Quando um fato criminoso é noticiado pela mídia, ou mesmo depois de colhidos os primeiros dados na via administrativa ( inquérito policial ), tendemos ( pelo menos os mais açodados) a crer que o fato ocorreu exatamente como foi divulgado ou como demonstram os primeiros elementos de provas coligidos; confundimos, nesse hora, o provável e o possível, a evidência e a verdade, a crença e o conhecimento, que, como tentarei demonstrar adiante, têm diferenças que não podem ser deslembradas por quem tem a díficil prerrogativa de julgar.
Nesse panorama, os apressados, mesmo distantes dos fatos, mesmo sem o necessário cuidado, passam a crer no que supôem ter ocorrido, à luz do que pode ser – e muitas vezes é – uma falsa crença, uma equivocada percepção dos fatos.
Não é incomum, pois, que, com as primeiras informações – quase sempre precipitadas, pois lançadas ao sabor das circunstâncias -, estabeleçamos um juízo de valor acerca do crime e de sua autoria, como se essas informações preliminares – que se introjetam em nós como uma crença – retratassem uma verdade absoluta – verdade absoluta que, muitas vezes, nem mesmo o processo é capaz de revelar.
É nesse cenário que muitos são “condenados” , sem defesa, pela opinião pública.
Se o fato tem ampla repercussão, em face da ação dos veículos de comunicação, a probabilidade de uma “condenação”, sem processo e calcada em falsas crenças, é grande.
Nesse tipo de julgamento (midiático, digamos) o possível, que é juízo neutral ( não existem razões fortes em uma ou outra direção) , se confunde com o provável ( juízo aneutral, que, por isso, segue uma tendência). Todavia, nem o possível e nem o provável servem para condenar; condenação, só com a verdade obtida processualmente, asseguras a ampla defesa e o contraditório, corolários do devido processo legal.
Condenar com esteio numa probabilidade ou numa possibilidade, à luz de falsas crenças e à conta de uma evidência, é o mesmo que decidir às escuras, às cegas, à luz de falsas premissas, muitas delas já fixadas entre nós em face do esterótipo dos destinatários da persecução criminal.
Nesse cenário, construído por conta, não raro, das precipitações midiáticas, como anotado acima, confundem-se evidências e verdades, crenças e conhecimento.
Mas evidência não é verdade e crença, não é conhecimento. Ambos, conhecimento e verdade, precisam ser construídos ao longo da persecução criminal; tarefa afeta ao responsável pela condução do processo – com o devido cuidado para não afrontar o sistema acusatório – , com a participação – de preferência dinâmica – do Ministério Público e da defesa.
É preciso, pois, em face um fato criminoso noticiado, muita cautela e sofreguidão, sobretudo por parte das instâncias persecutórias, para que não se cometam injustiças, que podem decorrer de falsas crenças, introjedas na sociedade pela mídia, muitas vezes mais propensa ao sensasionalismo que à informação responsável.
Para julgar bem, o magistrado deve ir além das crenças, além do possível, do provável ou das evidências; ele deve, acima de tudo, buscar conhecer o fatos, ter contato com as provas, para, nessa faina, formar, livremente, a sua convicção. Não deve, sob qualquer pretexto, ainda que o mundo caia sobre os seus ombros, condenar com lastro em evidências ou possibilidades. Só o conhecimento, estágio no qual restam superadas as falsas crenças, autoriza um julgamento justo.
Sobreleva gizar que conhecimento, no sentido das reflexões que faço aqui e agora, é a comprovação de uma crença, à luz de dados da realidade efetivamente construída.
Conhecimento, portanto, para mim, é a crença que se revela e se mostra, quantum satis, na consciência do sujeito cognoscente.
Só a apreensão do objeto cognoscível, à luz de dados da realidade, dos dados que não podem mais ser escamoteados, conduzirá o julgador a uma decisão justa e equilibrada.
No caso de um delito, a crença inicial de que o fato tenha ocorrido e de que fulano ou sicrano tenha sido o seu autor, só se revela, só deixa de ser crença para ser verdade, quando conhecido e apreendido pelo sujeito cognoscente – no caso o juiz.
Sem que o sujeito tenha a revelação do ocorrido, com dados que lhe levem ao conhecimento da realidade, a possibilitar que alcance um estágio que vai além da crença, não se condena.
A verdade, sobretudo quando se cuida da imputação da prática de um crime, precisa ser revelada por inteiro, precisa ser conhecida e apreendida pelo sujeito cognoscente, sem sofismas, sem ceticismo, sem titubeio, sem enleio, pena de ter-se que absolver, ainda que a opinião pública já tenha assinado o édito condenatório.
Sem verdade revelada e sem um juízo de certeza, sem conhecimento ou com esteio em crenças e suposições, o caminho inexorável é a absolvição.
Não se deve condenar, nunca é excessivo repetir, com base, por exemplo, numa evidência midiática, capaz de incutir em cada um de nós uma crença (às vezes falsa) do que pode ter – ou não ter – ocorrido; dúvida que só se afastará alfim e ao cabo da instrução probatório, se e quando bem conduzida.
Sem temer pelo excesso, reafirmo, só para que fique bem sedimentada as minha reflexões, que evidência não é verdade e crença não é conhecimento. Se a polícia prende em flagrante quem está da posse da res furtiva, ad exempli, tem-se uma evidência de que possa ter sido o autor da subtração. Todavia, só a persecução criminal possibilitará – se bem conduzida, repito – o descortinamento da verdade ( pelo menos a verdade processual), que pode não ser aquela gerada pela primeira impressão que se teve em torno do fato, propiciada por uma falsa crença ou por uma evidência midiática apenas.
Todos temos conhecimento dos julgamentos morais, que ocorrem antes dos julgamentos oficiais. Esse tipo de julgamento afronta a dignidade da pessoa humana. Quem decide e condena com o objetivo de ratificar os pré- julgamentos morais, julga mal e o faz em rota de colisão com os direitos fundamentais do acusado.
A opinião pública, muitas vezes, é levada a condenar, em face do que viu, leu ou assistiu, sem a mais mínima preocupação com a verdade. O magistrado, no entanto, não pode se deixar levar por uma falsa percepção da realidade, ainda que, ao decidir, seja incompreendido.
Muitas vezes, ao tempo em que judiquei em primeira instância, tive a oportunidade de, em sentenças absolutórias, consignar a minha íntima convicção acerca da ocorrência do crime e de sua autoria, à luz das minhas crenças. No mesmo passo, eu fazia questão de consignar, entrementes, que, conquanto tivesse impregnado dessa íntima convicção, da crença acerca da autoria, enfim, não disponha de elementos coligidos nos autos que pudessem dar esteio a uma decisão de preceito sancionatório.
Não é incomum “julgarmos” antecipadamente um acusado, em face das nossas falsas crenças, como ocorre, por exemplo, com os destinatórios da persecução criminal ( cf. teoria do Labeling Approach).
Não é raro que o magistrado – e isso ocorre com todos, sem exceção -, diante de um etiquetado pelo sistema, antecipar o julgamento, pela crença de que, se tem as características do destinatário da persecução criminal, é muito provável, sim – quase certeza, sim – de que tenha sido o autor do crime.
Chamo a atenção, no entanto, para o perigo desse tipo de julgamento.
Nós,magistartos, temos que ter a capacidade – que muitas vezes não temos – de não deixar que os nossos preconceitos e as nossas crenças nos levem a condenar um inocente, como pode ocorrer – e muitas vezes ocorre – em face dos estereótipos que determinam por influenciar nas nossas “convicções”.