Sentença absolutória.

Não fosse pela fragilidade da prova colacionada, não fosse pelas dúvidas que irrompem nos autos acerca da autoria e não fosse pela falsificação grosseira da licença, ter-se-ia que absolver a acusada em face da irrelevância do fato e de sua nenhuma repercussão jurídica.
Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Cuida-se de decisão absolutoria.
Acerca da intervenção mínima anotei.
  1. Já se disse, aqui e algures, que o Direito Penal não deve cuidar de coisa insignificantes – mínima non curat praetor. Repito, na mesma esteira, que o Estado não deve cuidar de fatos inexpressivos, desprovidos de reprovabilidade, de fatos que não estão a merecer valoração da norma penal. Não deve cuidar o Estado de ações irrelevantes, pois que lhes faltam o juízo de censura penal.
  2. Convenhamos, qual a conseqüência prática do uso do documento rasurado? O que decorreu de tão grave para ordem pública, a justificar, a legitimar a movimentação da máquina estatal?
  3. Devo anotar, em face dessa indagação, que o legislador, ao criar os tipos penais, trabalha no abstrato, sendo-lhe impossível prever, no concreto, a incidência de tal lei. In casu sub examine, ao criar o tipo penal supostamente malferido pela ré, o legislador pretendeu punir os prejuízos graves à ordem jurídica e social, não nos parecendo razoável incluir no seu âmbito os casos mais leves, de ínfima significação social, como o que albergam os autos sob retina.
  4. Para reparar aberrações jurídicas, foi que os defensores da teoria da mínima intervenção estatal (Direito Penal mínimo) adotaram a tese da insignificância, do não cuidar o Estado dos crimes bagatelares.
  5. A tipicidade, sabe-se, tem dois momentos distintos, quais sejam; a) tipicidade formal, que se resume na mera e pura adequação da conduta praticada pelo agente com o fato descrito na lei; e b) tipicidade material.
  6. Sabe-se que nem tudo que típico formalmente o é materialmente. Ao julgador compete, a partir da tipicidade material analisar o quantum da lesividade da conduta do agente face ao bem jurídico penal, para, então, se determinar pela resposta sancionatória do Estado. É neste momento que o magistrado, ao atuar a lei, deve sopesar, casualmente, e de forma prudente, se a conduta do agente não só se amolda à descrição legal (tipicidade formal), como também se há uma relevância na lesão sofrida pelo bem jurídico tutelado (conteúdo da tipicidade material). Deve o magistrado, ademais, verificar se de tal relação surge a necessidade da atuação estatal, compondo esta lide.
A seguir, a decisão por inteiro.
Processo nº218362002
Ação Penal Pública
Acusado: N. V. M.
Vítima: o Estado 
Vistos, etc.

Cuida-se de ação penal que move o MINISTÉRIO PÚBLICO contra N. V. M., brasileiro, solteira, auxiliar de enfermagem, filha de J. S. M. e T. V. M., residente e domiciliado à Rua Nossa senhora da Guia, bairro Bom Jesus, nº 02, nesta cidade, por incidência comportamental no artigo 293, § 2º, do Código Penal, em face de ter realizado uma festa no Clube Mangueirão, situado na Rua Nossa Senhora da Guia, s/n, bairro Bom Jesus, com autorização vencida e rasurada, emitida pela Delegacia de Costumes e Diversões Públicas da Capital, cujos fatos estão narrados, em detalhes, na denúncia, que, por isso, passa a integrar o presente relatório.
A persecução criminal teve início mediante portaria (fls.07).
Laudo de Exame Documentoscópico às fls.25/26.
Recebimento da denúncia às fls.37.
Ofertada a proposta de suspensão do processo, não foi aceita pela acusada(fls.49).
A acusada, foi citada, qualificada e interrogada às fls. 54/55.
Defesa prévia às fls. 57/58.
Durante a instrução criminal foram ouvidos B. DE J. N. S. F. (fls.65), A. T. DE J.(fls.66), L. C. S. DE O. (fls. 67), C. C. T. (fls.68), A. C. M. L.(fls.75), L. R. R.(fls.76) e M. F. SÁ(fls.77).
Na fase de diligências, o MINISTÉRIO PÚBLICO e a defesa nada requereram (fls.84v. e 88).
O MINISTÉRIO PÚBLICO, em alegações finais, pediu a condenação do acusado nos termos da denúncia(fls.90/92).
A defesa, de seu lado, pede a absolvição da acusada, à alegação de que não há provas suficientes para embasar um decreto de preceito sancionatório, com espeque no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal (fls.121/123).

