Sentença condenatória, com emendatio libelli

No contexto em que se deram os fatos e em vista da nova definição jurídica, tratando-se de simples corrigenda da imputação(emendatio libelli), não há falar-se em manifestação posterior da defesa, pois que, assim agindo, não se atenta contra o princípio da correlação. É dizer: não se está julgando extra ou ultra petita, ou por fato mais grave(in pejus)

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

Titular da 7ª Vara Criminal

 

Na decisão a seguir transcrita avulta de importância a desclassificação da imputação inicial.

Entendi que como os fatos estavam narrados de moldes a possibilitar a ampla defesa, razão pela qual entreguei o provimento judicial, sem qualquer providência adicional.

Vale à pena refletir sobre essa questão.

Outro dado sobre o qual se pode refletir é acerca do indeferimento do pleito da defesa no sentido de que fosse proposta a suspensão do processo, ex vi do artigo 89, da Lei 9.099/95.

Vale à pena refletir, também, acerca dessa questão.

Processo nº9948/2001

Ação Penal Pública

Acusado: R. N. M. S.

Vítima: M.. M. M.

Vistos, etc.

 

Cuida-se de ação penal que move o Ministério Público contra R. N. M. S., brasileiro, estado civil ignorado, filho de J. B. S. e R. M. S., residente na Av.. Rui Barbosa, 186, Madre Deus, nesta cidade, por incidência comportamental no artigo 171, VI, do CP, em face de, no dia 24.02.2001, no dia 24.02.2001, ter efetuado despesas com bebidas e comidas para si e para uns amigos na mercearia de propriedade de M. M. M., localizada na Rua 03, Casa 23, São Francisco, cujas despesas foram pagas com três cheques, nºs 000714, no valor de R$ 70,00(setenta) reais, 00495, no valor de R$ 90,00(noventa) reais, e 00491, no valor de R$ 90,00(noventa)reais, o primeiro de R.A. C. e dos últimos de M. A. S.,todos devolvidos pela alíneas 21 e 28, que é furto/roubo e cancelamento.

Prova material acostada às fls.44/46.

Recebimento da denúncia às fls. 51.

O acusado foi citado, qualificado e interrogado(fls.54 e 55/56).

Defesa prévia às fls. 59/60.

Durante a instrução criminal foi ouvida apenas a vítima M. M. M.(fls.64).

As partes nada requereram na fase de diligências(fls.85).

Nas alegações finais, o Ministério Público pediu a condenação do acusado, nos termos da denúncia(fls.79/81).

A defesa, de seu lado, pediu que fosse reconhecido direito do acusado à suspensão do processo, pedindo, para tanto, que fosse intimado o Ministério Público para ofertar a proposta, ou que, se não o fizer, que a proposta seja feita pelo juiz, de ofício, ou que, se tudo isso não for possível, que seja a pena aplicada no mínimo legal(fls90/95).

Relatados. Decido.

1. Devo sublinhar, em face do postulado pela defesa, em alegações finais, que o acusado não faz jus ao benefício da suspensão do processo, por ser reincidente(fls.77).

2. A proposta de suspensão do processo, em face do que prescreve o artigo 89 da Lei 9.099/95, pressupõe a observância de determinados requisitos, dentre s quais a primariedade do eventual beneficiário do favor legis.

2.1 Os Tribunais, no que se refere aos pressupostos para concessão do benefício, têm ido mais longe na exigência.

2.2 O Superior Tribunal de Justiça, ad exempli, entende ser suficiente para o indeferimento do pleito, o só fato de o acusado ter contra si em andamento outro processo-crime.

2.3 À luz dessa decisão, a fortiori, sendo o acusado reincidente, não faz jus ao benefício.

