EDUARDA, O RÁBULA E AS NOSSAS CONTRADIÇÕES

Fernando Sabino, em O Encontro Marcado, narra que Eduardo, filho de Marciano e Estefânia, certo dia, estando no quintal de sua casa, pegou uma galinha, que ele chamava Eduarda, e a colocou debaixo de uma bacia, seguindo depois para a aula, deixando-a submetida a essa situação de verdadeira tortura; traquinices de menino, daquelas que todos nós um dia praticamos, sem medir as consequências, porém sem maldade.
Eduardo foi advertido pelo pai de que aquilo era maldade. O pai, para dar ênfase à advertência, indagou de Eduardo se ele gostaria que fizessem o mesmo com ele, lembrando, para concluir, que galinha, como o ser humano, também sofre, tentando, com advertência, sensibilizar Eduardo.
Num domingo qualquer, depois dessa advertência, surpreso, Eduardo encontrou Eduarda, a galinha, na mesa, pernas para o ar, assada, no ponto de ser degustada. Eduarda foi comida por Eduardo entre lágrimas.
Eduardo concluiu, assim, que, definitivamente, galinha sofre mesmo, e que, para culminar o sofrimento, ainda serviam de alimentação ao homem, daí ter decidido, revoltado e triste, nunca mais criar galinha.
Essa passagem marcante romance de Fernando Sabino, traduz, com letras fortes, as nossas contradições. Conquanto possa não ter sido essa a verdadeira intenção do ficcionista, posso inferir, sob essa perspectiva, que ele deixou patenteado o perigo que representa para credibilidade de uma pessoa dizer uma coisa e fazer outra.
Infelizmente, nas nossas relações, temos testemunhado, não raro, as pessoas pregarem uma coisa e fazerem outra diametralmente oposta, do que resulta, por evidente, que, com isso, fulminam a sua credibilidade, e comprometem as relações, pois que, afinal, ninguém suporta lidar com quem não tem palavra ou muda de opinião e de postura de acordo com as suas conveniências.
Cediço que, em face dessas práticas, muitas vezes, em nossas relações, não acreditamos no que algumas pessoas dizem. A gente tem sempre um pé atrás nas promessas que elas fazem, nas coisas que pregam, nos argumentos que adotam, convindo realçar que, muitas vezes, isso ocorre por nossa própria culpa, pois, por conveniência ou comodidade, nos aliamos aos que não têm nenhuma convicção no que fazem e dizem.
Anoto, nessas breves reflexões, que assumir uma linha de coerência entre as palavras e a ação não deve ser objetivo a ser perseguido apenas pela classe política, pelos homens públicos. Isso deve ser uma prática de vida de todos.
Não podemos nos furtar, com efeito, de agir, na vida privada e pública, em conformidade com o nosso discurso, pois nada mais triste para uma relação se ela é forjada na descrença, na falta de credibilidade de atores dessa mesma relação.
Para ilustrar, lembro que, assim que me formei, fui advogar no interior do Maranhão. Numa das cidades que escolhi para iniciar a minha vida profissional havia um provisionado (rábula) muito inteligente e perspicaz. Tinha fama de hábil e era muito respeitado nas comarcas circunvizinhas em face dessas qualidades.
Esse rábula fazia pregações contundentes acerca da ética, sobre a postura profissional do advogado; era um discurso encantador, conquanto não fosse essa, de rigor, a sua prática profissional, como vou narrar a seguir.
Pois bem. Com escritório instalado, iniciando a minha vida profissional, sem nenhuma experiência, com a cara e a coragem e algum conhecimento jurídico, fui procurado pela família de um lavrador que tinha sido preso “correicionalmente”, o que era comum à época.
Como vislumbrei que, em face da ilegalidade da prisão, eu não teria muito trabalho para restituir a liberdade do lavrador pela via do habeas corpus, cobrei, a título de honorários, um valor pequeno, quase irrisório, mas razoável, já que o caso era simples e exigiria muito pouco de mim.
Os parentes do paciente, curiosa, mas justificadamente, não acreditaram que por um valor tão irrisório eu conseguiria a restituição de sua liberdade. Saíram do meu gabinete, descrentes, e foram procurar o rábula. Esse, atilado e perspicaz, disse a eles que eu havia cobrado um valor insignificante porque, muito novo e sem experiência, não daria conta do recado, e que ele, sim, com a sua vasta experiência e conhecimento, sabia estar defronte de um caso que exigia muito conhecimento e experiência.
Com essa conversa, cobrou um valor muito superior pelo trabalho e conseguiu conquistar o cliente. E, como eu já supunha, com um simples pedido de informações do juiz, o delegado colocou em liberdade o paciente, pois que tinha ciência da ilegalidade da prisão.
A lição que se pode tirar dessa história é que, muitas vezes, há os que, descrente de tudo, pagam caro por essa descrença, estimulando, nesse panorama, que muitos adotem um discurso diferente de sua prática de vida, como ocorreu no episódio envolvendo a galinha de Eduardo.
Foi nesse ambiente que o rábula encontrou as portas abertas para fazer um discurso sedutor e em razão do qual conquistou o “meu” cliente, ainda que houvesse uma enorme distância entre a realidade e o que ele pregou para essa finalidade, a evidencia, com tintas fortes, as nossas contradições e a distância que muitos estabelecem entre o discurso e a prática de vida.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “EDUARDA, O RÁBULA E AS NOSSAS CONTRADIÇÕES”

  1. Maravilhoso, tudo o que escreve. Vim de lágrimas e me encontro em êxtase.
    O encontrei para encontrar o inimigo que mora dentro de mim.
    E achei um homem encantador, que avança pela simplicidade para dizer o que raramente é dito.
    São de homens com essa natureza despretensiosa que a humanidade precisa.
    São profissionais destituídos de um poder absoluto que o mundo precisa.
    Parabéns, és encantador.

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