Relatados. Decido.

01º Sumário.-A POTESTADE PUNITIVA DO ESTADO. O JUS PUNIENDI. O SISTEMA PENAL GARANTISTA. AS GARANTIAS PENAIS E PROCESSUAIS DA PERSECUÇÃO.

A potestade punitiva do Estado está centrada no denominado jus puniendi. Para exercer o jus puniendi, o Estado adota uma determina política criminal e declara punível e dotado de perseguibilidade um determinado fato.
O jus puniendi, entretanto, não é ilimitado. Nem todas as condutas sociais, portanto, são passíveis de punição. O jus puniendi é limitado tanto ao nível da criação da norma penal quanto ao de sua aplicação. Os limites situados no plano da criação são as chamadas garantias penais; os que se relacionam com a aplicação das normas penais são as denominadas garantias de persecução, processuais e de execução.
A conjugação das garantias penais e processuais dá lugar a um sistema penal garantista que não apenas legitima democraticamente o jus puniendi, mas também deslegitima o uso abusivo da potestade punitiva do Estado.
A persecução criminal que se desenvolveu nos autos sub examine não se fez abusivamente, mas em virtude de comandos legais esculpidos na ordem jurídica vigente, em face da notícia de que o acusado enfrentou um comando normativo penal.
O Estado, com efeito, aqui só interveio, em face da perspectiva de que a acusada tenha afrontado um comando legal, in casu, o artigo 129, §2º, IV, Codex Penal, daí a imprescindibilidade da intervenção estatal, que se não se apresenta abusiva e ilegítima.

02º Sumário. O TIPO PENAL APONTADO NA PREFACIAL. CONCEITO E OBJETIVIDADE JURÍDICA. SUJEITOS DO DELITO. ELEMENTOS OBJETIVOS DO TIPO. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. A CONSUMAÇÃO DO ILÍCITO, EM TESE.

No artigo 293 do Digesto Penal está definida a conduta típica (preceptum iuris) imputada à acusada, e a pena prevista, in abstracto para os seus transgressores (sanctio iuris), nos seguintes termos, verbis:

Falsificação de papéis públicos

Art. 293. Falsificar, fabricando-os ou alterando-os:

I – selo destinado a controle tributário, papel selado ou qualquer papel de emissão legal destinado à arrecadação de tributo; (Redação dada ao inciso pela Lei nº 11.035, de 22.12.2004, DOU 23.12.2004)

II – papel de crédito público que não seja moeda de curso legal;

III – vale postal;

IV – cautela de penhor, caderneta de depósito de caixa econômica ou de outro estabelecimento mantido por entidade de direito público;

V – talão, recibo, guia, alvará ou qualquer outro documento relativo à arrecadação de rendas públicas ou a depósito ou caução por que o poder público seja responsável;

VI – bilhete, passe ou conhecimento de empresa de transporte administrada pela União, por Estado ou por Município:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1º omissis:

I – omissis;

II – omissis;

III – omissis:

a) omisis;

b) omissis.

§ 2º omissis:

§ 3º. Incorre na mesma pena quem usa, depois de alterado, qualquer dos papéis a que se refere o parágrafo anterior.

§ 4º omissis:

§ 5º omissis.