2.4 A ementa abaixo, da lavra do Tribunal em comento, corrobora o argumento acima, verbis:

Acórdão EDHC 18134 / SP ; EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO HABEAS CORPUS 2001/0099831-9 Fonte DJ DATA:04/08/2003 PG:00336 Relator Min. JORGE SCARTEZZINI (1113) Ementa EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – ESTELIONATO – AUSÊNCIA DE PROPOSTA DE SUSPENSÃO DO PROCESSO – PACIENTE QUE RESPONDE A OUTRAS AÇÕES PENAIS – INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU AMBIGÜIDADE.- A concessão da suspensão condicional do processo subordina-se ao prévio preenchimento dos requisitos previstos no art. 89, da Lei 9.099/95. Assim sendo, inexiste nulidade em decisão que concluiu pela inexistência do direito a concessão do benefício em razão do paciente responder a outras ações penais. – Omissão, contradição ou ambigüidade não verificada. – Embargos rejeitados. Data da Decisão 01/04/2003 Orgão Julgador T5 – QUINTA TURMA .

3. No que se refere à postulação da defesa, no sentido de que seja a proposta feita de ofício pelo Magistrado, na hipótese de não vir a ser feita pelo Ministério Público, devo anotar que, a meu juízo, não deve o Magistrado imiscuir-se nessa questão.

4. Explico.

5. A proposta em comento traduz-se em poder-dever do representante ministerial, em razão do que, ainda que fosse factível, ainda que o réu preenchesse os requisitos para concessão do benefício, o juiz estaria impedido de formular a proposta.

5.1 É o quer se colhe, registre-se, da ementa abaixo, também da lavra do excelso Superior Tribunal de Justiça, litteris:

Acórdão RHC 8623 / RJ ; RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS 1999/0039527-1 Fonte DJ DATA:11/10/1999 PG:00088 Relator Min. HAMILTON CARVALHIDO (1112) Ementa SUSPENSÃO DO PROCESSO. RECURSO ORDINÁRIO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ARTIGO 28 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. 1. A proposta de suspensão do processo é poder-dever exclusivo do Ministério Público, incabendo a aplicação analógica do artigo 28 do Código de Processo Penal, como é da jurisprudência do Excelso Supremo Tribunal Federal…” 3. Recurso ordinário negado. Data da Decisão 29/06/1999 Orgão Julgador T6 – SEXTA TURMA

6. Decidido acerca das questões preliminares, passo ao exame da questão de fundo, a par do quadro probatório que se descortina nos autos.

7. Pois bem.

8. A quaestio de fundo não é de difícil desate.

9. Anoto, preliminarmente, que a construção desta decisão arrima-se, prevalentemente, na palavra do acusado e do ofendido, únicos inquiridos na fase de conhecimento.

10. Com efeito, o acusado, por ocasião do seu interrogatório, confessou, sem titubeio e sem tergiversar, ter emitido os cheques mencionados na denúncia, os quais se destinavam ao pagamento das despesas efetuadas no comércio da vítima(fls.55/56).

10.1 O acusado confessou, ademais, que adquiriu os cheques das mãos de um flanelinha, cujo nome não soube declinar, ajuntando que os cheques eram roubados(ibidem).

10.2 O mesmo acusado, ainda por ocasião do seu interrogatório em sede judicial, afirmou que os cheques voltaram porque não tinham fundos, reconhecendo que deve a vítima e que pretende honrar o seu débito, logo que for possível (ibidem).

10.3 Demonstrando que não é jejuno na praça, o réu afirmou, finalmente, que já foi preso, processado e condenado por emissão de cheque sem fundo e que, por isso, está prestando serviços à comunidade(ibidem).

11. O ofendido, na mesma sede, afirmou ser proprietário do comércio mencionado na denúncia e que, no dia 24 de fevereiro, o acusado apareceu, acompanhado de alguns amigos, efetuou despesas e pagou com um cheque da correntista Manira Aboud Santos(fls.64).

