DISCRICIONARIEDADE VINCULADA

marteloTem sido uma quase rotina: em quase todas as apelações a defesa questiona, prevalentemente, a (falta de) fundamentação da qual resultou a fixação da pena ou a fundamentação gestada com termos que retratam a próprio tipicidade, tipo “o réu agiu com violência e emprego de arma”, no caso do crime de roubo, por exemplo.
De nossa parte, no segundo grau, temos sido compelidos, em tributo à Carta Magna, a dar provimento às apelações, com a consequente modificação das penas, quase sempre em favor do acusado e em detrimento do interesse público e da sociedade, que, como já consignei em artigo anterior, deve, sim ser protegida pelos órgãos de controle; proteção que, inobstante, não se faz ao arrepio da lei, que não se faz a qualquer custo, vilipendiando, malferindo o direito dos réus.
Os magistrados, lamentável dizer – sem deslembrar das exceções -, no trabalho de individualização da pena, olvidam-se que a discricionariedade na aplicação da pena é vinculada e que essa operação mental só pode ser controlada, evitando-se que descambe para o arbítrio, que seria a negação do próprio Estado de Direito, se for devidamente fundamentada, por força do que contempla a nossa Carta Magna, como, de resto, é do conhecimento de todos os operadores do Direito.
Para nós – julgadores do segundo grau, em particular, e para sociedade em geral – essa é uma situação grave, porque dela resulta que as penas terminam por ser fixadas aquém da resposta penal que deveria ser infligida, em vista da quadra fática delineada, com o que se afronta o principio da proporcionalidade, sabido que a resposta penal deve ser a suficiente à reprovação do delito e, noutra giro, para a prevenção de novas infrações penais.
O mais grave, nessa constatação, é que o órgão acusador só excepcionalmente recorre das decisões de primeiro grau, ainda que sejam flagrantes os equívocos operados na dosimetria da pena, o que, evidentemente, impossibilita que, em sede recursal, a pena seja revista em desfavor do acusado, que, assim, vai se beneficiando, a mais não poder, da fundamentação descuidada na aplicação da pena, disse inferindo-se ofensa aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, como antecipei acima, pois as penas terminam ficando, quase sempre, em patamares inferiores ao recomendável em face da ação reprochável.
Disso decorre que, aplicada a pena, inferior a necessária à reprovação do delito, introduz-se no espírito da população, já calejada e descrente de tudo, à toda evidencia, um malsã sentimento de impunidade que, temos constatado, pode fomentar – e tem fomentado, aqui e algures – o exercício da justiça com as próprias mãos, própria das sociedades primitivas ou nas quais o Estado não se mostra merecedor da sua confiança.
O legislador, todos sabem, estabelece, abstratamente, os limites mínimos e máximos para os delitos. O juiz trafega dentro desses limites, elegendo o quantum ideal, valendo-se, claro, do seu livre convencimento. Mas não deve fazê-lo de forma arbitrária, desmotivadamente, como tem ocorrido, infelizmente, com regular frequência, impingindo às decisões máculas que devem ser expungidas no juízo recursal, em tributo mesmo ao Estado de Direito, e ante a certeza de que o réu, antes de ser objeto, é sujeito de direito, ou de que se as coisas têm preço, o ser humano, ainda que acusado da prática de um crime, tem dignidade, e sob essa perspectiva deve ser tratado.
O juiz, conquanto tenha uma margem de liberdade para fixação da pena ao autor de um crime, está preso, além dos parâmetros estabelecidos no preceito secundário do tipo penal malferido, à vinculação da sua decisão, sabido que, em face da individualização judiciária da sanção penal, está-se diante de uma discricionariedade que é vinculada (Luiz Luisi).
É dizer: o juiz não trafega entre o mínimo e o máximo da pena de acordo com seu bom ou mau humor, de acordo com os seus sentimentos pessoais, com a sua formação moral, com as suas pré-compreensões, com os valores que eventualmente tenham sido incorporados em sua personalidade. Não. O juiz, longe disso, está vinculado a uma obrigação que não comporta tergiversação, isto é, tem que motivar a sua decisão, tem que dizer porque decidiu-se pela pena além do mínimo legal ou porque decidiu-se, no mesmo passo, por regime mais gravoso para início de cumprimento da pena.
O juiz, todos sabem, ou deveriam saber e lembrar, não pode fixar uma pena além do mínimo legal, um dia sequer, ainda que o faça dentro dos limites mínimo e máximo fixados pelo legislador, se não o fizer motivadamente, afinal, “o estabelecimento da sanção penal é uma operação lógica pautada pelo principio da individualização da pena e do dever de motivação das decisões judiciais.” (STJ. HC 73470)
Essa é uma lição elementar que todos já tiveram mas que muitos se esquecem quando se decidem pela aplicação da pena, razão pela qual, repito, temos modificado tantas decisões, sempre em favor do acusado, sobretudo, repito, em face de os recursos serem manejados, quase sempre, pela defesa, a impedir as revisões das decisões em favor da sociedade, em face do impeditivo do ne reformatio in pejus.
Ainda que admitamos, com sói ocorrer, o caráter criador das decisões judiciais, coeficiente criador muitas vezes até irracional, não se pode deslembrar, ainda o que o faço à exaustão, do caráter vinculado da criatividade do juiz, que não pode, como se fosse num jogo de dados, decidir acerca da pena a ser aplicada, a qual, muito ao contrário, deve ser, sempre, concebida à luz do caso concreto, atento o togado, ademais, às suas singularidades.
A força argumentativa de uma decisão penal condenatória deve ir além da força criadora do Poder Legislativo (individualização legislativa), que fixa os parâmetros, que traçam os contornos, que fixa os mínimos e máximos, mas que não desobriga o julgador, sob qualquer perspectiva, de argumentar, fundamentadamente, as razões pelas quais fixou a pena nesse ou naquele quantum, decorrência lógica da vinculação da sua decisão aos preceitos legais, com realce para a Constituição Federal, que exige, como sabemos, a fundamentação de todas as decisões judiciais, a partir da qual o réu poderá, numa outra perspectiva, exercer com maior amplitude a sua defesa.
O tipo penal delineia os parâmetros. Mas esses parâmetros, isoladamente, não são um passaporte para que o juiz fixe a pena sem qualquer fundamentação, à luz tão somente de suas intimas convicções, com frases do tipo “o crime é grave exige resposta consentânea do estado” ou do tipo “o réu almejava com o crime o lucro fácil”, que, de rigor não dizem nada, ou melhor, apenas traduzem o que já contemplado no tipo penal, daí que o magistrado, ao reverso, deve, ir além, examinando, com o máximo e inexcedível desvelo, todos os elementos que digam respeito ao fato, para, só então, em face das diretrizes legais (cf. artigo 59 do CP), de forma justa e fundamentada, fixar a reprimenda que seja necessária e suficiente para reprovação do crime, estando, nesse sentido, desautorizado a valer-se de expressões “vagas, genéricas, desprovidas de fundamentação objetiva para justificar a exasperação” (STJ, HC 81949), como tem ocorrido, repetidas vezes, lamentavelmente.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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