O bem jurídico protegido é a fé pública, em especial a legalidade de títulos e outros papéis públicos.
Sujeito ativo é qualquer pessoa. Sujeitos passivos são o Estado e, secundariamente, qualquer pessoa que seja efetivamente lesada.
A conduta típica consiste em falsificar, fabricando (criando, produzindo) ou alterando (modificando) quaisquer dos papeis públicos referidos nos incisos I a VI, do artigo 293, do Código Penal.
O elemento subjetivo é o dolo, representado pela vontade de fabricar ou alterar qualquer dos papéis mencionados, falsificando-os. Exige-se o elemento subjetivo especial do tipo, consistente no especial fim de torná-lo novamente utilizáveis.
Consuma-se o crime com a prática das ações previstas no tipo.
Trata-se, doutrinariamente, de crime comum, instantâneo, unissubjetivo, pulurissubsistente e comissivo.
Sob essas diretrizes, sob essas considerações, passa ao exame das provas consolidadas nos autos, para, somente alfim e ao cabo do exame, concluir se a acusada, efetivamente, atentou, ou não, contra a fé pública, como pretende o MINISTÉRIO PÚBLICO.

03º Sumário.-OS FATOS E A DENÚNCIA. OS PRINCÍPIOS DA CORRELAÇÃO, AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO, COROLÁRIOS DO DUE PROCESS OF LAW. OBSERVÂNCIA DA REGRA “NARRA MIHI FACTUM DABO TIBI JUS”

N. V. M., qualificada na inicial, foi denunciada (imputatio facti) pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, à alegação de ter malferido o preceito primário do artigo 293, §3º, do Codex Penal, em face de ter rasurado e usado uma licença da Delegacia de Costumes e Diversões Públicas da Capital, no Clube Mangueirão, em data de 14/02/2002.
Os fatos narrados na denúncia nortearam todo o procedimento, possibilitando, assim, o exercício da ampla defesa do acusado, sabido que o réu se defende da descrição fática, em observância aos princípios da correlação, da ampla defesa e do contraditório.
Tudo isso porque, sabe-se, ao magistrado é defeso julgar o réu por fato de que não foi acusado(extra petita ou ultra petita), ou por fato mais grave(in pejus), proferindo sentença que se afaste do requisitório da acusação.

04º Sumário. AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO. AS FASES ADMINISTRATIVA E JUDICIAL. A INFORMATIO DELICTI E A OPINIO DELICTI. A PERSECUTIO CRIMINIS IN JUDICIO.

A persecução criminal, no sistema acusatório brasileiro, em regra, se divide em duas etapas distintas, nas quais são produzidas as provas da existência do crime e de sua autoria – uma, a chamada fase administrativa (informatio delict) é procedimento meramente administrativo, cujo objeto de apuração se destina à formação da opinio delicti pelo órgão oficial do Estado; a outra, a nominada fase judicial (persecutio criminis in judicio), visa amealhar dados que possibilitem, a inflição de pena ao autor do ilícito, garantido o livre exercício do contraditório e da ampla defesa.

06º Sumário. AS PROVAS PRODUZIDAS NA PRIMEIRA FASE DA PERSECUTIO CRIMINIS. AS PROVAS EXTRAJUDICIAIS. A NEGATIVA DA AUTORIA. A PROVA PERICIAL.

A par dos distintos momentos da persecução, passo ao exame do quadro de provas que se avoluma nos autos
Pois bem.
A primeira fase, que não deve ser olvidada apenas porque inquisitória, teve início mediante portaria (fls.07).
Em sede administrativa a prova mais relevante foi o Laudo de Exame Documentosópico, que concluiu pela ocorrência de alterações de dados originais da licença mencionada, referentes à data do visto, período e data da assinatura(fls.25/26).
Nessa mesma sede foi ouvida a acusada, que negou ter conhecimento da rasura realizada na licença em comento, aduzindo que estava afastada do clube, que estava sob a responsabilidade do senhor conhecido pelo prenome Geraldo(fls.16).
Com esses dados amealhados, encerrou-se a fase administrativa,
Faz-se necessário continuar analisando o quadro probatório, pois que, sabe-se, a prova administrativa, isolada, não serve à edição de um decreto de preceito sancionatório.

