correto. No entanto as Notas que apresentam limite para emissão vencida e sem selo, confirma-se o que já foi analisado e observado no relatório do Tribunal de Contas do Estado.
7) As notas fiscais apresentadas são idôneas e correspondem às transações realizadas no exercício de 2000?
Resposta: As Notas Fiscais como foi relatado no item acima apresentam sinais de falhas, tendo ocorrido pela falta de análise dos encarregados em recebê-las que atuavam na administração da referida Prefeitura. Notas Fiscais tem que apresentar Selo fiscal, Perfuração adequada e serem emitidas em data anterior ao seu vencimento. […]”
(sic – sem destaques no original)
Assim, é incontestável a materialidade delitiva, sendo que restou comprovado que o réu fez uso de notas fiscais inquestionavelmente falsas, tanto em seu conteúdo (data de emissão vencida), como em sua forma (ausência de selo fiscal).
Advirta-se, ainda, neste ponto, que é prescindível a realização de qualquer prova pericial para a caracterização do tipo previsto no art. 304, do CPB, conforme já se pronunciou a jurisprudência do STJ:
HABEAS CORPUS. PENAL. USO DE DOCUMENTO FALSO. CONDENAÇÃO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA AÇÃO PENAL ANTE A FALTA DE LAUDO PERICIAL. DISPENSÁVEL. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS POR OUTROS MEIOS DE PROVA. CRIME INSTANTÂNEO QUE SE CONSUMA COM O USO DO DOCUMENTO FALSO. APLICAÇÃO DO ART. 182 DO CPP. ORDEM DENEGADA.
1. No crime de uso de documento falso a prova pericial pode ser dispensada, quando o acervo probatório mostrar-se suficiente para revelar a existência do crime e sua autoria e firmar o convencimento do magistrado.
2. A ausência do laudo pericial não afasta o crime de uso de documento falso, que se consuma com a simples utilização de documentos comprovadamente falsos, data a sua natureza de delito formal.
3. Ordem denegada.[9]
Ademais, observo que a defesa, em momento algum, postulou a produção de prova pericial específica quanto à falsidade das notas, limitando-se a requerer a juntada aos autos daquele laudo pericial contábil já referenciado, o que afasta, de plano, qualquer alegação de suposto cerceamento de defesa. Nesse norte:
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ESTELIONATO, FORMAÇÃO DE QUADRILHA E USO DE DOCUMENTO FALSO. AUSÊNCIA DE PROVA PERICIAL. ARGÜIÇÃO DE NULIDADE. NÃO-IMPUGNAÇÃO NO MOMENTO OPORTUNO. ART. 571, II, DO CPP. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO-CONFIGURADO. ORDEM DENEGADA.
1. A materialidade dos delitos restou evidenciada, juntamente com o acervo probatório colhido na fase instrutória. Ademais, verifica-se que em nenhum momento a defesa argüiu a necessidade de perícias contábeis e grafotécnicas.
2. Nos termos do art. 571 do Código de Processo Penal, eventuais nulidades ocorridas na fase instrutória deverão ser argüidas em sede de alegações finais, sob pena de preclusão da matéria.
3. Ordem denegada.[10]
(sem destaques no original)
Pois bem.
Retornando à questão da caracterização do crime tipificado no art. 304, do CPB, a jurisprudência é unânime em classificá-lo como crime formal, ao contrário do que aduziu a defesa, sendo prescindível, pois, a ocorrência de efetivo prejuízo ao erário, já que se trata de um crime contra a fé pública.
Assim já se manifestou o STJ, litteris:
HABEAS CORPUS. ESTELIONATO E USO DE DOCUMENTO FALSO. NATUREZA DO DELITO PREVISTO NO ARTIGO 304 DO CÓDIGO PENAL. INEXISTÊNCIA DE PEDIDO DE PERÍCIA NA FASE INSTRUTÓRIA. CONDENAÇÃO LASTREADA EM PROVA DOCUMENTAL E TESTEMUNHAL. AUSÊNCIA DE EXAME PERICIAL. POSSIBILIDADE.
1. O crime de uso de documento falso é formal, consumando-se com a simples utilização do documento reputado falso, não se exigindo a comprovação de efetiva lesão à fé pública.