11.1 Acrescentou a vítima que o acusado retornou ao comércio e mais uma vez fez outra conta, desta feita no valor de setenta reais, cujo cheque, a exemplo dos anteriores também seria furtado, causando, mais uma vez, prejuízo ao ofendido(ibidem)

12. Os fragmentos dos depoimentos acima referidos deixam entrever que o acusado, efetivamente, obteve para si vantagem ilícita, em prejuízo da vítima, mantendo-a em erro, ao pagar os débitos constituídos, com cheques roubados e, por isso, sem provisão de fundos, pelo que fez subsumir a sua conduta no preceito primário do artigo 171 do CP.

12.1 Posso afirmar, de mais a mais, a par dos depoimentos em comento, que o acusado, mediante mais de uma ação, praticou dois crimes da mesma espécie, os quais, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhanças, fazem crer ser segundo subseqüente ao primeiro, daí a tipificação da continuidade delitiva, ex vi do artigo 71 do CP.

12.2 Do exame do almanaque probatório verifico que o acusado, com unidade de desígnios, com o mesmo modus operandi, praticou atos criminosos entrelaçados, donde ressai, além dos necessários dados objetivos(o código adotou a teoria objetiva), dados subjetivos, traduzidos na vontade consciente de causar prejuízo a outrem.

12.3 Enfrentando questão do mesmo matiz, o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo teve a oportunidade de reafirmar que, inobstante a adoção pelo Código Penal brasileiro da teoria objetiva pura com relação à continuidade delitiva,é imprescindível a análise da unidade de resolução criminosa do agente, sendo, portanto, indispensável o caráter de desdobramento entre as ações delitivas que as insira em uma mesma cadeia de prática criminosa onde, a conexão espacial, temporal e modus operandi sejam tão-somente sintomas do contexto de uma vontade única, essa sim, a essência do crime continuado(RJDTACRIM 36/87).

13. Haverá quem argumente que esta decisão se afasta do requisitória da acusação e que, por isso, estaria viciada, vez que o órgão ministerial, quando da tipificação do crime, não fez menção à continuidade delitiva.

13.1 O autor do argumento certamente dirá que a decisão em comento se fez ao arrepio do princípio da correlação, porque extra petita ou ultra petita e in pejus.

14. Devo anotar , antevendo eventual argumentação nesse sentido, que o acusado não se defende do tipo penal consignado na denúncia, mas dos fatos.

14.1 Nessa linha de argumentação, devo dizer que a denúncia faz expressa menção à continuidade delitiva, pouco importando se, quando da tipificação, a subscritora da denúncia tenha deixado de fazer menção ao dispositivo em comento, daí poder-se dizer que, com esta decisão, não se está hostilizando a legislação pertinente.

15. Feito o indispensável registro, devo sublinhar, no mesmo passo, que a verdade processual que dos autos se revela, nos compele, nos conduz ao reconhecimento da tipificação do crime de estelionato em continuidade delitiva, importando, de efeito, dar-se ao fato nova definição jurídica, ex vi do artigo 383 do Digesto de Processo Penal, o que faço, aqui e agora.

16. Sublinho que da desclassificação que aqui se opera. sem qualquer outra providência legal, não resulta qualquer prejuízo à defesa, vez que, sabe-se, os acusados não se defendem da capitulação, mas dos fatos e, sob essa perspectiva, não se pode alegar qualquer prejuízo ao seu direito de defesa.

16.1 É bem de se ver, que não ocorre nulidade, por afronta ao princípio da correlação entre a acusação e a sentença, se esta, julgando o fato descrito na vestibular acusatória, a ele dá capitulação diversa, reconhecendo a continuidade delitiva, ainda que se tenha que impor reprimenda penal mais exacerbada ao acusado, pois que, in casu, tem inteira aplicação o artigo 383 do Digesto de Processo Penal.

16.2 Nos autos em testilha, o Ministério Público, narrando os fatos minunciosamente, fez a capitulação de forma, digamos, equivocada, o que, entretanto, não impede, ex vi legis, a edição da sentença, sem qualquer providência adicional, sabido que o réu não se defende da capitulação, mas, sim, dos fatos.