05º Sumário. AS PROVAS AMEALHADAS NA SEGUNDA FASE DA PERSECUÇÃO. A DENÚNCIA FORMULADA. DELIMITAÇÃO DA ACUSAÇÃO. POSSIBILIDADE DE AMPLA DEFESA. A REITERAÇÃO DA NEGATIVA DE AUTORIA.

Encerrada a primeira fase, o MINISTÉRIO PÚBLICO, de posse dos dados colacionados na fase extrajudicial ( informatio delicti), ofertou denúncia (nemo judex sine actore) contra o acusado , fixando, dessarte, os contornos da re in judicio deducta.
Aqui, no ambiente judicial, com procedimento arejado pela ampla defesa e pelo contraditório, produziram-se provas, donde emerge, dentre outras, o interrogatório da acusada(audiatur et altera pars) .
A acusada, aqui, no ambiente das garantias constitucionais, voltou a negar a autoria do crime, o fazendo nos termos abaixo, verbis:
“…que no período do fato narrado na denúncia, a interrogada tinha cedido o mencionado clube ao senhor A. T., advogado, cuja licença para a realização da festa mencionada na denúncia estava no seu nome(dele, A.); que a interrogada tinha cedido o clube, verbalmente, como sempre fazia; que à época da realização da festa antes mencionada, a interrogada se encontrava no povoado Mamão; que todas as festas que realizou o foi com a autorização da polícia…”(fls.54/55).

Além da acusada, foram ouvidas várias testemunhas.

B. DE J. N. S. F., a seu tempo e modo, afirmou, verbis tantum:

“…que, de posse da licença, o depoente constatou estar a mesma rasurada…” (fls.65).

“…que o depoente se recorda que o responsável pela festa não era a proprietária, que tinha, tão-somente, cedido o clube…”(ibidem).

Na mesma sede destaco os fragmentos abaixo, sugados do depoimento do agente de polícia L. C. S. DE O., verbis:

“…que, lá, depois de solicitada a licença para funcionamento, foi constatado que a mencionada licença estava rasurada…”(fls.67).
“…que não sabe quem patrocinava a festa que se realizava…”(ibidem).

C. C. T. não discrepa, tendo, de seu lado, afirmado, ipsis verbis:

“…que, para lá se dirigiram, se recordando o depoente que solicitaram a licença de funcionamento, tendo sido exibida uma que se encontrava rasurada…”(fls.68).

“…que o depoente não se recorda quem patrocinava a festa mencionada…”(ibidem).

A. C. M. L., disse, verbo ad verbum:

“…que a depoente, acerca dos fatos narrados na denúncia, sabe, tão-somente, que no dia narrado na peça inicial, realmente se realizava uma festa no clube Mangueirão, de propriedade da acusada, festa que, entretanto, não era promovida por ela, vez que nesse dia seu clube estava alugado a uma pessoa, cujo nome não sabe declinar…”(fls.75).

A par dessas provas devo, agora, expender o meu convencimento acerca da autoria, do atuar reprochável da acusada a da subsunção desse atuar no tipo penal mencionado na denúncia.

06º Sumário.O EXAME DA PROVA. NEGATIVA DE AUTORIA. DADO QUE NÃO FOI HOSTILIZADO POR QUALQUER OUTRA PROVA.