2. Inexistindo manifestação da defesa no sentido da necessidade de realização de exame pericial na fase instrutória, não se vislumbra qualquer ilegalidade na condenação do paciente pelo delito previsto no artigo 304 do Código Penal fundamentada em documentos e testemunhos constantes do processo.
3. É desnecessária prova pericial para a comprovação da materialidade do crime de uso de documento falso. Precedentes. […].[11]
Na mesma balada, os Tribunais já assentaram:
Para a consumação do crime tipificado no art. 304 do Código Penal, basta a apresentação do documento perante a pessoa que se pretendia iludir, sendo prescindível a obtenção de proveito para o agente ou prejuízo para a vítima. Impossibilidade da tentativa.[12]
(sem destaques no original)
Na mesma vertente:
A simples apresentação do documento falsificado, ou com potencial para causar prejuízo ou viabilizar os resultados pretendidos pelo agente, já caracteriza a prática consumada da conduta tipificada no art. 304 do Código Penal, que é delito formal e instantâneo.[13]
(sem destaques no original)
Assim, totalmente insubsistente o argumento da defesa, posto que o crime, no caso em tela, se consumou no exato momento em que o réu, ordenador das despesas do município de Apicum Açu, autorizou o pagamento de diversas notas fiscais nitidamente adulteradas, com datas de emissão vencida, e ausência de selo fiscal.
A ocorrência do crime previsto no art. 304, do CPB, portanto, é inconteste.
Por derradeiro, chegamos à fase da fixação da resposta penal às condutas criminosas praticadas pelo réu.
Em atenção ao inafastável postulado constitucional da individualização da pena, forte nas diretrizes dos arts. 59 e 68, ambos do CPB, passo a individualizar a pena em relação a cada uma das condutas praticadas pelo réu.
Em relação ao crime previsto no art. 89, caput, da Lei de Licitações, observo que:
I – a culpabilidade é normal à espécie, nada tendo a valorar, eis que a moralidade pública já é tutelada penalmente pela própria previsão típica do delito, e a ofensa a esse bem jurídico representa a mera subsunção da conduta ao tipo legal;
II – antecedentes imaculados, tendo em vista que não há notícias de condenações com trânsito em julgado em desfavor do réu, nem tampouco ações penais em trâmite, sendo que estas últimas não poderiam, de qualquer forma, ser consideradas para os fins ora colimados[14];
III – não existem subsídios nos autos que possibilitem a aferição da conduta social e da personalidade do réu, razão pela qual deixo de valorá-las;
IV – os motivos do crime são ínsitos à própria previsão típica, vez que não restou evidenciado nos autos um especial fim de agir na conduta do réu, razão pela qual nada tenho a considerar a respeito;
V – as circunstâncias do crime são desfavoráveis, pois o réu, aproveitando-se do cargo que ocupava (Chefe do Executivo do Município de Apicum Açu), autorizou a dispensa de licitação em flagrante inobservância ao que dispõe a Lei n. 8.666/93;
VI – as consequências do crime – ofensa ao princípio da moralidade administrativa -, ao que vejo, já é reflexo da própria tutela penal dispensada à moralidade administrativa, não podendo ser aqui valorada, sob pena de bis in idem; e
VII – tratando-se de crime cujo sujeito passivo imediato é Estado, inviável considerar-se o comportamento da vítima, nada tendo a valorar neste ponto.
Considerando-se, pois, a existência de uma circunstância judicial desfavorável (circunstâncias do crime), fixo a pena-base em 03 (três) anos e 06 (seis) meses de detenção.
A pena de multa, para os crimes previstos na Lei de Licitações, obedece a critérios específicos, previstos no art. 99[15], da referida lei.
O primeiro parâmetro a ser observado é o […]valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente […], e, na impossibilidade de se aferir tal vantagem econômica, o que verifico no caso em apreço, utiliza-se aquele critério previsto no § 1º, do preceito em tela, conforme explicita Guilherme de Souza Nucci:
[…] c) quando for inviável descobrir qual foi a vantagem do agente (real ou potencial), no caso do art. 89, a multa precisa variar entre 2% e 5% do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação; […][16]
No caso vertente, a despesa cuja licitação foi ilegalmente dispensada corresponde à aquisição de livros junto à Editora FTD, no valor de R$ 9.824,70 (nove mil oitocentos e vinte e quatro reais e setenta centavos), conforme já demonstramos linhas acima.