17. Os fatos narrados na denúncia, é curial, não inviabilizaram o exercício da defesa dos acusados. Demais disso, o magistrado não está jungido à classificação provisória feita pelo Ministério Público, podendo, sim, dela desgarrar-se, invocando o princípio “narra factum mihi dabo tibi ius”.

17.1 Ao proceder à nova definição jurídica da imputação inicial (emendatio libelli), devo argumentar, não se atenta contra os princípios da ampla defesa e o nex procedat judez ex officio, corolários do sistema acusatório entre nós adotado.

17.2 Devo argumentar, finalmente, que a classificação do delito na peça acusatória não tem, necessariamente, que ser exata, pois que o perfeito enquadramento da espécie é tarefa do magistrado, a partir do princípio do “narra mihi factum , dabo tibi jus”.

17.3 No contexto em que se deram os fatos e em vista da nova definição jurídica, tratando-se de simples corrigenda da imputação(emendatio libelli), não há falar-se em manifestação posterior da defesa, pois que, assim agindo, não se atenta contra o princípio da correlação. É dizer: não se está julgando extra ou ultra petita, ou por fato mais grave(in pejus)

18. Ordenadas as idéias, a partir da nova definição jurídica, é de concluir-se que o acusado, malferiu, sim, o artigo 171, VI, do CP, c/c o artigo 71 do mesmo diploma legal, à vista do que julgo procedente a denúncia, para, de conseqüência, condená-los por incidência comportamental no tipo penal referido, fixando, a seguir, a pena correspondente.

19. Fixo, pois, a pena-base em 01(hum) ano de reclusão e 10(dez)DM, à razão de 1/30 do SM vigente à época do fato, que aumento em 06(seis) meses e 03(três)DM, em face da circunstância agravante prevista no artigo 61, I, do CP, totalizando 01(um) ano e 06(seis) meses de reclusão e 13(treze)DM, que aumento, outrossim, em 1/6, em face da causa geral de aumento de pena prevista no artigo 71 do CP, totalizando, definitivamente 01(hum) ano e 03(três) meses de reclusão e 14(quatorze)DM, devendo a pena privativa de liberdade ser cumprida, inicialmente, em regime semi-aberto, ex vi do artigo 33, 3º, do CP.

20. Em vista da decisão em tela, devo fazer dois registros que entendo necessários.

20.1 O primeiro, diz respeito ao não reconhecimento da circunstância atenuante decorrente da confissão do acusado.

20.1.1 Sob esse aspecto, devo grafar que a pena-base foi fixada no mínimo legal, daí porque deixei de reconhecer a atenuante antes mencionada, do que não resulta qualquer prejuízo ao acusado, segundo reiteradíssimas decisões pretorianas.

20.2 O segundo registro condiz com a não concessão ao acusado de determinados benefícios legais, como a substituição da pena privativa de liberdade por pena alternativa.

20.2.1 A respeito do tema devo gizar que o acusado não faz jus ao benefício, pelas mesmas razões por que não lhe foi feita a proposta de suspensão do processo, ou seja, porque é reincidente, como suso demonstrado.

21. Devo esclarecer, agora, que o acusado respondeu ao processo em liberdade, mas em liberdade não pode permanecer para recorrer desta decisão, pois que não é primário e nem tem bons antecedentes, ex vi do artigo 594 do Digesto de Processo Penal.

22. À razão do exposto, decreto a prisão do acusado, determinando, de conseqüência, seja expedido o necessário mandado de prisão, em três vias, uma das quais servirá de nota de culpa.

P.R.I.

Custas, na forma da lei.

Com o trânsito em julgado desta decisão, lance-lhe o nome no rol dos culpados.

Encaminhem-se os autos, depois, à vara de execução, via distribuição, para os devidos fins, com a baixa em nossos registros.

Comunique-se esta decisão à central de penas alternativas, para os fins de direito, em face da certidão retro, que dá conta de sua condenação.

São Luís, 01 de março de 2004.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

Titular da 7ª Vara Criminal

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “Sentença condenatória, com emendatio libelli”

  1. Ótimo exemplo de emendatio libelli. Obrigado.

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