A acusada, viu-se acima, negou a autoria do crime.
A negativa de autoria da acusada não foi hostilizada por qualquer prova produzida, quer no ambiente judicial, quer no ambiente extrajudicial.
Com efeito.
Todas as testemunhas que depuseram o fizeram sempre na mesma senda, ou seja, a de que o clube da acusada estava cedido para uma pessoa, cujo nome não souberam declinar.
Ora, se o clube estava cedido para um terceiro, é curial que à ré não pode ser imputado o crime em comento.
É claro que haverá quem argumente, para defenestrar a negativa de autoria, que a ré deveria trazer aos autos provas induvidosas da cessão do clube e que, assim não o fazendo, deverá arcar com as conseqüências jurídico-penais da rasura realizada e do uso do documento adulterado.
Tenho para mim que, in casu, era o órgão oficial do Estado é quem tinha o ônus de provar que a ré tivesse sido a autora da rasura. Era o MINISTÉRIO PÚBLICO que tinha o dever de provar que a ré rasurou e usou a licença rasurada, afrontando o Estado e a fé pública. Não o fazendo, entrementes, deve suportar a absolvição da acusada.
limitando-se o MINISTÉRIO PÚBLICO a direcionar a responsabilidade pela rasura à ré, sem trazer aos autos provas bastante de que tenha sido ela a autora do fato – da rasura – e do uso do documento modificado, não pode pretender a sua condenação.
Admitindo, pelo prazer de argumentar, que a afirmação da ré de que não era a responsável pelo clube não tivesse consistência, em face de não ter feito a prova de que tivesse, efetivamente, cedido o clube a um terceiro, estar-se-ia, nessa hipótese, diante de uma séria dúvida acerca da autoria do crime.
Emergindo dúvidas do quadro probatório, há que se absolver a ré, quaestio iuris que será, a seguir, objeto de detido exame.

07º Sumário. AS INCERTEZAS PROPICIADAS PELAS PROVAS. DÚVIDAS QUE AUTORIZAM A ABSOLVIÇÃO. IN DUBIO PRO REO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 386, VI, DO DIGESTO DE PROCESSO PENAL.

Todas as vezes que o juiz se sentir tomado de dúvidas, assaltado pelas incertezas propiciadas pelas provas, o caminho é, sempre, o da absolvição, em homenagem à parêmia in dúbio pro reo.
Condenação, sabe-se, somente com prova plena, escorreita, extreme de dúvidas, da autoria do crime e da materialidade delitiva.
A culpabilidade da acusada, com efeito, deve ser provada legal e judicialmente. Quando argumento que a prova de ser judicial, quero dizer que as provas válidas são somente as produzidas perante um juiz, com todas as garantias do devido processo legal (contraditório, ampla defesa, proibição de prova ilícita etc.), buscadas as produzidas em sede extrajudicial, apenas supletivamente, para compor, integrar e fortalecer o conjunto de provas.
Na esteira desse entendimento, devo anotar que não há provas que autorizem a condenação da acusada no tipo penal referido na denúncia, como pretende o MINISTÉRIO PÚBLICO.
Sem provas convincentes e seguras a presunção de inocência continua intacta. Não pode ser defenestrada As provas, para autorizarem a aplicação de uma pena, devem ultrapassar o umbral da dúvida razoável. Na dúvida, o juiz tem que absolver. Tem aplicação, às inteiras, o princípio in dúbio pro reo.
A condenação exige certeza, quer do crime quer da autoria. Não basta a probabilidade desta ou daquela; certeza é sinônimo de evidente, de indiscutível. Havendo dúvida, a absolvição é medida que se impõe.
No processo criminal, máxime para condenação, tudo deve ser claro como a luz, certo como a evidência, positivo como qualquer expressão algébrica. Condenação exige certeza absoluta, fundada em dados objetivos indiscutíveis, de caráter geral, que evidenciem o delito e a autoria, não bastando a alta probabilidade desta ou daquele; e não pode, portanto, ser a certeza subjetiva, formada na consciência do julgador, sob pena de se transformar o princípio do livre convencimento em arbítrio (RT 619/267).
Cabe ter presente que, “se o espírito do magistrado é animado pelo incerteza, forçoso convir que outro caminho ele não terá senão o da absolvição, pois é máxima de processo penal que a dúvida, sentimento alternativo que inclui o sim e o não, sempre deve prevalecer em benefício do réu”( Recurso : APELAÇÃO Processo : 1097515 / 9 Relator : WILSON BARREIRA Órgão Julg.: 11. CÂMARA Votação : VU Data : 17/08/1998 Publicação).

08º Sumário. AINDA O EXAME DA PROVA. A FRAUDE GROSSEIRA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. IMPROPRIEDADE DA AÇÃO. CRIME IMPOSSÍVEL.