Considerando a presença de uma circunstância judicial desfavorável para esse crime, fixo a multa, com fulcro no art. 99, § 1º, da Lei n. 8.666/93, em 3% (três por cento) sobre o valor de R$ 9.824,70 (nove mil oitocentos e vinte e quatro reais e setenta centavos), o que perfaz o valor de R$ 294,71 (duzentos e noventa e quatro reais e setenta e um centavos).
Não vislumbro, na espécie, a presença de agravantes ou atenuantes, nem tampouco causas de diminuição ou aumento de pena, razão pela qual torno definitiva a pena de 03 (três) anos e 06 (seis) meses de detenção, e o pagamento de multa de R$ 294,71 (duzentos e noventa e quatro reais e setenta e um centavos), por incidência comportamental no art. 89, caput, da Lei n. 8.666/93.
Passo a individuar a pena para o crime previsto no art. 1º, inc. I, do Dec.-Lei n. 201/67.
I – a culpabilidade é normal à espécie, nada tendo a valorar, eis que a moralidade administrativa já é tutelada penalmente pela própria previsão típica do delito, e a ofensa a esse bem jurídico representa a mera subsunção da conduta ao tipo legal;
II – antecedentes imaculados, tendo em vista que não há notícias de condenações com trânsito em julgado em desfavor do réu, nem tampouco ações penais em trâmite, sendo que estas últimas não poderiam, de qualquer forma, ser consideradas para os fins ora colimados[17];
III – não existem subsídios nos autos que possibilitem a aferição da conduta social e da personalidade do réu, razão pela qual deixo de valorá-las;
IV – os motivos do crime são ínsitos à própria previsão típica, vez que não restou evidenciado nos autos um especial fim de agir na conduta do réu, razão pela qual nada tenho a considerar a respeito;
V – as circunstâncias do crime não podem ser valoradas, pois a condição de Prefeito é ínsita à própria prática delitiva;
VI – as consequências do crime mostram-se danosas, para além daquelas já previstas no tipo penal, pois as verbas não contabilizadas oriundas do SUS deixaram de ser aplicadas na manutenção de um serviço público essencial à população (sistema público de saúde), causando evidentes prejuízos aos munícipes; e
VII – tratando-se de crime cujo sujeito passivo imediato é o Estado, inviável considerar-se o comportamento da vítima, nada tendo a valorar neste ponto.
Tendo em mira a presença de uma circunstância desfavorável (consequências do crime), fixo a pena-base em 02 (dois) anos e 06 (seis) meses de reclusão, a qual torno definitiva, à mingua de agravantes e atenuantes, bem como causas de diminuição ou aumento de pena.
Passo, a seguir, à individualização da pena para o crime tipificado no art. 304, do CPB.
I – a culpabilidade é normal à espécie, nada tendo a valorar, eis que a fé pública já é tutelada penalmente pela própria previsão típica do delito, e a ofensa a esse bem jurídico representa a mera subsunção da conduta ao tipo legal;
II – antecedentes imaculados, tendo em vista que não há notícias de condenações com trânsito em julgado em desfavor do réu, nem tampouco ações penais em trâmite, sendo que estas últimas não poderiam, de qualquer forma, ser consideradas para os fins ora colimados[18];
III – não existem subsídios nos autos que possibilitem a aferição da conduta social e da personalidade do réu, razão pela qual deixo de valorá-las;
IV – os motivos do crime são ínsitos à própria previsão típica, vez que não restou evidenciado nos autos um especial fim de agir na conduta do réu, razão pela qual nada tenho a considerar a respeito;
V – as circunstâncias do crime são graves, tendo em conta que o réu aproveitou-se da condição de prefeito e ordenador de despesas do município de Apicum Açu, para autorizar pagamentos à margem da lei, utilizando-se de notas fiscais falsas, subvertendo seu munus público, no qual se preconiza a fiel e estrita observância aos preceitos legais para a execução orçamentária;
VI – as consequências do crime, da mesma forma, também refletem o resultado danoso já abstratamente previsto no tipo penal, que é a lesão à fé pública; ademais, não se verificou, inequivocamente, a ocorrência de efetivo prejuízo ao erário para a configuração delitiva (o que, aliás, é prescindível), razão pela qual deixo de valorar tal circunstância; e
VII – tratando-se de crime cujo sujeito passivo imediato é o Estado, inviável considerar-se o comportamento da vítima, nada tendo a valorar neste ponto.