Não bastasse a dúvida que assoma dos autos, a autorizar a absolvição da acusada, há de convir-se, ademais, que aqui se está diante de uma rasura, de uma fraude, de uma falsificação grosseira que não iludiria o mais energúmeno dos mortais.
A rasura grosseira, tornou inidônea a licença, de moldes a tornar insubsistente o seu uso, tanto que os agentes da Policia Civil, de posse da licença, perceberam, de logo, sem necessidade de perícia, de que se tratava de um documento rasurado, daí, a meu sentir, a atipicidade da conduta da acusada, a considerar, num mero exercício mental, que houvesse provas inquestionáveis de que tivesse sido ela a autora da rasura e do uso do documento falso.
A meu ver, se o meio empregado pela agente é absolutamente inidôneo para atingir o objetivo criminoso, está-se defronte de um crime impossível, por ineficácia absoluta do meio.
Os Tribunais não dissentem:

“Se a falsificação é grosseira, perceptível à primeira vista, os atos executórios revelam absoluta impropriedade da ação para realizar o resultado penalmente relevante”(TJDF-AC-Rel. Vicente Cernicchiaro-DJU 4.3.80, p. 1052).

09º Sumário. O CRIME BAGATELAR. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ATIPIDADE DA CONDUTA DA ACUSADA. OFENSA MÍNIMA. INSIGNIFICÂNCIA DA LESÃO. MINIMO NON CURAT PRAETOR.

Não fosse pela fragilidade da prova colacionada, não fosse pelas dúvidas que irrompem nos autos acerca da autoria e não fosse pela falsificação grosseira da licença, ter-se-ia que absolver a acusada em face da irrelevância do fato e de sua nenhuma repercussão jurídica.
Já se disse, aqui e algures, que o Direito Penal não deve cuidar de coisa insignificantes – mínima non curat praetor. Repito, na mesma esteira, que o Estado não deve cuidar de fatos inexpressivos, desprovidos de reprovabilidade, de fatos que não estão a merecer valoração da norma penal. Não deve cuidar o Estado de ações irrelevantes, pois que lhes faltam o juízo de censura penal.
Convenhamos, qual a conseqüência prática do uso do documento rasurado? O que decorreu de tão grave para ordem pública, a justificar, a legitimar a movimentação da máquina estatal?
Devo anotar, em face dessa indagação, que o legislador, ao criar os tipos penais, trabalha no abstrato, sendo-lhe impossível prever, no concreto, a incidência de tal lei. In casu sub examine, ao criar o tipo penal supostamente malferido pela ré, o legislador pretendeu punir os prejuízos graves à ordem jurídica e social, não nos parecendo razoável incluir no seu âmbito os casos mais leves, de ínfima significação social, como o que albergam os autos sob retina.
Para reparar aberrações jurídicas, foi que os defensores da teoria da mínima intervenção estatal (Direito Penal mínimo) adotaram a tese da insignificância, do não cuidar o Estado dos crimes bagatelares.
A tipicidade, sabe-se, tem dois momentos distintos, quais sejam; a) tipicidade formal, que se resume na mera e pura adequação da conduta praticada pelo agente com o fato descrito na lei; e b) tipicidade material.
Sabe-se que nem tudo que típico formalmente o é materialmente. Ao julgador compete, a partir da tipicidade material analisar o quantum da lesividade da conduta do agente face ao bem jurídico penal, para, então, se determinar pela resposta sancionatória do Estado. É neste momento que o magistrado, ao atuar a lei, deve sopesar, casualmente, e de forma prudente, se a conduta do agente não só se amolda à descrição legal (tipicidade formal), como também se há uma relevância na lesão sofrida pelo bem jurídico tutelado (conteúdo da tipicidade material). Deve o magistrado, ademais, verificar se de tal relação surge a necessidade da atuação estatal, compondo esta lide.
Fincado nessa premissa, estribado nesse entendimento é que afirmo que das provas acostadas nos autos se pode concluir, sem nenhuma dificuldade, a nenhuma relevância do atuar reprochável da autora do fato noticiado nos autos, a desautorizar, a meu sentir, a atuação estatal. À vista fácil vê-se que a ofensa material aqui tratada não foi significativa. Não foi potencialmente relevante a afronta ao bem jurídico tutelado, a injustificar, nesse passo, a atuação dos órgãos persecutórios.
Devo reafirmar, ainda que o faça à exaustão, que o tipo penal, deve ser entendido na sua concepção material, como algo dotado de conteúdo valorativo, e não apenas sob seu aspecto formal, de cunho meramente diretivo . Não é sempre que a ação descrita tipicamente é ofensiva ou perigosa a um bem jurídico A ação inofensiva, não hostil, inócua, desprovida de relevância, não interessa ao Direito Penal. Não se pode falar em tipicidade, sem que a conduta seja, a um só tempo, materialmente lesiva a bens jurídicos, ou socialmente reprovável
O fundamento técnico-jurídico para se invocar o princípio da insignificância em nosso direito penal (como causa excludente da tipicidade) decorre da desnecessidade de se iniciar um processo de persecução criminal – oneroso ao contribuinte e traumatizante para a acusada – sem que tenha ocorrido efetiva lesão ao núcleo contido na lei repressora.
Releva anotar que, diante da irrelevância da ação material, deve o Estado, sempre, direcionar sua área de atuação para a repressão de outros crimes de maior gravidade. É nesse sentido que tenho atuado à frente da Sétima Vara Criminal, dando prioridade, sempre, aos crimes efetivamente danosos, pois que não é qualquer ação formalmente típica que está a exigir a ação estatal no sentido de punir os infratores. Somente os fatos que assumam magnitude penal é que exigem a intervenção estatal.
Nesse sentido a lição abaixo, verbis:

“A intervenção penal – traumática, cirúrgica e negativa – há de ficar reservada para a repressão de fatos que assumam magnitude penal incontrastável; havendo-se, assim, de recusar curso aos chamados delitos de bagatela.” (Garcia-Pablos de Molina, apud Paulo S. Queiroz, in Do Caráter Subsidiário do Direito Penal, ed. Del Rey, 1ª ed. 1998, BH, fls. 125)

A tipificação não se esgota no juízo lógico-formal de subsunção do fato ao tipo legal de crime. A ação descrita tipicamente deve revelar-se, ainda, ofensiva ou perigosa para o bem jurídico protegido pela lei penal.
O legislador, ao conceituar um crime, leva em conta os “modelos da vida” que deseja punir. Para tanto, procura definir, da forma mais precisa possível, a situação vital típica
Ao descrever o tipo penal, o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica e social. Todavia, não dispõe de meios para evitar que também sejam alcançados os casos leves, ou insignificantes, como se deu em o caso sub examine. É nessa hora que deve ser invocado o princípio da insignificância. O princípio da insignificância irrompe nessa hora evitar situações dessa espécie. O princípio da insignificância atua como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, revelando, assim, a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal.
Não é de agora que o intérprete tem invocado o princípio em comento, para o fim de afastar os crimes bagatelares da ação do Estado. Pode-se afirmar, como ressabido, que o princípio já vigorava no direito romano, pois o pretor, regra geral, não se ocupava de causas ou delitos insignificantes, seguindo a máxima contida no brocado minimis non curat pretor
A adoção do princípio da insignificância auxilia o magistrado na tarefa de reduzir ao máximo o campo de atuação do direito penal, reafirmando seu caráter fragmentário e subsidiário, reservando-o apenas para a tutela jurídica de valores sociais indiscutíveis.
As ações aparentemente típicas, mas inexpressivas e insignificantes, não merecem reprovação social, dessa afirmação podendo-se concluir que, ainda que a acusada tivesse protagonizado a falsificação, não deveria por esse crime ser punida.
É cediço que os mais formalistas afirmam ser inaplicável o princípio da insignificância, por não estar previsto na legislação e, portanto, não incorporado ao ordenamento jurídico
É manifesta, porém, a improcedência de tal objeção, de cunho eminentemente positivista. O princípio da insignificância nada mais é do que importante construção dogmática, com base em conclusões de ordem político-criminal, que procura solucionar situações de injustiça provenientes da falta de relação entre a conduta reprovada e a pena aplicável.
Devo gizar que aqui não se está a fincar uma inovação, pois que são diversas as hipóteses em que a doutrina elabora teorias sobre causas excludentes da criminalidade, não previstas expressamente em lei.
A norma escrita, como é sabido, não contém todo o direito. Por esse motivo, no campo penal, a construção teórica de princípio como o da insignificância não fere o mandamento constitucional da legalidade ou reserva legal. É o mesmo que se dá com as chamadas causas supralegais de exclusão da ilicitude.
Embora nosso estatuto penal a elas não se refira, não é possível ao intérprete afirmar o caráter exaustivo e taxativo das causas previstas no art. 23 do Código. As causas de justificação, hoje não se discute, não se restringem às hipóteses expressas em lei. Pensar assim é restringir-se a uma visão meramente positivista do Direito.
O princípio, da mesma forma que as causas supralegais de exclusão da ilicitude, tem caráter regulador, competindo ao aplicador do direito a tarefa de julgar o conteúdo da insignificância.
O fato que produz um resultado jurídico insignificante é formalmente típico, mas não é materialmente típico, porque lhe falta justamente a presença de um requisito material, que é o resultado jurídico relevante.
O próprio STF reconhece o princípio da insignificância há muito tempo, como se colhe da ementa a seguir transcrita, verbis:

ACIDENTE DE TRÂNSITO. LESÃO CORPORAL.INEXPRESSIVIDADE DA LESÃO. PRINCIPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME NÃO CONFIGURADO. Se a lesão corporal (pequena equimose) decorrente de acidente de trânsito é de absoluta insignificância, como resulta dos elementos dos autos – e outra prova não seria possível fazer-se tempos depois -, há de impedir-se que se instaure ação penal (…).” (RTJ 129/187, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO).

No mesmo diapasão:

“Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal, por falta de justa causa.” (RTJ 178/310, Rel. Min. MARCO AURÉLIO).

Na mesma senda:

“HABEAS CORPUS. PENAL. MOEDA FALSA. FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CONDUTA ATÍPICA. ORDEM CONCEDIDA (…); A apreensão de nota falsa com valor de cinco reais, em meio a outras notas verdadeiras, nas circunstâncias fáticas da presente impetração, não cria lesão considerável ao bem jurídico tutelado, de maneira que a conduta do paciente é atípica.4. Habeas corpus deferido, para trancar a ação penal em que o paciente figura como réu.”n(HC 83.526/CE, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA)”.

Releva trazer à colação, hic et nunc, a ensinança de EDILSON MOUGENOT BONFIM e de FERNANDO CAPEZ (“Direito Penal – Parte Geral”, p. 121/122, item n. 2.1, 2004, Saraiva), à guisa de ilustração, verbis:

“Na verdade, o princípio da bagatela ou da insignificância (…) não tem previsão legal no direito brasileiro (…), sendo considerado, contudo, princípio auxiliar de determinação da tipicidade, sob a ótica da objetividade jurídica. Funda-se no brocardo civil minimis non curat praetor e na conveniência da política criminal. Se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico quando a lesão, de tão insignificante, torna-se imperceptível, não será possível proceder a seu enquadramento típico, por absoluta falta de correspondência entre o fato narrado na lei e o comportamento iníquo realizado. É que, no tipo, somente estão descritos os comportamentos capazes de ofender o interesse tutelado pela norma. Por essa razão, os danos de nenhuma monta devem ser considerados atípicos. A tipicidade penal está a reclamar ofensa de certa gravidade exercida sobre os bens jurídicos, pois nem sempre ofensa mínima a um bem ou interesse juridicamente protegido é capaz de se incluir no requerimento reclamado pela tipicidade penal, o qual exige ofensa de alguma magnitude a esse mesmo bem jurídico.”

Com as considerações supra, JULGO IMPROCEDENTE a DENÚNCIA, para, de conseqüência, absolver N. V. M., antes qualificada, com espeque no inciso III, do artigo 383, do Codex de Processo Penal.

São Luís, 02 de maio de 2005.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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