À vista de uma circunstância judicial desfavorável (circunstâncias do crime), fixo a pena-base em 02 (dois) anos e 06 (seis) meses de reclusão, a qual torno definitiva, à mingua de agravantes e atenuantes, bem como causas de diminuição ou aumento de pena.
Em obediência ao que dispõem o art. 69[19], do CPB, procedo ao cúmulo material das penas similares na espécie (reclusão), ficando o réu definitivamente condenado à pena de 05 (cinco) anos de reclusão, pelos crimes dos arts. 1º, I, do Dec.-Lei n. 201/67, e art. 304, do CPB, e 03 (três) anos e 06 (seis) meses de detenção, e pagamento de multa no valor de R$ 294,71 (duzentos e noventa e quatro reais e setenta e um centavos), pelo crime tipificado no art. 89, caput, da Lei n. 8.666/93.
A pena de reclusão deverá ser cumprida, inicialmente, em regime semiaberto, e a de detenção, em regime aberto, em estabelecimentos prisionais adequados, conforme dispõem os arts. 33, § 2º, alíneas b e c, do CPB.
Verifico, agora, a possibilidade de substituição da pena corporal por restritivas de direito, em atenção ao que dispõe o art. 44[20], do CPB.
Com efeito, inobstante as penas de reclusão e detenção não possam ser somadas para fins de execução, conforme expressa vedação do art. 69, do CPB, a análise do requisito objetivo da substituição – quantidade de pena privativa de liberdade não superior a quatro anos -, deve, sim, em minha compreensão, levar em conta todas as sanções somadas, ainda que de diferentes espécies.
E digo isso porque o art. 44, do CPB emprega a dicção “pena privativa de liberdade”, que constitui, sabidamente, gênero de sanção corporal, da qual são espécies a reclusão e a detenção, o que nos autoriza a concluir, a partir de uma exegese teleológica, que para a substituição, deve o julgador somar todas as penas, independentemente de suas espécies, já que se trata de uma benesse conferida pelo legislador, cujo atendimento aos requisitos legais deve ser estritamente observado.
O Colendo Superior Tribunal de Justiça, em situações semelhantes, já decidiu pela inviabilidade da concessão do benefício, quando o cúmulo das penas de reclusão e detenção ultrapassa o limite de quatro anos, imposto pelo art. 44, I, do CPB. Nesse norte:
DIREITO PENAL. HABEAS CORPUS. PORTE DE ARMA. RECEPTAÇÃO CULPOSA. DOSIMETRIA. SUBSTITUIÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO. CARÊNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. RECONHECIMENTO.
1. Por mais que a instância inferior não tenha conhecido da prévia impetração é possível a esta Corte cuidar da matéria, diante da existência de patente ilegalidade. In casu, a referência genérica aos termos do art. 59 do Código Penal não autoriza o incremento da pena base. Da mesma forma, não se reveste de juridicidade o afastamento, em tais condições, da substituição da sanção corporal por restritivas de direito.
2. Ordem não conhecida e, concedido habeas corpus de ofício para reduzir as penas privativas de liberdade do paciente para dois anos de reclusão, pela prática de porte de arma, e, para um mês de detenção, em razão da receptação culposa; determinada ainda a substituição das penais corporais por restritivas de direito, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária, que serão melhor individualizadas pelo Juízo das Execuções Penais.[21]
Ainda, na mesma linha:
HABEAS CORPUS. PACIENTE CONDENADO POR PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO E USO DE DOCUMENTO FALSO, EM CONCURSO MATERIAL (ART. 10, CAPUT DA LEI 9.437/97, 304 E 69 DO CPB). PENAS DE 2 ANOS DE DETENÇÃO E 2 ANOS E 4 MESES DE RECLUSÃO, AMBAS EM REGIME INICIAL SEMI-ABERTO. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS. SUBSTITUIÇÃO POR RESTRITIVAS DE DIREITO. INADMISSIBILIDADE, IN CASU. QUANTUM QUE INVIABILIZA A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. INOCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM DENEGADA.
1. Justificada a majoração da pena-base e a fixação do regime prisional semi-aberto em razão de serem desfavoráveis as circunstâncias judiciais do art. 59 do CPB, não há qualquer ilegalidade no indeferimento da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, principalmente quando o quantum total fixado já não permitiria a benesse.
2. Não há que se falar em extinção da punibilidade do crime de porte ilegal de arma, pois não comprovado o transcurso do lapso temporal exigido pelo art. 109, V do CPB, qual seja, 4 anos, levando-se em conta os marcos prescricionais. Ao que se tem dos autos, a condenação transitou em julgado para a defesa e a acusação e foi iniciado o cumprimento da pena.
3. Parecer do MPF pela denegação da ordem.
4. Ordem denegada.[22]
Diante dessas considerações, a substituição da sanção corporal por restritivas de direitos é incabível.
A inviabilidade de concessão da suspensão condicional também é manifesta, diante do quantum da pena privativa de liberdade ora aplicada sobejar o limite estabelecido no art. 77[23], do CPB – 02 (dois) anos de reclusão.
Por derradeiro, algumas observações acerca da sanção acessória, de perda e inabilitação para o exercício de cargo ou função pública, previstas no § 2º, do art. 1º, do Dec.-Lei n. 201/67, cuja redação é a seguinte:
Art. 1º. Omissis
[…]
§ 2º A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste artigo, acarreta a perda de cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular.
(sem destaques no original)
Como se deflui da dicção legal, a imposição desta sanção é decorrência automática da própria condenação, não havendo necessidade de expressa fundamentação no decisum, conforme já assentou o STJ:
[…] 1. As penas de perda do cargo e de inabilitação para o exercício de cargo ou função pública, previstas no art. 1.º, § 2.º, do Decreto-Lei n.º 201/67, são autonômas em relação à pena privativa de liberdade, sendo distintos os prazos prescricionais. Precedentes.
2. Quanto à necessidade de fundamentar a imposição dessa pena, esta Corte entende que a aplicação é automática, decorrente da própria condenação.
3. Recurso provido.[24]
(sem destaques no original)
Embora seja necessário o trânsito em julgado para que esta sanção seja aplicada, entendo que, no presente caso, na linha do que decidido pelo ilustre relator, a sua imposição, ad cautelam, se faz absolutamente necessária.
Visualizo, in casu, um risco concreto e grave de dilapidação do patrimônio público, caso o réu permaneça no cargo até o trânsito em julgado desta decisão, o que recomenda seu afastamento cautelarmente.
O erário público do Município de Apicum Açu, bem como os seus habitantes, correm sério risco de continuarem a sofrer as deletérias consequências da permanência do réu no cargo, pois, além dos ilícitos penais ora constatados, o Relatório do TCE/MA evidenciou a ocorrência de diversas outras irregularidades administrativas, que prejudicaram sobremaneira a escorreita execução orçamentária.
Mesmo durante a instrução processual, na qual se oportunizou ao réu a produção de provas em sua defesa, verificou-se que várias daquelas irregularidades apontadas no relatório do TCE/MA persistiram, sobretudo, nos processos licitatórios, em que alguns estavam à margem do que dita a Lei de Licitações (ausência de projetos básicos), e, o mais grave, uso de CRC’s adulterados para justificar ausência de habilitação dos licitantes, em certames que evidenciavam verdadeiro “jogo de cartas marcadas”, pondo em xeque a necessária competição em condições igualitárias, que deve ser ínsita à higidez das licitações.
A jurisprudência admite com tranquilidade o afastamento cautelar do prefeito, pela prática de crime de responsabilidade. Assim:
HABEAS CORPUS. CRIME DE RESPONSABILIDADE. ARTIGO 1º, INCISO I, DO DECRETO-LEI 201/67. AFASTAMENTO DO CARGO DE PREFEITO MUNICIPAL. DECISÃO FUNDAMENTADA. EXCESSO DE PRAZO PARA O ENCERRAMENTO DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. INEXISTÊNCIA. ORDEM DENEGADA. 1. O afastamento do Prefeito do cargo é, na letra do inciso II, parte final, do artigo 2º do Decreto-Lei nº 201/67, medida cautelar, de induvidosa legalidade quando motivada na existência de risco concreto à instrução criminal. 2. Atribuída ao paciente a demora na instauração da instrução, não há falar em excesso de prazo para ao seu encerramento. 3. Ordem denegada.[25]
(sem destaques no original)
No mesmo norte:
[…] IV – A decisão que determina o afastamento do Prefeito de seu cargo deve ser concretamente fundamentada, a teor do art. 2º, II, do Decreto-Lei nº 201/67 (Precedentes). In casu, a decisão foi fundamentada, a par da gravidade dos fatos atribuídos ao acusado, principalmente, para assegurar, durante a instrução, a imparcialidade na colheita das provas, tendo em vista a forte influência política de que é detentor, o que certamente poderia obstaculizar a elucidação dos fatos.[26]
Há que se ponderar, por oportuno, que existe notória diferença entre o afastamento e a perda do cargo. Aquele, que ora se impõe cautelarmente, prescinde do trânsito em julgado da decisão, porque está inserido no âmbito de poder geral de cautela, enquanto que a perda do cargo constitui-se pena acessória, de cunho definitivo, só sendo aplicável após o trânsito em julado.
Assim, as gravidades das condutas as quais o réu está sendo condenado, desde meu olhar, demonstram, à toda evidência, um juízo de censurabilidade mais elevado, além daquele ínsito à própria previsão típica, o que autorizas, sim, o seu afastamento cautelar do cargo de prefeito do Município de Apicum Açu, na esteira do entendimento firmado pelo ilustre relator.
Com essas considerações, julgo parcialmente procedente os pedidos constantes na denúncia, para:
I – declarar extinta a punibilidade, pelo advento da prescrição da pretensão punitiva estatal, dos crimes tipificados no art. 1º, incisos III e VII, do Dec.-Lei n. 201/67, o que faço com base nos arts. 107, IV, e 109, IV, ambos do CPB;
II – condenar o réu Sebastião Lopes Monteiro, definitivamente, na forma do art. 69, do CPB, à pena de 05 (cinco) anos de reclusão, pelos crimes dos arts. 1º, I, do Dec.-Lei n. 201/67, e art. 304, do CPB, e 03 (três) anos e 06 (seis) meses de detenção, e pagamento de multa no valor de R$ 294,71 (duzentos e noventa e quatro reais e setenta e um centavos), pelo crime tipificado no art. 89, caupt, da Lei n. 8.666/93;
III – a pena de reclusão deverá ser cumprida, inicialmente, em regime semiaberto, e a de detenção, em regime aberto, em estabelecimentos prisionais adequados, conforme dispõem os arts. 33, § 2º, alíneas b e c, do CPB; e
IV – após o trânsito em julgado, o réu terá decretada a perda definitiva do cargo, ficando inabilitado, por cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletiva ou de nomeação, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular, nos termos em que preconiza o art. 1º, § 2º, do Dec.-Lei n. 201/67, devendo ser comunicado o E. Tribunal Regional Eleitoral acerca desta decisão.
Outrossim, recomenda-se, de imediato, o afastamento cautelar do réu do cargo de Prefeito do Município de Apicum Açu, pelas razões acima delineadas.
É como voto.
Sala das Sessões da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em São Luís, 12 de maio de 2011.
DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida
RELATOR PARA ACÓRDÃO
[1] Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: omissis; IV – em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro;
[2] Liberdade – interpretam-se estritamente as disposições que limitam a liberdade, tomada esta palavra em qualquer das suas acepções: liberdade de locomoção, trabalho, trânsito, profissão, indústria, comércio etc. (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito).
[3] É indispensável destacar que a questão da empreitada (por preço global ou por preço unitário) não tem qualquer relação com o critério de julgamento. É um erro grave reputar que, prevendo o edital que a empreitada será por preço unitário, o julgamento será feito por comparação dos ditos preços unitários. Independentemente da modalidade da empreitada, a proposta do licitante indica o valor por ele pretendido para executar o objeto. Para selecionar a proposta vencedora, tomar-se-á em vista o total proposto pelo licitante – não tendo cabimento selecionar o vencedor em vista de cada um dos preços unitários que compõem o custo de cada proposta. (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Dialética. São Paulo: 2010, p. 129.)
[4] TRF1 – APELAÇÃO CRIMINAL: ACR 401381 MG 9613.20.07.401381-3. 3ª T. Rel.: Juiz Tourinho Neto. Publicação: 18/06/2010.
[5] COSTA, Tito. Responsabilidade de Prefeitos e Vereadores. RT, 4. ed. 2002, p. 46.
[6] Ob. cit., p. 47.
[7] HC 145.114/GO, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 17/08/2010, DJe 27/09/2010.
[8] Art. 297 – Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro: Pena – reclusão, de dois a seis anos, e multa.
[9] HC 112.895/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 16/11/2010, DJe 06/12/2010.
[10] HC 45.770/RS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 23/09/2008, DJe 03/11/2008.
[11] HC 133.813/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 25/05/2010, DJe 02/08/2010.
[12] TJ/DFT. 1ª. Câmara Criminal. Rel.: George Lopes Leite. DJ: 02.06/2008.
[13] TJ/MG. AC 1.0024.00.113924-5/001, Des. Márcia Milanez. DJ: 17/08/2005.
[14] Súmula n. 444 do STJ: É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base.
[15] Art. 99. A pena de multa cominada nos arts. 89 a 98 desta Lei consiste no pagamento de quantia fixada na sentença e calculada em índices percentuais, cuja base corresponderá ao valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente.
§ 1o Os índices a que se refere este artigo não poderão ser inferiores a 2% (dois por cento), nem superiores a 5% (cinco por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação.
§ 2o O produto da arrecadação da multa reverterá, conforme o caso, à Fazenda Federal, Distrital, Estadual ou Municipal.
[16] NUCCI, Guilheme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. RT, 2008, p. 832.
[17] Súmula n. 444 do STJ: É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base.
[18] Súmula n. 444 do STJ: É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base.
[19] Art. 69 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.
[20] Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II – o réu não for reincidente em crime doloso;
III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.
[21] HC 58.983/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 09/06/2009, DJe 01/07/2009.
[22] HC 92.771/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 24/11/2008, DJe 19/12/2008.
[23] Art. 77 – A execução da pena privativa de liberdade, não superior a 2 (dois) anos, poderá ser suspensa, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que: Omissis
[24] REsp 945.828/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 28/09/2010, DJe 18/10/2010.
[25] HC 200401328996, HAMILTON CARVALHIDO, STJ – SEXTA TURMA, 22/09/2008.
[26] RESP 200400647001, FELIX FISCHER, STJ – QUINTA TURMA, 21/02/2005.
Dr. Luis Almeida,sou sua leitora assídua e fico triste como estes prefeitos se apossam da prefeitura como se fossem patrimônio seu.Eles perderam o respeito pelo povo e pela justiça,acham que roubam o dinheiro do prefeitura e vai ficar por isso mesmo, sou de Vitória do mearim e por aqui as coisas não são diferentes O ex-prefeitos Reginaldo Rios e Zé Mario Costa Roubaram o dinheiro do PREVIM(fundo de previdencia de Vitória) e nunca devolveram nada.Este último anda dizendo para todo mundo q vai ser candidato , Será q ele ainda pode com tantas contas rejeitadas? Aguardo seu comentario, abcs.
Dr. José Luiz, sempre que posso,leio suas matérias, me inspiro muitas vezes nelas, pois, exprimem de forma bem simples o que é correto. Sou de uma cidadezinha do interior e politicamente falando não é diferente das demais cidades, resumindo, o Prefeito não administra a cidade e sim os próprios interesses. E o que deixa o cidadão indignado, é que toda e qualquer providência no sentido de estancar essa sangria, de tentar colocar o município nos trilhos do desenvolvimento, pára na Justiça. Veja bem, a Câmara cassou o Prefeito, a Justiça voltou, várias denúncias estão no Ministério Público, desde realização de Leilão sem autorização da Câmara, Prestação de Contas de 2009 e 2010, que não foram entregues à Câmara, Contratações irregulares na Prefeitura, obras fantasmas, enfim, uma infinidade de denúncias e nenhuma providência tomada, inclusive o processo de Cassação do Prefeito, encontra-se no TJ, esperamos sinceramente, que esse Tribunal decida, levando em conta, centenas de crianças que estão sem Merenda Escolar, Hospital sem medicamentos e muitas pessoas morrendo à míngua, sem assistência médica, PSF que não funciona, Obras superfaturadas, dentre outras irregularidades, porque o dinheiro público está sendo desviado. Acredito principalmente em V. Excia.